Por José Pedro Martins
O panorama da Ciência e Tecnologia no Brasil pode estar entrando em uma nova era, com a definição do Supremo Tribunal Federal (STF) pela constitucionalidade da atuação das Organizações Sociais no setor. A opinião é do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, um dos mais eminentes cientistas brasileiros. Em entrevista exclusiva para a Agência Social de Notícias, ele reforçou a defesa de uma educação de base de qualidade e reiterou que o governo brasileiro cometeu um grande erro ao investir no pré-sal (e não nas energias renováveis) e acertou ao executar o polêmico projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte, no coração da Amazônia. O cientista também lamentou a “oportunidade perdida” por Campinas, ao não investir e tratar como deveria o Polo de Alta Tecnologia (Ciatec).
Nova era para a C&T&T?
É conhecida a dificuldade em se fazer Ciência e Tecnologia no Brasil, onde o setor recebe pouco mais de 1% do PIB – muito abaixo dos 3,9% da Finlândia, 3,7% da Coreia ou dos 3,4% do Japão, segundo o último Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD. Mas algo pode mudar neste cenário.
Depois de 17 anos de tramitação do processo, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no último dia 16 de abril pela constitucionalidade da atuação das Organizações Sociais nas áreas de educação, saúde, meio ambiente, ciência e cultura. Para Cerqueira Leite, a decisão pode significar o início de uma nova era para a Ciência, Tecnologia e Inovação no país. “Essa mudança é essencial, o mundo desenvolvido inteiro já havia percebido essa necessidade”, diz ele.
Na opinião do cientista, as Organizações Sociais podem dar muito mais mobilidade e agilidade para a área de C&T&I. Ele nota que isso já ocorre no caso das cinco Organizações Sociais que já mantêm Contrato de Gestão com a União, por intermédio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação: ABTLuS/CNPEM – Associação Brasileira de Tecnologia em Luz Síncrotron / Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais; CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos;
IDSM – Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá; IMPA – Associação Instituto de Matemática Pura e Aplicada; e RNP – Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.
C&T&I: situação boa e não tão boa no Brasil
Rogério Cezar de Cerqueira Leite tem uma das mais brilhantes trajetórias na Ciência e Tecnologia no Brasil e, por isso, pode falar com tranquilidade sobre o setor. Pergunto para ele se a situação da C&T&I é boa no Brasil e ele responde que “sim e não”.
Ele vê como positivo o fato de que “já existe a percepção de que a Ciência e Tecnologia são essenciais para o desenvolvimento do país, para a construção de um país civilizado”. Para o cientista, a prova é a que existem hoje dois conselhos, ligados à Presidência da República, tratando direta ou indiretamente do tema: o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
Entre as iniciativas importantes em curso no país no segmento, Cerqueira Leite indica o investimento de mais de R$ 1 bilhão na estruturação, em Campinas, do Projeto Sírius, o novo conjunto de fontes de luz síncroton brasileiro. Com a previsão de início de funcionamento em 2018, o Sírius será um dos dois complexos de fontes de luz síncroton de quarta geração do planeta – a outra está em construção na Universidade de Lund, na Suécia.
Será portanto um dos maiores projetos de ciência e tecnologia já realizados no país. As 40 fontes de luz síncroton estarão abrigadas em um prédio de 68 mil metros quadrados, a ser construído em área total de 150 mil metros quadrados, em território contíguo ao campus do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que gerencia o atual Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS).
A nova fonte de luz síncroton sediada em Campinas terá uma ampla possibilidade de aplicação, na ciência e tecnologia, mas também em projetos de uso industrial, em fármacos, biotecnologia, agricultura, química fina e outros campos. Atualmente circulam pelo LNSL cerca de 1 mil usuários por ano, entre pesquisadores e empresas que procuram o laboratório para realizar estudos. “O Sírius abrirá a possibilidade de participação de pesquisadores e também do setor privado”, observa Cerqueira Leite.
O físico também cita a montagem do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), previsto para ficar pronto em 2017, em Iperó, interior de São Paulo “Será muito útil para produção de radioisótopos que podem ser usados na medicina e em outras áreas”, destaca Cerqueira Leite.
O “não” na Ciência e Tecnologia, segundo ele, fica por conta, entre outros pontos, do engessamento verificado na máquina pública. Daí a sua defesa da atuação das organizações sociais, que na sua opinião podem contribuir para que o Brasil seja “mais competitivo no cenário internacional”.
Educação de base e pré-sal
A melhoria da educação de base tem valor “por si mesma”, para Rogério Cezar de Cerqueira Leite. E ele acredita que a qualificação da educação de base é essencial para o desenvolvimento brasileiro. “Sem educação não há civilização”, resume. O cientista entende que estão sendo feitos esforços para a melhoria da educação no país, ressaltando por exemplo a ampliação do ensino técnico e profissionalizante e a criação de várias universidades públicas.
Cerqueira Leite entende, por outro lado, que o Brasil cometeu um grande erro ao decidir investir na camada do pré-sal, e não na ampliação das energias realmente alternativas e sustentáveis. “Deixei clara a minha posição em várias reuniões com o presidente Lula e com a presidente Dilma a respeito, e também em artigos de jornais e revistas”, diz ele. “Mas agora não dá para voltar atrás”, lamenta.
Entusiasta dos biocombustíveis, como o etanol, o cientista entende que o setor passa por imensas dificuldades, “e não será fácil a retomada”, citando o fechamento de várias usinas de açúcar e álcool em São Paulo e outros estados.
Em contrapartida, entende que o governo brasileiro tomou a decisão certa em seguir adiante com o polêmico projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte, em construção na Amazônia. O projeto vem sendo muito criticado por organizações ambientalistas e também científicas nacionais e internacionais, pelos seus impactos ambientais e nas terras indígenas.
“Todo mundo sabe como seu defendi e defendo a Amazônia. Mas a energia hidrelétrica ainda é a mais barata para o país, e esta é uma necessidade absoluta para o Brasil”, comenta. “Qualquer outra fonte é muito mais cara”, completa.
Campinas perdeu oportunidade
Cerqueira Leite entende que o município perdeu “uma grande oportunidade histórica” ao não investir e tratar como deveria o Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec). Ele lembra que foi “um dos primeiros parques tecnológicos que nasceu de forma planejada no mundo”.
O Polo de Alta Tecnologia de Campinas foi criado em 1986 depois de um grande debate na comunidade científica local, desde a década de 1970, liderado pelo próprio Rogerio Cezar de Cerqueira Leite. Campinas – que já tinha o Instituto Agronômico desde o final do século 19 – começava a receber importantes instituições de ensino e pesquisa, como a Unicamp, o Instituto de Tecnologia de Alimentos (ITAL), o CPqD e a Codetec, que foi presidida por Cerqueira Leite.
Germinou então a ideia de estruturação em Campinas de algo parecido com o Vale do Silício, na Califórnia. Este conceito estava claro nos argumentos da Lei Municipal 6619, de 1981: “(…) Considerando ser indispensável a reserva de uma região destinada à indústria de tecnologia avançada, procedimento este adotado nos Estados Unidos (onde se sobressai o parqu eindustrial de Stanford) e, também, nos países europeus; Considerando que as Indústrias de alta tecnologia, como, por exemplo, de instrumentação, microeletrônica, informática, telecomunicações etc. somente se desenvolvem satisfatoriamente nas proximidades de centros de estudos e pesquisas; Considerando que existe em Campinas uma área ideal à finalidade almejada, especialmente face à sua localização, vizinha da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas)”.
E de fato uma área próxima das duas universidades e dos centros de pesquisa instalados em Campinas acabou sendo transformada no Polo de Alta Tecnologia de Campinas, criado em 1986. Antes, em 1983, foi criada a Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec). Tudo no primeiro governo de José Roberto Magalhães Teixeira, convencido por Cerqueira Leite sobre a decisão estratégica que seria a instalação de um parque tecnológico no município, pela presença das Universidades, dos centros de pesquisa e de sua posição privilegiada em termos de transporte e circulação de mercadorias.
Em 1992, foi criado o Polo de Alta Tecnologia II. Entretanto, o que houve na realidade foi a perda da oportunidade histórica criada, lamenta Cerqueira Leite. Com isso, Campinas perdeu ou no mínimo passou a dividir o protagonismo, para cidades como São José dos Campos e São Carlos. A falta de um diálogo mais consistente entre o poder público e a comunidade científica e entraves para a atração de indústrias de base tecnológica estão entre os motivos para o que aconteceu.
Mas nem tudo está perdido. O cientista identifica iniciativas positivas em Campinas e dá como exemplo a implantação do Projeto Sírius e o funcionamento dos núcleos criados na órbita do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). A possibilidade de ampliação da atuação das Organizações Sociais no setor de C&T&I também abre perspectivas para o município e todo país, acredita Cerqueira Leite. O grande batalhador pela Ciência e Tecnologia com as cores do Brasil continua a sua luta.
Graduado em Engenharia Eletrônica e Computação, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e com doutorado em Física de Sólidos pela Universidade de Paris (Sorbonne), trabalhou como pesquisador nos Laboratórios da Bell/EUA (1962-1970) e lecionou no I.T.A., na UNICAMP e na Universidade de Paris (Professeur d´echange).
Entre outros prêmios, foi agraciado com a Comenda da Ordem Nacional do Mérito da França e com a Cátedra da Universidade de Montreal, Canadá. Foi diretor dos Institutos de Física e Artes e Coordenador Geral das Faculdades da UNICAMP. É Professor Emérito dessa mesma Universidade, da qual foi Professor Titular de 1970 a 1987.
É Pesquisador Emérito do CNPq. Publicou 80 trabalhos em revistas especializadas, foi editor da Solid State Communications, editada em Oxford (Inglaterra), de 1974 a 1988, e “referee” de cerca de 20 revistas internacionais. Obteve cerca de 3.000 citações em revistas científicas de impacto.
É membro da Comissão de Energia da União Internacional de Física Pura e Aplicada e Presidente de Honra do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais que inclui o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron, de Biotecnologia, de Nanotecnologia e do Bio-Etanol, todos sediados em Campinas, onde o cientista reside.