Por Adriana Menezes
Era uma vez, uma contadora de estórias que vivia dentro de um bosque…
Foi contando e recontando suas estórias, povoando as mentes das crianças com personagens de contos de fadas e trazendo para a vida real um mundo mais bonito de se ver que a bibliotecária Márcia Regina Basso Miklos passou 28 anos de sua vida a cuidar da Biblioteca Pública Infantil Monteiro Lobato, dentro do Bosque dos Italianos, em Campinas. Agora que chegou a hora de se aposentar, Márcia se dá conta da longevidade de seu trabalho ao receber visitas e homenagens de avós, pais e filhos que mergulharam no seu mundo onírico e repassaram suas experiências para as futuras gerações.
“Guardei as carteirinhas das crianças desde 1985. Tem gente que sai daqui chorando, porque trazia os filhos e agora traz os netos. Quem entra em uma biblioteca precisa sair emocionado”, diz Márcia em um dos seus últimos dias de trabalho na Biblioteca Monteiro Lobato, que integra o sistema municipal de bibliotecas públicas de Campinas composto por apenas cinco unidades fixas e um ônibus biblioteca itinerante.
Nascida em Campinas, Márcia lembra que não teve muita leitura na sua infância, mas já gostava do lúdico e das fadas. Não imaginava que um dia seria declarada ‘Fada Madrinha’ pelo poeta João Proteti. “Tudo que construí foi com muito amor e com a ajuda de todos”, falou Márcia durante a homenagem que recebeu da Associação Amigos do Bosque dos Italianos, na presença de pais, crianças, integrantes da Associação e da Secretaria Municipal de Cultura.
Fazer a criança gostar
Quando concluiu seu curso de Biblioteconomia na PUC-Campinas na década de 70, Márcia lembra que não se imaginava trabalhando com crianças. “Eu não sabia que tinha essa habilidade. Entrei aqui e pensei: será que tenho jeito pra isso? O que vou fazer?”, conta a sua história. A bibliotecária diz que definiu como meta fazer as crianças gostarem de ir à biblioteca. Recorreu ao curso de teatro que fez na adolescência e começou a contar estórias para as crianças.
Com cada grupo de alunos que chega à biblioteca, ela bate um papo e apresenta o Baú de Surpresas. E assim começa a aventura. “A criança quando vem não quer entrar, depois ela não quer sair. É isso que eu quero, que saia falando do lugar. Sou apaixonada pelo que faço e estou realizada profissionalmente , porque eu sei que ajudei muita gente aqui”, fala com convicção, lembrando de mães que queriam livros sobre educação dos filhos, e ela encontrava; livros sobre como fazer a criança escovar os dentes, ela também achava; ou sobre criança que chora muito, e lá estava na biblioteca. “Eu ajudei através dos livros.” Márcia também organizou uma hemeroteca e durante 20 anos reuniu textos sobre curiosidades como quem descobriu o chiclete, ou por quê se come chocolate na Páscoa, como surgiu o sapato, por quê a cigarra canta e morre…
De geração em geração
No meio da festa, lá estava Ricardo Rosada Bárbara de Oliveira, de 8 anos, morador do Jardim Chapadão e frequentador da biblioteca desde os 6 anos. “Ela (Márcia) é legal porque mostra e empresta os livros”, explica Ricardo. “É uma boa biblioteca. Tem gibis antigos aqui, sabia?” A sua mãe, Andrea Rosada, de 39 anos, visitava o mesmo espaço quando tinha 11 anos, levada por sua mãe. “Antes de ter meu filho, eu trouxe também um sobrinho, que hoje tem 17 anos. E eu já trouxe meus alunos”, relata a mãe e professora. “Faz parte de minhas lembranças de infância, um lugar que eu gostava, um refúgio”, diz Andrea, que conheceu ali autores como Monteiro Lobato, Ruth Rocha e Ziraldo.
“É muito importante manter um espaço como esse. Chegou a ser fechado, mas graças à Associação de Moradores ela reabriu”, conta a mãe de Ricardo. Para ela, deveria haver bibliotecas em espaços públicos mais frequentados, como o Parque Taquaral. “Aqui no bosque você pode ler, brincar, fazer caminhada, fazer piquenique. É um espaço público onde podemos levar as crianças.”
Cinco unidades para mais de 1 milhão
A coordenadora setorial de Bibliotecas Municipais da Secretaria de Cultura de Campinas, Marinês de Campos Ribeiro, concorda com Andrea. “Sabemos que são poucas, mas existem muitas bibliotecas comunitárias e temos o ônibus itinerante, que nos permite atender 40 bairros. É uma forma de incentivar a leitura”, afirma a coordenadora. Segundo ela, vai ser difícil achar alguém que substitua a bibliotecária Márcia. “Precisa ser dinâmico, ter visão, saber atender pais e filhos, estar atento a tudo e fazer a criança viajar aqui dentro.”
Marinês é responsável pelas bibliotecas municipais “Prof. Ernesto Manoel Zink” (Centro), “Guilherme de Almeida” (Sousas), “Joaquim de Castro Tibiriçá” (Bonfim), “Monteiro Lobato” (Jardim Chapadão) e Espaço Cultural Cora Coralina (Vila Padre Anchieta), além do ônibus biblioteca.
A bibliotecária Márcia diz que se preocupa com a continuidade do seu trabalho realizado a duras penas, sempre com apoio de moradores e frequentadores da biblioteca que garantiram a sobrevivência do espaço. Aos 64 anos, ela acha que está em boa hora para se aposentar, mas não tem certeza se vai conseguir ficar longe do seu trabalho. “Eu vou sentir muita falta. Minha vida foi aqui. Já me fizeram propostas para continuar, mas vou dar um tempo para depois avaliar.”
Salva pela ação de moradores
Desde 1985 a unidade “Monteiro Lobato” está instalada no Bosque dos Italianos, após transferência do Bosque dos Jequitibás. Hoje são mais de 4.400 livros, além de jogos, discos, gibis e brinquedos. Mas houve muita pedra no caminho de lá até aqui, conta Madalena Meloni de Oliveira, da Associação dos Amigos do Bosque, fundada em 2001. A biblioteca foi fechada em 2008 devido ao péssimo estado de conservação.
“Não dava para usar, o prédio estava abandonado, a Associação estava preocupada com a conservação e nós mesmos colocávamos lona plástica para proteger os livros. Com recursos da própria associação, doações de comerciantes e outras empresas, conseguimos levantar a verba para a reforma e a prefeitura entrou com a mão de obra. Também conseguimos que a Sanasa adotasse o Bosque, entre 2008 e 2013. A reforma iniciou em 2011 e terminou em 2012.”
Para Paulo Ferreira de Camargo, da Associação de Moradores, tudo aconteceu graças à pressão e ação dos moradores. “Entramos com a cara e a coragem. E neste período a nossa bibliotecária (Márcia) foi transferida para a Estação Cultura, mas depois voltou”, diz Paulo. Márcia lembra que a biblioteca realmente sobreviveu graças ao empenho e engajamento dos moradores. “Se eu precisava de lâmpada, eles cuidavam de colocar. A verdade é que isso daqui deveria acontecer em outros lugares de Campinas. Depende muito da ação da comunidade”, conclui a contadora de estórias, que começa agora um novo capítulo de sua história.
Já a história da Biblioteca Pública Infantil Monteiro Lobato, que marcou para sempre as vidas de crianças e adultos do bairro, vai continuar pelas mãos de outras ‘fadas madrinhas’. Até aqui, foi o amor da bibliotecária pelos livros e a ação conjunta da comunidade que garantiram a preservação de um dos poucos espaços públicos de lazer e cultura na cidade, que via de regra têm sido desprezados pelos governos.