Distinta plateia, não se acanhe com tal figura exótica. Não saiu de nenhuma orquestra filarmônica, nem tampouco estudou em requintados bancos de conservatórios musicais. Contudo, apresenta-se como um exímio músico, capaz de fascinar com notas de ternura, encanto e reflexão até mesmo os ouvidos mais dispersos da cidade grande. Trata-se do popular Casca Grossa, o poeta marginal, sempre acompanhado pelo inseparável Bafo Quente, um violoncelo de estimação. Aliás, é justamente na cumplicidade entre os dois que se pauta a intervenção cênica Canção do Beco, protagonizada pelo músico e ator Mauro Braga. As apresentações gratuitas, espalhadas por diversos pontos da cidade, acontecerão durante o mês de outubro, começando nesta quarta-feira, dia 7, às 16 horas, no Terminal Central.
Apesar de existir diversos pontos de interrogação na partitura de vida de Casca Grossa, Mauro Braga busca decifrá-los. Para começar, a figura nasceu no palco dentro do espetáculo Crossroad, em 2007, assinado pela companhia ParaladosanjoS. “Ele é um violoncelista e morador de rua. Essa aparente contradição é o primeiro ponto de poesia da intervenção. Como assim, um morador de rua que toca violoncelo? Da mesma forma, ele é um poeta marginal que está sempre cutucando as pessoas, lançando iscas, que podem ser uma música, um poema ou um pensamento. A grande provocação do Casca Grossa está em tirar as pessoas do ritmo cotidiano, mostrando a elas o lado poético da vida”, conta Mauro.
Um passo para trás. Antes de chegar às ruas, Casca Grossa foi esculpido a partir do fascínio do violoncelista pela trajetória do músico e compositor norte-americano Tom Waits, que se notabilizou na cena underground. “Ele foi bastante marginal e contra a corrente musical de sua época”. Se bem que, a partir de um olhar apurado do intérprete, há traços da essência de Mauro Braga na criatura. “Ele é uma lupa sobre pedaços de minha personalidade. Nunca fui um morador de rua, mas sou um violoncelista, que já tocou em orquestra, e que tinha o desejo chegar à rua para comunicar com as pessoas e olhar nos olhos delas. Também busquei um caminho marginal para seguir a minha vida profissional”.
Em companhia do fiel escudeiro Bafo Quente, Casca Grossa se instala em qualquer lugar da cidade, independentemente do barulho e das condições ou do movimento de carros e das pessoas. Não por acaso, a matéria-prima da intervenção brota exclusivamente dessas situações experimentadas na rua. “Ele precisa interagir com as pessoas e com os espaços urbanos. Eu vivo a partir desse momento presente, lidando com as coisas concretas e reais da rua, entre as quais o banco, a sujeira ou o cocô do cachorro. Do mesmo jeito, falo diretamente com as pessoas que me dão bola e também com as que não me dão”. Detalhe: a intervenção foi contemplada pelo edital 2014/2015 do Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC), programa de incentivo cultural da Secretaria de Cultura de Campinas.
Qual é o roteiro? – Se há um roteiro prévio para a intervenção? Mauro afirma que há apenas alguns trechos cênicos preparados previamente para instigar público e intérprete. Por exemplo, a cena em que Casca Grossa presenteia a plateia com o prelúdio e a sarabanda da Primeira Suíte para Violoncelo Solo, de J.S. Bach (1685-1750). Ainda pelo viés musical, “tenho duas canções próprias que sempre uso na intervenção, que são o blues Balde d’água (‘Hoje acordei foi com um balde d’água/ Foi com água fria/ Foi com água gelada’) e o rap Silêncio Inevitável (‘Realmente somos o que somos/ e não o que queremos ser/ importante é pensar fazendo/ tendo na rotina algo imprevisível’)”.
O texto poético também habita os núcleos. Assinados por Mauro Braga, os pensamentos e as poesias têm como inspiração o muro, a cidade, as pessoas, a solidão, a condição do morador de rua e, claro, os becos. Nesse último caso, “muito a ver com os becos sem saída, tanto os becos de concreto quantos os becos internos que a gente passa a cultivar durante a vida”, destaca. A partir de todo esse linguajar, a plateia terá o privilégio de ouvir falar de Estrela Dalva, a musa inspiradora de Casca Grossa. Quem seria? “Pode ser uma mulher, uma estrela, a própria cidade… Enfim, a felicidade! Aquilo que todos nós vivemos buscando, mas nem sempre sabemos nomear”, conta Mauro. No mesmo sentido, o nomadismo de Casca Grossa também é algo proposital. “Ele tem essa característica do caminhar, de estar sempre buscando um outro lugar. Ao mesmo tempo em que cria um espaço espetacular, que pode ser a formação de uma roda com pessoas, ele não se importa de desconstruí-lo para seguir um novo caminho”.
Durante a intervenção, Mauro se utiliza da eloquência vivaz de Casca Grossa para acomodar diversas artes em uma mesma partitura. Além da música, do teatro físico, da técnica clownesca e da literatura, as artes plásticas também estão presentes na intervenção. O detalhe está impresso em ilustrações feitas pela artista campineira Clara Wagner. “Esses desenhos retratam cenas de Casca Grossa e Bafo Quente espalhadas pela cidade, algumas realistas e outras nem tanto, mais voltadas à caricatura. São presentes que costumo dar para algumas pessoas, de preferência para aquelas que percebo que tiveram uma interação maior durante a intervenção”.
Ao espectador de minutos cabe refletir, após a passagem do violoncelista, sobre dois pontos: o sentido das palavras jogadas ao vento por Casca Grossa e se aquela figura seria real ou fictícia. Difícil enigma, garante Mauro. “Teve uma vez, no Terminal Central, que um rapaz bem conectado à rua virou meu parceiro. Ele começou a fazer backing vocal durante as músicas, tirava moedas do bolso e me dava. Para ele, eu era o Casca Grossa, alguém como ele. Depois daquela reação, as pessoas que chegavam perto começaram a achar que a gente era realmente formava uma dupla. O barato está justamente nesse limiar: uns acreditam que ele vive fora daquele contexto cênico e outros dizem que não”.
O intérprete
Bacharel em Música Popular pela Unicamp, o violoncelista Mauro Braga se formou sob a orientação do professor e músico Dimos Goudaroulis (Grécia/Brasil). Entre 1999 e 2009, participou da Orquestra Oficina de Cordas, sob a direção de Tibô Delor. Atualmente, compõe o quarteto de cordas Carcoarco. Entre 2002 e 2012, integrou a companhia cênico-circense ParaladosanjoS, de quem até hoje é parceiro e colaborador. Por meio do contato com o teatro e o circo, tornou-se ator e palhaço, tendo como principais mestres Adelvane Néia (Humatriz Teatro), Leris Colombaioni (Itália), Ricardo Puccetti (Lume Teatro), Esio Magalhães (Barracão Teatro), Teófanes Silveira (Palhaço Biribinha), entre outros. Somam-se à experiência na cena a criação e a execução de trilhas sonoras e canções originais para documentários e espetáculos teatrais e de dança assinados por grupos reconhecidos da cena como Lume Teatro, Grupo Matula e Boa Companhia. Por sinal, já teve algumas dessas composições premiadas em festivais.
Programação de Estreia
Quarta-feira (7/10) às 16h: Terminal Central de Campinas (Rua Cônego Cipião, no Centro) às 17h30: Mercado Municipal de Campinas (Rua Benjamin Constant, no Centro)
Sexta-feira (9/10)
às 16h: Praça Rui Barbosa (Rua 13 de Maio, s/nº, no Centro) às 17h30: Largo do Rosário (Av. Francisco Glicério, no Centro)
Entrada franca Classificação indicativa: Livre Tempo de duração: 60 minutos Produção executiva: Cais das Artes Coordenação de Produção: Dani Scopin