A lama de rejeitos de mineração procedente de Mariana (MG), e que chegou ao litoral do Espírito Santo, agrava a degradação da biodiversidade no Vale e Bacia do Rio Doce. A operação para resgatar espécies típicas da região, muitas delas ameaçadas de extinção, já foi deflagrada e vai durar anos, visando a estruturação de bancos genéticos. São diversas equipes e vários profissionais, como do Projeto Tamar, envolvidos em ações para salvar desde tartarugas marinhas no litoral capixaba a peixes ao longo de todo o Vale do Rio Doce (os mais atingidos pelo fluxo da lama). Na região viviam originalmente aves como o Mutum-do-sudeste, que é justamente a primeira espécie ameaçada de extinção no Brasil a ter um Plano Nacional de Conservação.
Uma das ações iniciadas já há alguns dias, com a participação do Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), foi a transferência de ninhos de tartarugas marinhas para áreas distantes dos possíveis impactos da lama. O Projeto Tamar/ICMBio identificou e providenciou o transporte de dezenas desses ninhos.
Matrizes de cascudos e bagres, entre outros peixes, foram capturadas, pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (CEPTA/ICMBio), visando a formação de um banco genético e posterior reprodução e criação em cativeiro. O Ibama e outros órgãos passaram a alertar para a necessidade do transporte adequado de peixes para lagoas e outros rios, de modo que não haja introdução de espécies invasoras e concorrência com as espécies já existentes nesses ambientes.
Rica biodiversidade – A riqueza da diversidade de espécies na Bacia e, sobretudo, no Vale do Rio Doce já é relativamente bem conhecida, em função de estudos e ações por parte de organizações como Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com seu Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração (PELD) e Projeto Manuelzão, Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais (Cetec) e Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam).
As pesquisas apontaram uma biodiversidade rica, desde espécies de microorganismos e insetos até aves e mamíferos. Algumas dessas espécies estão ameaçadas de extinção, como o Mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii), exatamente a primeira espécie em risco no Brasil a ter um Plano Nacional de Conservação (PAN), promulgado em 2004.
O Mutum-do-sudeste era muito comum no Vale do Rio Doce, como uma ave típica da Mata Atlântica que cobria a maior parte da região, assim como 15% do território brasileiro. Na realidade, o Mutum era presente em uma região que abrangia florestas de baixada e tabuleiros, desde o local onde hoje está a cidade do Rio de Janeiro até as vizinhanças do Recôncavo Baiano e Leste de Minas Gerais.
“Estas florestas localizadas a baixas altitudes forma dramaticamente reduzidas nos últimos 100 anos, especialmente durante o grande ciclo de desmatamento ocorrido no norte do Espírito Santo nas décadas de 1960-70, e no Sul da Bahia a partir da década de 1980″, observa o PAN Mutum-do-sudeste, que também aponta a caça desenfreada como um dos motivos que levaram quase à extinção da espécie.
O PAN Mutum-do-sudeste incluiu várias ações, como a intensificação da proteção dessa e outras espécies em áreas indígenas no Sul da Bahia e projetos de reforma agrária, formação de corredores ecológicos para facilitar o seu trânsito entre remanescentes de matas, elaboração do Zoneamento Econômico-Ecológico na Bahia, maior atenção na aplicação da Lei de Crimes Ambientais e Código Florestal, aprimorar o manejo das aves em cativeiro (existiam 637 nessa condição em 2004) e maior proteção das Unidades de Conservação onde a ave é mais encontrada, como o Parque Estadual do Rio Doce. Passados dez anos, em 2014 foi concluído o prazo de aplicação do PAN Mutum-do-sudeste, com 63% das ações concluídas. Desde então, o PAN Mutum-do-sudeste passou a ser incorporado em outros programas de conservação na área da Mata Atlântica.
Cadeia alimentar – O que um evento como o percurso da lama de resíduos de mineração ao longo do Rio Doce pode provocar é, entre outros impactos, afetar a cadeia alimentar no meio hídrico. A cadeia alimentar é caracterizada por uma rede de relações entre espécies e o Vale do Rio Doce comporta muitas delas.
Somente no trecho médio do Rio Doce, pesquisas do PELD/UFMG identificaram 274 espécies de algas planctônicas nos ambientes lênticos e 105 nos lóticos. Do mesmo modo, a região tem uma diversidade de cianobactérias e ficoflora, composta por seres microscópicos unicelulares, que operam como base energética das cadeias alimentares nos ecossistemas aquáticos. Cianobactérias e a ficoflora vêm sendo estudadas desde 1982 na região, em cidades como Mariana e Governador Valadares, pelo Cetec e UFMG.
Como parte das redes da cadeia alimentar, espécies de peixes também merecem especial atenção em tragédias como a que ocorreu no Vale do Rio Doce. O Plano Integrado de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Doce calcula em mais de 80 espécies de peixes o conjunto da ictiofauna existente no território. Esse número seria apenas o de espécies de água doce, pois a inclusão das espécies marinhas, na altura do litoral do Espírito Santo, elevaria muito mais o número de espécies de peixes no Vale e Bacia do Rio Doce. Uma das espécies em vias de extinção na Bacia é o Surubim-do-rio-Doce, identificado na sub-bacia do Rio Piranga.
O Rio Doce também tem uma riqueza de macroinvertebrados, como larvas de insetos, vermes, moluscos e crustáceos. Estudos na UFMG e outras instituições já identificaram 122 espécies.
No mais, a biodiversidade é ainda grande na Bacia e Vale do Rio Doce, apesar da destruição das florestas e outros impactos ambientais. Até abelhas amazônicas foram encontradas nos remanescentes florestais do Vale do Rio Doce, provavelmente originárias do período remoto em que os biomas Mata Atlântica e Amazônia tinham conexões.
Uma atenção especial, solicitada pelos pesquisadores, é com relação às espécies invasoras. Na Lagoa Carioca, do Parque Estadual do Rio Doce, foi comprovada a perda de cinco espécies de peixes nativas, pela introdução de espécies invasoras como piranha, tucunaré e apaiarí.
Os pesquisadores também consideram que áreas com intensa atividade de mineração e metalurgia, como o Alto e Médio Rio Doce e o Quadrilátero Ferrífero, são prioritárias para levantamento e conservação da biodiversidade aquática. No Parque Estadual do Rio Doce, foram identificadas, ainda, seis áreas de importância biológica especial para conservação da biodiversidade de invertebrados. A região conta ainda com três cavernas, entre as 435 já inventariadas em Minas Gerais. Além disso, a Bacia do Rio Doce tem áreas de florestas relevantes para conservação da herpetofauna, composta por anfíbios e répteis.
Para proteger toda essa biodiversidade, uma das ações mais eficazes é a constituição e efetiva proteção de Unidades de Conservação. A primeira UC em Minas Gerais foi precisamente o Parque Estadual do Rio Doce, de 36 mil hectares, constituído em 1944. Entretanto, após um longo período, coincidindo com a ditadura militar, apenas após a nova Constituição de 1988 houve um incremento na criação de UCs em território mineiro. Hoje são mais de 70 Unidades criadas, somando mais de 1,4 milhão de hectares.
A expectativa dos ambientalistas, pesquisadores e moradores da Bacia do Rio Doce é a de que a tragédia após rompimento das barragens em Mariana tenha consequências em termos de proteção natural. Que sejam efetivamente protegidas as atuais e eventualmente criadas novas Unidades de Conservação, entre outras medidas para a conservação da diversidade de formas de vida na região. (Por José Pedro Martins)