Por José Pedro Soares Martins
A manhã do dia 24 de agosto de 2020, segunda-feira, ficará conhecida como mais um capítulo da triste trajetória de destruição na cidade de Campinas. Na Vila Industrial, homens e máquinas a serviço da Prefeitura pavimentavam de asfalto a rua João Teodoro, cujo piso de paralelepípedo era um dos marcos da memória e do rico patrimônio cultural existente em um dos bairros mais importantes da história local. Por outro lado, quase que simultaneamente, homens e máquinas também a serviço da Prefeitura retiravam árvores de um jardim que era cuidado desde 2014 pelo Sesc Campinas, na rua Governador Pedro de Toledo.
Nas duas situações, desculpas semelhantes. Na Vila Industrial, a obra teria sido executada, segundo a Prefeitura, para “melhorar as condições de tráfego e de segurança, evitando trepidação e derrapagem para veículos em geral”. No caso das árvores, cuja retirada não foi comunicada com antecedência ao Sesc, a justificativa era a passagem da linha do BRT, o novo sistema de transporte coletivo em implantação.
Em poucas palavras, a devastação de dois patrimônios, o histórico cultural e o ambiental, em função da “melhoria do trânsito”. É incrível que uma metrópole como Campinas, que se orgulha de ter sido nomeada recentemente como “cidade mais inteligente do Brasil”, ainda não tenha conseguido implementar, já entrando na terceira década do século 21, uma matriz de transporte que consiga conjugar mobilidade com sustentabilidade, como ocorre em outros centros urbanos ao redor do planeta.
É uma dádiva, uma de suas vocações, que Campinas abrigue o que há de mais avançado em ciência e tecnologia. A importância do desenvolvimento científico está mais do que provada nesse contexto da pandemia.
Entretanto, em outras áreas da “cidade inteligente” continua imperando o ultrapassado. Aqui ainda reina a mentalidade de que o mais importante é facilitar a passagem dos veículos automotores.
E não há o menor prurido em devastar o que resta do patrimônio histórico e cultural. Esse é um legado que Campinas infelizmente continua carregando, desde a demolição dos teatros São Carlos e Carlos Gomes. Não é por acaso, então, que se demore tanto, que se arraste há tanto tempo, a questão da reforma dos teatros, interno e de arena, do Centro de Convivência Cultural. Mais uma vez a distância, o abismo, entre a “cidade inteligente” e a realidade do atraso.
O duplo episódio, da pavimentação com asfalto de rua secular na Vila Industrial (divulgada em primeira mão pela Agência Social de Notícias, após denúncia da arquiteta Ana Villanueva) e de aniquilação de uma praça que tinha todo um projeto paisagístico bancado pelo Sesc, demonstra também como não há diálogo entre os diferentes setores da Prefeitura. A conversa e a ação multidisciplinar, fundamentais para se enfrentar os múltiplos e complexos desafios do mundo contemporâneo, não chegaram na administração pública.
Duvido que os órgãos responsáveis pelo patrimônio histórico e cultural, se consultados previamente, não desaconselhassem, pelo menos, a pavimentação com asfalto da rua João Teodoro, ainda que não haja um processo concluído ou em curso de tombamento. Do mesmo modo, duvido que a Secretaria Municipal do Verde, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, se fosse de fato ouvida como deveria, e se tivesse maior poder do que tem no governo local, também não recomendasse maior cuidado na implantação do traçado do BRT.
Por último, mas não menos relevante, a dupla destruição deixa evidente que Campinas, de tantas tradições e inúmeras conquistas em diferentes segmentos, ainda não assimilou um conceito que é essencial para o que se denomina de desenvolvimento sustentável. Trata-se do respeito, em condições de equidade, do patrimônio cultural, material e imaterial, e também do patrimônio natural.
A importância desses dois patrimônios para os avanços civilizatórios está explícita na Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, aprovada em 1972 pela Unesco. O documento que ficou conhecido como a Carta de Paris é explícito ao alertar, logo no início, que “o patrimônio cultural e o patrimônio natural encontram-se cada vez mais ameaçados de destruição não somente devido a causas naturais de degradação, mas também pelo desenvolvimento social e econômico agravado por fenômenos de alteração ou de destruição ainda mais preocupantes”.
Por este e outros fatores, a Carta de Paris assinala que cada Estado-parte da Convenção reconhece que “lhe compete identificar, proteger, conservar, valorizar e transmitir às gerações futuras o patrimônio cultural e natural situado em seu território”. O Brasil é signatário da Convenção, mas destruição do patrimônio cultural e natural infelizmente tem sido a regra em nosso país, não é?
Quando se fala de Estado-parte, pensa-se inicialmente na União, mas o Estado brasileiro, em função do pacto federativo, também abrange estados e municípios e nesse sentido esses entes também deveriam se aprimorar cada vez mais na proteção de seus patrimônios.
Em Campinas, o Condepacc tem procurado fazer a sua parte. Muitos bens históricos são tombados, mas ainda falta muito a fazer, sobretudo na área do patrimônio natural e do cultural imaterial. Este Conselho também precisaria estar mais próximo das abordagens mais contemporâneas de proteção patrimonial.
O que está previsto na Carta de Paris foi depois reiterado em outros documentos capitais, como a Agenda 21 aprovada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em junho de 1992, no Rio de Janeiro. Todos esses tratados, que servem de paradigma e referência para pactos civilizacionais, precisariam ser mais respeitados na Campinas que tanto se orgulha de seus feitos, mas que muitas vezes varre para baixo do tapete as suas mazelas.