A encíclica Laudato si, do papa Francisco, lançada a 18 de junho de 2015, marcou o ingresso oficial do Vaticano, e com muita força e repercussão, na discussão ambiental planetária. Mas a Santa Sé poderia estar há muito mais tempo nesse debate, se tivesse aceito o convite para participar do Programa Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) do Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
Sediado em Genebra, Suíça, o CMI é a principal organização ecumênica internacional, reunindo mais de 350 Igrejas, como as chamadas denominações evangélicas históricas. O apelo que resultou no Programa JPIC foi feito na Assembleia do CMI em Vancouver, Canadá, em 1983.
A declaração de Vancouver indica aquela que deveria ser, para o CMI, a única resposta cristã possível naquele momento histórico, de acúmulo de arsenal atômico pelas grandes potências, que poderia levar a humanidade à autodestruição: ” O alicerce desta ênfase deve ser confessando Cristo como a vida do mundo e da resistência cristã aos poderes da morte do racismo, do sexismo, da opressão de castas, da exploração económica, o militarismo, as violações dos direitos humanos e o mau uso da ciência e tecnologia.“
O encontro em Vancouver evoluiu o processo que resultou no JPIC. Em 1988, uma mensagem do Comitê Executivo do CMI fez a convocação para uma grande conferência de Igrejas sobre o JPIC, com o propósito de “fazer afirmações teológicas sobre justiça, paz e integridade da criação, e para identificar as principais ameaças à vida nestas três áreas e mostrar sua interconexão, e para propor às Igrejas atos de compromisso mútuo em resposta a elas”. A conferência foi marcada para Seul, Coreia do Sul, em março de 1990.
Ainda em janeiro de 1987, o então secretário-geral do CMI, Emilio Castro, fez convite formal ao Vaticano para participar como convidado do encontro em Seul. A Igreja Católica não é membro oficial do CMI. A resposta do Vaticano, então sob João Paulo II, foi dada em dezembro de 1987 e foi negativa, argumentando com as diferenças de perspectiva entre o CMI e a Santa Sé.
A posição do Vaticano não impediu que organizações católicas europeias, e mesmo conferências nacionais de bispos, participassem de encontros relacionados ao processo do JPIC, como um evento em Basileia, Suíça, em maio de 1989. O CMI não desistiu e em setembro de 1988 fez novo convite ao Vaticano, com o pedido de que fossem indicados 50 representantes católicos na conferência de Seul.
Com algum atraso o Vaticano respondeu que poderia enviar 20 representantes, mas o mal estar já estava consolidado e Emilio Castro não se furtou de fazer críticas públicas à postura da mais alta hierarquia católica. A delegação do Vaticano também deixou claro que não iria apoiar oficialmente o que foi aprovado em Seul, na medida em que algumas de suas afirmações “eram dificilmente conciliáveis com a doutrina católica”.
Esses gestos motivaram muitas críticas entre os setores católicos mais progressistas, e que há anos já vinham alertando para a importância e gravidade das questões ambientais, que também deveriam merecer atenção e posicionamento dos cristãos. Uma das vozes mais críticas nesse sentido foi a do missionário irlandês Sean McDonagh, que viveu durante muitos anos nas Filipinas e é considerado um dos pioneiros do ambientalismo contemporâneo.
Em 1986 McDonagh lançou uma obra que se tornou clássica, “To Care for the Earth: a Call to a New Theology”, e na qual propunha uma “nova história do universo”, como forma de questionar a visão cientificista que tem prevalecido como paradigma da ordem tecno-industrial. Uma das alternativas propostas pelo religioso – que trabalhou com os aborígenes T`Boli, na ilha filipina de Mindanao – é que o cristianismo aprenda com as tradições indígenas e, com isso, contribua para a reformulação de seu modo de ver a vida humana e a natureza.
Há décadas, portanto, o sacerdote columbano Sean McDonagh é uma voz de referência no meio católico, sobre questões ambientais. E foi com essa credencial que criticou a posição do Vaticano sobre o processo de Justiça, Paz e Integridade da Criação do Conselho Mundial de Igrejas.
“Em um mundo inundado com notícias da devastação ecológica na Europa Oriental, América Latina e Sudeste Asiático, a fome na África e na guerra no Oriente Médio, o processo de Justiça e Paz é um farol de esperança e um modo concreto de ajudar os cristãos de todas as Igrejas promover a paz, a justiça e uma administração responsável da criação de Deus”, escreveu o missionário irlandês. “Ninguém sugeriria que o processo é perfeito ou que a Santa Sé não poderia trazer uma dimensão enriquecedora para o debate. Mas isso não vai acontecer enquanto ele permanecer à margem”, afirmou, ainda na década de 1990.
Mas houve mudanças importantes na cúpula católica, com o papado de Francisco, e uma nova postura é anunciada, com a publicação da encíclica Laudato sí. O próprio Sean McDonagh foi uma das vozes ouvidas na elaboração da encíclica. “O que o papa Francisco Francisco apresenta é uma doutrina um tanto revolucionária. E ela está muito à frente de onde a Igreja Católica se encontra em termos de ministérios que se preocupam com meio ambiente nas paróquias e dioceses locais”, comentou.
McDonagh continua defendendo uma mudança radical de olhar do mundo católico para a questão ecológica, e entende que Laudato sí pode ser um importante impulso nesse sentido. A expectativa é de toda comunidade internacional, pois os desafios apontados pelas mudanças climáticas, pela erosão da biodiversidade, crise hídrica, entre outras questões, exige amplo envolvimento na busca de soluções. (Por José Pedro Martins)