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No relógio de Deus: poema-denúncia, nos 25 anos da Chacina da Candelária
Calçada onde aconteceu a chacina da Candelária, no centro do Rio de Janeiro

No relógio de Deus: poema-denúncia, nos 25 anos da Chacina da Candelária

Poema de Maria do Rosário Lino, sobre os 25 anos da Chacina da Candelária. Na madrugada de 23 de julho de 1993, em frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. um grupo de 40 crianças e adolescentes foi alvejado com saraivadas de tiros. O crime resultou em oito mortos, seis deles crianças. O massacre chocou o mundo e chamou a atenção para a violência contra a infância e juventude no Brasil. Três policiais foram sentenciados a mais de 200 anos de prisão, mas nenhum deles está na cadeia. Este poema-denúncia, de Maria do Rosário Lino, foi publicado em 1998 (no livro “Órbita Azul”), portanto cinco anos depois, apenas, da tragédia, e mantém intensa atualidade.

NO RELÓGIO DE DEUS

Homens de valise

fariseus dos gabinetes

seu tempo acabou

vocês são os acionistas

totalitários

desse golpe de Estado

inalado pelo povo

de um Brasil rarefeito de ar.

Chega de engomar

a voz e a realidade.

Seu enxoval de acessórios

já estilhaçou os brios

de um povo bom

atingido no esôfago

de sua dignidade

pela artilharia das suas esporas

relinches e coices.

Aos trancos foi-se

a alegria otimizante

da brasilidade,

um dia crédula

da musicalidade

adulterada nos teus gramofones

dissidentes de honestidade.

Homens do poder

dos verbos defectivos

deslizando desinibição

pelas tuas emissoras bibelôs.

Tua indumentária fantoche

está presa na retina

da comunidade menina

triste por seus amigos abatidos.

O Brasil chora o hiato da vida

dos seus menores traídos a fórceps

sem direito a quilombo

nem a romaria

à cidade mariana.

Nos seus gritos colados de dor

crianças cantam

seu hino de lamento

em hosanas pedindo

o pão da hóstia

diante das hostes

executoras.

A violência quica no céu

e um querubim chora

ao ver Cristo de novo

menino e menina

ainda pequenino a repetir

sem aurora

sua via crucis na Terra.

É impodenrável

o desgosto de Deus.

E por um momento

na dimensão do seu tempo

o pranto é um manto

em forma de chuva

e granizo sobre

uma Candelária

e outras áreas,

lavando a vida da morte.

Em algum lugar

um baobá se quebra

em soluços, debulhando

do próprio tronco as suas águas.

O ponteiro do relógio celeste

aponta o quociente

do seu veredicto.

O fax dos humanóides

em consciente zero

prossegue ileso

no seu índex

de holocausto infantil

reprogramando

os flancos do cheque-mate

sem passar recibo.

Nas espeluncas da sua existência

facções afiam os estiletes, outras armas, porretes

para garantir sua sobrevivência

em primazia

na rival dinastia

da guerra civil servil

com o codinome de remoção

da geração infantil.

Seus códigos não permanecerão

incógnitos para sempre.

Seus ódios não continuarão

ilesos impunemente

ao peso de sua própria sombra

talvez a maior assombração.

Quem cobrará suas dívidas

e como irão quitar seus espíritos,

dependerá

das provisões de ação e fé

dos filhos de Deus

ainda em pé na Terra

ajoelhados aos céus

e abraçados na esperança

da lembrança

do sorriso vivo de uma criança.

Anjos numa escada espiral de tranças

devem aterrissar e nas suas andanças

abrir suas asas

mostrando o caminho

de um ninho

seguro

e puro.

Eu juro!!!

 

 

 

 

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