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Parte III – Fique são
Rafa: mântrico (Foto Diogo Mendes V. F.)

Parte III – Fique são

Por Rafa Carvalho

A minha página era de um personagem fictício. Um selo criado para calvins, mafaldas e afins, que aderi acreditando que, na internet, todos somos ficções de nós mesmos. Era uma ironia, um deboche. De mim, sobre mim. Um jovem, sem saber direito o que queria, mas sabendo em alguma profundidade própria, que não queria aquela mentira. E é claro que, controverso, muitas vezes o que eu quis foi, justamente, essa mentira.

Viver, né. Essa sempre corda-bamba. Uma amiga minha, poeta querida, que talvez se considere hoje ex-poeta – e de repente até ex-amiga – preocupada comigo escreveu quase assim: Rafa, você está bem? Venho pensando um pouco sobre seus processos. E agora isso de Personagem Fictício. E o engraçado é que, pelo modo como ela dizia, parecia que ser autodeclarado um personagem fictício fosse mais grave que se autodeclarar pensador, artista, banda e tudo mais.

Algumas coisas, eu acho que a poesia é. Em contrapartida a certezas que sinto, do que ela não seja. Uma dessas é a loucura. Eu acho que a poesia é loucura. E como neto de uma boa louca, a Dona Dalva – bença, vozinha! – eu devo ter essa propensão genética à poesia. Falo coisas que me fazem todo sentido, mas que sempre ou quase me retornam como indiferença ou ignorância. Por exemplo: para mim, equilibrismo deve ser o mesmo que desequilibrismo. Vejam, pra começar, o Office “Libre” tenta me impedir de escrever desequilibrismo. Como se não existisse. Como se este escrevendo não fosse, ele mesmo, um desequilibrista.

Enfim. Quando uma coisa está exatamente equilibrada, ela está estanque. Necessariamente. E se eu caio de um skate, por exemplo, o desfecho do meu desequilíbrio é terminar igualmente estanque, em algum momento. Logo, qualquer movimento é a interação de equilibrar e desequilibra-se. Equilíbrio dinâmico é o mesmo que desequilíbrio dinâmico. Há vida se há dinamismo. E por mais que em alguns aspectos esta questão se mistifique e aprofunde, no caso humano é evidente. Assim, poesia é também, e fundamentalmente para mim, este ato contínuo de (des)equilibrar-se. Ser íntegro no risco. Bambear com dignidade. Tombar como quem levanta. Sair como quem já volta. Ser trágico, cômico e destrambelhado, mas com elegância e compostura.

Aí entra o palhaço. Ou melhor, aí ele sai. Que o palhaço é isso: tudo nosso, ou relativo a nós e a nossa história, que de modo consciente ou não, trancamos num armário. Num porão da gente. O palhaço nosso, de cada qual, para mim, é isto: que queremos esconder do mundo e de nós mesmos. E de repente abrimos essas portas, damos isso à luz. Luz a isso. Arejamos esse pó todo, de que somos feitos. Depois é preciso amar-se ali. No porão. Nesse armário. Levar esse também-eu pra passear um pouco, por aí. E depois, um dia, quem sabe, até dê pra mudar essas coisas. Tais coisas, finalmente amadas. E talvez manter delas só a piada. Um dia. De nrepente. Mas é isso. Confiar em si, quem sabe, seja duvidar de si. Pelo menos de vez em quando.

Acho que pude ser poeta, quando aprendi a ser palhaço. Acho que a gente pode viver mesmo, quando aprende a morrer antes, quantas vezes for preciso. Nossas aprendizagens passam por esses círculos. Quando fiz Karatê, entendi que o faixa branca percorre um longo caminho até a faixa preta, para depois com o esforço de muitos anos mais, como faixa preta, ver aquilo tudo gastar, desbotar, até retornar, à brancura do início. Como um Picasso aprendendo a pintar feito criança. Ou a velha, que passa a brincar tipo menina. A gente aprender a falar, acha bonito, importante, fala muito, fala, fala. E depois, com um tanto de sorte e competência, vamos falando menos. Sinto que a gente aprende assim: testando. Passando um pouco dos limites. E conseguindo uma boa dosagem das medidas, quando damos conta de alguma coerência, pela vida.

Não me sinto tão jovem mais. Há muitos jeitos de não sentir-se assim. Um deles é por amizade. A vida é um bar onde, dependendo do que lhe faz beber, você bebe cada vez mais só. Tive muitas amizades. Soa piegas, mas ainda amo a todas. Todas essas pessoas, amigas. Do meu jeito. Às vezes nem olho pra elas, em respeito aos “nem olhe pra mim” que me disseram. Mas quieto, com olhos e ouvidos fechados, tento amar pra sempre, as amizades. Eu coleciono eternidades – uma coleção menos usual aos humanos, que ironia, selos, moedas. E há sempre alguma para enfeitar o corredor. Mesmo se já não estamos juntos mais, ao balcão.

Muitas de minhas amizades de sempre tornaram-se artistas. Pensadoras. A pessoa com quem primeiro aprendi e troquei sobre revolução e mais-valia é hoje assessora de um político terrível, mantenedor de abismos e injustiças. Coisas que se passam, no bar da vida, com o tempo. Mas muitas estudaram muito. Isso eu não posso negar. Horas e horas de leitura, clássicos completos, literatura contemporânea, expoentes atuais da Escandinávia e todo o Oriente Médio mapeados. Horas e horas de práticas musicais, técnica de voz e instrumento. Cursos no exterior. Algumas acreditam que com isso construíram seus méritos sociais. Em outras, eu ainda vejo coerência e não só amo como tenho vontade de ver, ouvir, conversar. Entre abraços.

Mas eu confesso que a ideia de vagabundo foi sempre muito representativa de mim. E percebi com o tempo que isso desapontava as pessoas. Eu tentava viver. E aí, quando ia estudar, ler, tocar, escrever, compor, me vinha uma vontade imensa de viver mais. Eram incontáveis cadernos, letras, poemas, livros, romances, canções, diários começados, nada com um fim. Depois descobri que isso, era justamente o que me fazia poeta, conforme o uruguaio Leo Masliah: ter projetos que jamais seriam alcançados. O Masliah diz só projetos mesmo, assim no plural, mas na versão brasileira, cantada dentre outros por Milton Nascimento – e assinada por Carlos Sandroni – esse plural ganhou a exatidão de quatrocentos mil. Senti muito a minha brasilidade nessa tradução. Contudo, ali por 2011 essa coisa me pegou. Ser poeta já era ser nada, nesse sistema todo, do mundo. Ser poeta sem obra então, chegava a ser sei lá.

Fiquei mal, em crise, pois não lia livros, não ouvia discos, não estudava, nem produzia essas coisas. Por sorte, em 2012 – o mundo acabaria ali, lembra? Pouco antes de minhas experiências com os Shipibo, com o Vale Sagrado peruano e a lavoura do café, eu, por acaso, entre o Peru e a Bolívia, passei por duas casas por onde também tinha passado o Neruda. Sobretudo com algumas conversas em San Blas, na boemia de Cusco, entendi que Neruda tinha vivido muito, quando começou a produzir mais. No entanto, tenha sim lançado coisas bastante jovem, já mais jovem que eu, lá em 2012. Por outras partes, tem histórias como a de Saramago e seu início que alguns chamariam tardio. E bem, quem é que vai dizer ousadamente, onde é que está o começo e o final das coisas? A gente começa a escrever quando resolve lançar um livro ou outro, ou quando principia a vida, as experiências, bagagem e memória que vamos levando, ao caminho, imaginações, confabulares todos? Nesse caso, o que sinto: não há poesia, prosa, literatura, música, política, trabalho e tempo livre. Há vida. A vida é o que deve haver. Se vivemos, somos iguais nessa condição. E ao mesmo tempo cada vida é uma. E as condições mudam. Guimarães Rosa nunca seria Pessoa. Florbela, Cecília; Clarice, Espanca.

 

Hoje eu entendo melhor, essa amiga que disse. Devo ter tratado a minha página no Facebook, a princípio, como um humano trata a própria fala, quando aprende a pronunciar. Como um faixa preta que ainda tem a faixa muito preta. Ou nem isso, como um branca tonto, pretendendo estar de volta quando ainda nem foi. Mas era tudo necessário. Pisar essas fronteiras para entender. Tirar a voz do meu chuveiro. Livrar a arte, o trabalho, o tempo livre, de uma embalagem que me deram, sem que eu tivesse querido. Amar sem espartilho nem corpete. Desencaixotar a vida e as pessoas. Era preciso zoar com esse info-mar imenso. Esse lago de tela e algorítimo. E ver minha imagem deformando. Narciso, quem sabe, aprendendo, com o tempo, a amar além. O lago, as águas. A flor, sem ter que sê-la. É que Narciso acha feio o que não é espelho, vai cantar Caetano. E como refletirá esse seu canto no texto este e o contexto de cada prisma e de cada encanto, é o que fica confiado ao Tempo.

Sem fim, sete anos depois, um pouco menos jovem e já sabendo um pouco mais o que quero – só um pouco –, estou para deixar de ter uma página como personagem fictício, no Facebook. Vou me autodeclarar qualquer coisa outra, que funcione melhor. Ou talvez não ter página nenhuma. Mas é por isso que eu: personagem fictício. Ou: taí parte da história de como, vim parar aqui.

Agora, para quê?

Vamos ver se eu consigo responder melhor a essa, com a ajuda desta coluna. Caso tenha ficado alguma dúvida: ao longo de toda a partilha aqui na ASN, eu provavelmente repetirei muitas coisas. E se me chamarem prolixo, responderei que, segundo um importante acadêmico, sou na verdade: mântrico. Outra coisa é que: não me comprometo com a verdade, nem autorizo minhas autobiografias aqui publicadas, nem invento qualquer coisa. Se minto é só um pouco – e espero parar totalmente, ainda, um dia.  Quem sabe.

Certa vez, mais ou menos por ali, início desta década, parei por acidente num encontro com o aclamado escritor português Gonçalo Tavares. Eu me emocionei ao saber que ele também era formado em Educação Física. Havia uma esperança. A possibilidade de fazer sentido. E aí, alguém fez uma daquelas perguntas surpreendentes: Gonçalo, o que é preciso para ser um bom escritor? Era mais menos assim, a questão. E o Gonçalo respondeu lindamente, levando a gente por um baita passeio por nomes e nomes da Literatura, de todos ou muitos dos cantos do mundo, evidenciando a diversidade de existências e métodos, deixando clara a variável tremenda, mas terminava meio que assim: talvez o comum entre eles, é que fossem também bons leitores.

 

Foi uma frustração inominável para mim. Eu, que tinha acabado de ganhar o direito de ser bom, por ser formado inusitadamente em Educação Física, como ao menos um dos grandes do mundo, perdia todos os direitos instantes depois, por ler tão pouco. Por ser um péssimo, distraído e indisciplinado leitor. Meu mundo caiu por um tempo. E depois, num café que eu provavelmente apenas imaginei ter tomado com ele, contestei: sim, bons leitores. Mas não necessariamente de livros. Eu descobri que lia a vida. Bem ou mal, mas com os meus olhos. Meus desvios e embaços. E que a única chance de escrever sobre esse olhar, era mesmo eu. Confirmei isso depois, em encontros paranormais com Guimarães Rosa e Manoel de Barros.

Só eu seria capaz dessa desimportância toda. E olhe lá. E vê que bom começo esse: sete páginas de Libre Office Document em Liberation Serif espaçamento simples, em plena pós-modernidade pré-apocalíptica (ou já pós-pré-ela),  para ao final revelar essa miudeza. É quase um anti-jeito de se conseguir leitores, né? Zé, ASN, perdão. E olha aqui, outra ironia: eu, que li tão pouco até quase ontem, tentando, pela leitura de outrem, obter alguma interlocução. Pois sim. Lembrando ainda que eu sou o cara que não acredita na palavra.

Mas, pensando hoje nisso que o Gonçalo disse, o que eu acho é que o comum entre bons escritores, boas escritoras é: uma profunda – e além de quaisquer aparências – solidão. Por isso não me ocupo de questionar a relatividade do que seja ser bom ou mal escritor. Pois pra mim, somos todos muito solitários. Os bons e os maus escritores. E os não-escritores também. O Saramago falava que todos somos, escritores, escritoras, embora nem todos escrevam. Eu acho que todos somos sós. E que, às vezes, surge uma tentativa louca de contato, por carência. Às vezes é trepando com tudo que vem pela frente – ou mesmo por trás. Às vezes é fazendo guerra. Às vezes é tentando captar o som de espíritos dos mortos e alienígenas, como fazia a Hilda aqui do lado de casa. E de vez em quando, é escrevendo. Cada louco, com a sua loucura.

Pra terminar, quero recomendar um filme. Acho que isso deixa a publicação mais pop, talvez cult, quem sabe até hype. É o “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera”, do sul-coreano Kim Ki-duk. Não sei se tem no Netflix. Outra coisa: todas as pessoas citadas neste texto existem, mas são muito maiores que qualquer depoimento. Um pensamento do dia: Amar é uma demanda diária de manutenção, principalmente íntima e, de vez em quando, apenas isso. Sobre a faixa preta, para efeitos legais, política e economicamente falando, ainda sou faixa marrom, ou nem isso. E também pendurei o quimono faz tempo. Vão dizer que por falta de disciplina. Eu arrisco que, nesse caso, foi só o vento.

E pra não ficarmos presos à tela, também, pra fazer valer a prática do início e pra nós, que não quisermos beber tão sós nos nossos bares, eu, realmente, sou encontrável com certa facilidade no balcão do Bar do Manoel – Estrela Dalva, assim como em outros da cidade e do mundo. E com sete anos passados, e tanta coisa mudada, já não serei mais um personagem fictício autodeclarado. Mas ainda vamos nos podendo ver por aqui. Um misto do que nos mostramos, com o que se quer ver. Viver vem sendo, também, ainda, por enquanto, esse navegar. Sobre a coluna, vamos nos vendo a cada sete dias, se eu mantiver disciplina. Espero que contendo a vaidade pra poder ser inteiro. E, se alguém tá querendo a relação desse texto com o filme: acho que os dois são mântricos, de repente. E igualmente inúteis. A vida segue sendo muito maior. E vai valer à pena, se a gente fizer que valha.

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.

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