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Maré, Mar. Amor (parte final)
"Tomates Verdes Fritos" (Jon Avnet, 1991) / Divulgação

Maré, Mar. Amor (parte final)

Por Rafa Carvalho

A segunda parte desse texto vem com tomates verdes fritos, pra acompanhar. As imagens que a ilustram são também dessa bela adaptação para o Cinema, de 1991, dirigida por Jon Avnet. Fica sendo a dica cinematográfica da semana. Ainda quero testar gastronomicamente a receita. Quando fizer, conto pra vocês.

Eu queria ter visto “Tomates Verdes Fritos” com a senhora, vó. Lá tinha uma velhinha assim, você. Uma, que cresceu louca. Que sendo menina, se vestia como menino. Que branca, convivia feliz com negros. E permitia que pessoas negras e brancas sentassem à mesma mesa no Alabama. E tomassem café juntas, em plenos tempos de Ku Klux Klan. Que matou um homem em legítima defesa, da mesma forma que aquela baiana que eu conheci na cadeia matou o ex-marido, com dezessete facadas, depois de fazer dezessete Boletins de Ocorrência na Delegacia de Proteção à Mulher, relatando as agressões e ameaças de morte que recebia constantemente. Da mesma forma que a senhora matou sua filhinha afogada no poço, vó, porque do contrário, ela cresceria nesse mundo. Esse mesmo mundo que há tanto tempo é estupidamente branco, rico e macho em sua falsa hegemonia. Que fazia lá, no tempos dos “Tomates Verdes Fritos”, as mesmas barbáries que ainda hoje. As mesmas barbáries de séculos atrás.

Minha vó, vocês veem daí como a Polícia trata os chefes do tráfico? Os políticos? E os professores? As quase crianças, adolescentes, que ocuparam as escolas? Indígenas e sem terra que invadem uma terra improdutiva roubada um dia por um grileiro? Um senador posseiro que altera, desvia e suborna tudo que “pode” para ter o que não lhe é de direito? Minha vó, há no céu um asilo? Um exílio daqui? Ou no inferno? Você já viu Aqualtune aí? A princesa africana do Reino do Congo, avó de Zumbi. Que liderou grávida uma fuga a Palmares, conquistando assim a Serra da Barriga. A senhora está com Besouro? Toninho? Sipsey? Big George? A senhora está com ela?

Enquanto vocês são só vocês, minha vó, é fácil conter. É fácil matar. Difícil vai ser quando formos todos. Mesmo. #SermosTodas. Aí não tem lote de balas de exército, polícia, milícia, que dê conta. Aí não tem choque que pare. Não tem sangue que falte. Nós morremos com ela, vó. Nós morremos com a senhora. Nós morremos, com vocês. Agora, vocês: vivam com a gente. Eu quero ver junto com Jorge – o Jorge Ben. Minha vó. Quero ver quando chegar Zumbi. A senhora, Aqualtune, Sipsey e ela, vó. Eu quero ver. Quando Cangoma chamar enfim inapelavelmente. Quando os tambores internos soarem, vencendo a supressão dos tambores físicos causada pela Ditadura em Angola e em tantos outros cantos. Quando esse chamado que vem de dentro, trouxer à tona a força interna. Nossa. Comum. Mesma que nasceu nas negras e negros que conviveram com Besouro, pouco depois de sua morte. Quando todas e todos bateram como ele batia. E lutaram, como ele lutava.

Coisa semelhante aconteceu em Cuba, né vó? Antes da coisa lá degringolar também. Mas é polêmico. Falar de Cuba. Nem me fale de PT. Comunismo. À direita, nada que vem da esquerda serve, vó. À esquerda, nada que vem da outra esquerda serve. À esquerda se mata sozinha. Aliás, minha vó, Roque Dalton, poeta-guerrilheiro salvadorenho. Está por aí? Coisa semelhante também, aconteceu no tempo de Atos dos Apóstolos, não foi, minha vó? Mas é polêmico, juntar Cristo com Macumba. Juntar Favela com Governo. Etiópia com Jeová. Salomão com Ayahuasca e caboclo seringueiro. Juntar Homem com Mulher. Juntar Mulher com Mulher. Homem com Homem. Tudo hoje é polêmico, minha vó.

No fundo, vai ver, é sempre uma questão humana. Né, vozinha? Se o Cristianismo não funcionou na prática, assim como Cuba. Se os partidos de esquerda não conseguem fazer uma aliança, ou sequer uma conversa. Se o PT falhou tanto em seu governo, apesar dos avanços inegáveis. Se o status, curtidas e imagem, valem na prática o que jamais valeriam. Se os movimentos sociais se perdem. Sempre, na mesma encruzilhada. Se eu, que escrevo isso sem certeza de nada, erro tanto.

Ainda não conseguimos #SerTodos, vó. Talvez para isso seja preciso cada qual ser todo, primeiro. Cada qual disposto, em si, inteiramente. A se ser. E daí sim. E aí sermos. Constelar é algo que ainda não conseguimos, vó. Por isso, talvez, as coisas sem luz prosperem tanto no mundo. Por isso talvez até nos filmes seja difícil viver, vó. Nos falta a serenidade que o Mar pode ter, minha vó. Essa coisa de lagoa mansa e densa que a senhora sabe bem. Essa luz que não é branca, imprescindível, que não é do Sol e que só dá no fundo, vó. Do Mar. De nós.

Ela tinha Mar no nome, vó. Ela era de Maré. Ela com certeza foi pro Mar. Passou à Calunga Grande. E refletiu ao céu. Nova estrela aí, vozinha. Feminina. Amor. Luz negra. Que pensando bem aqui, qualquer de nós pode morrer assim. E se a gente fica, mesmo errando o que seja, é pra seguir. Pra conseguir. E o dia – ou noite – que for desejável a esses poucos, matar a cada qual dos muitos que somos, pela mesma razão que a quiseram morta, vai ser a exata hora em que isso não será mais possível. Daí, a esses poucos, restará também #SeremTodos. Ou nada.

Cai uma chuva mansa aqui agora. Vó. Diferente da pancada que caiu na quarta. Quando Lucina parava seu canto. Quando ela, minha vó, era morta. E eu quero ver quando chegarem. Vocês. Quando chegar Exu, com tudo, mostrando ser nada daquilo que disseram. Mas mostrando ser da conta sim de quem disse. Cada coisa dita, cada pessoa dissente. Agindo. Bem. E mal.

E se a gente segue na vida, minha vó, é uma via que segue com a gente. Eu queria deitar na areia hoje, estar no Rio quem sabe. E o Mar serenar. Sabe? Diz o ponto que toda filha é sempre menina pra mãe Iemanjá, vó. Que nos pega no colo. E não vou dizer seu nome, para que ela se encontre bem, nessa nova fase em que está. E que siga em paz e não se distraia num momento de: assimilar. Não vou dizer seu nome, mas vou bater cabeça pra ela, quando bater cabeça à minha ancestralidade, de quarta em diante. Não importando se era meia dúzia a mais de anos que tinha pra mim ou menos. Não vou dizer seu nome, mas mamãe recebeu no Mar, uma princesa preta. Guerreira, como Aqualtune. Não vou dizer seu nome, mas uma nova estrela há no céu. E o Sarau da Dalva, também é seu.

Você, querida, como cê mesma disse, não fugiu das estatísticas sendo mãe muito cedo, largando os estudos para isso. Mas depois fugiu, criando bem a filha, retomando os estudos e seguindo bem, até onde pôde. Para então não fugir das estatísticas de novo, sendo mais uma mulher negra entre 35 e 45 anos, assassinada no Brasil.

Não vou dizer mais nada. Só que depois da morte, ainda há Amor. E que enquanto houver desamor, haverá sempre luta. Que a estatística do Amor não pertence a este mundo nem seus órgãos, instituições. A estatística do Amor é incorruptível, inviolável a eterno-prazo. E ela é: sermos todas. E ela é: nem uma a menos. Por isso sim. Você sim. Você sempre. Você. Presente.

"Tomates Verdes Fritos" (Jon Avnet, 1991) / Divulgação

“Tomates Verdes Fritos” (Jon Avnet, 1991) / Divulgação

 

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.

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