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A MÚSICA COMO EXPERIÊNCIA DE PIRATARIA
O coração é bússola e... quer ver um barqueiro pleno? Dê-lhe remos. (Rafa Carvalho)

A MÚSICA COMO EXPERIÊNCIA DE PIRATARIA

Por Rafa Carvalho

Acabo de fazer uma apresentação no Carmo, centro de São Paulo. Decidimos rumar para um bar palestino, comer, comemorar. Na rua com Sabrina, à espera de um táxi com o violão na mão, os outros já vão indo… e um mendigo, morador na situação do entorno, figura da Sé, vem até mim e me dá um abraço. Apertado. Deixo o violão com Sa, pra melhorar meu retorno. E quando terminamos, ele me diz: ainda vou navegar com você, meu capitão.

Sabrina e eu seguimos em fascínio e silêncio até o bar, querendo alcançar a compreensão. Não sei se conseguimos.

Algumas pessoas sabem que o mar tem sido meu grande tema. Foi o chão de meu primeiro livro de poemas, o ambiente ao meu primeiro título de contos. O país do primeiro romance terminado ainda inédito. A essência e o fundamento de Nau Frágil, uma ação ampla, artística, também nome de meu primeiro disco. Que já estaria no ar, não fosse a pandemia do Corona Vírus.

Foram cinco, seis anos, entre o projeto começar e virar disco. Sei lá quantas composições passaram. Umas estiveram sempre, outras se foram, voltaram. Algumas que foram de vez. E aquelas que vieram no fim.

No fundo a arte é vida. E a vida… é mar.

Não há nenhuma canção chamada Nau Frágil no disco. Nunca houve. E eu me pergunto se vale usar o termo, já tão gasto entre 2014 e aqui. A imagem poética é uma barca linda, mas que já navegou bastante como outros textos, outras canções, peças de teatro, quadros, tatuagens. Então, por que usar? Se é tão fácil pra mim achar um outro nome?

Acontece que a vida é uma roda… que não precisamos inventar.

Somos barcas muito frágeis. Madeira crua. Estamos todas no mesmo barco e este barco é delicado. Nossas diversidades são quebradiças. O que nos faz comuns, também. Tudo o que podemos fazer de igual ou diferente reside no fato de estarmos humanos. Disto nascerá nossa maior força. Nisto outrossim, fica irrefutável a nossa ignorância. Somos débeis, hipersensíveis e minúsculos. Não há originalidade no mundo. O que há, ou não há: é alma.

Ainda agora eu escrevia sobre o Japão, bebendo um chá de hibiscos. E lembrei-me de que lá não se fazia propaganda do seu próprio sashimi. O motivo eu conto neste livro futuro, mas, o triste… foi dar-me conta do quanto é preciso vender o peixe por aqui. E o pior: não é o peixe em si que se vende na arte, mas a idéia de peixe.

Quando a sobrevivência é tão urgente, quando a demanda de vasão à arte é tão cortante, e não há nada na dispensa, quando é iminente cortarem sua água, ou a luz, esta venda fica ainda mais espessa. Toma o tempo da fruição, do estudo, da cadência. É cruel crescer artista pobre, longe dos centros dos círculos. Quando o marginal é alvo, já não é mais marginal. Vender a idéia do peixe na beira da praia é demais exaustivo. Pra quem nasceu pra se cansar com eles, bem fundo no mar.

Naquele dia em São Paulo, não tinha feito um show de Nau Frágil. Show… eu não me acostumo com a palavra. Naquele dia, tínhamos apresentado canções latino-americanas de luta. E aquele mendigo não entrou, não ouviu. Afinal, mendigos não são bem-vindos em quase todo o mundo. Mas então, o que ele teria visto em mim pra dizer aquilo?

Passa que quanto mais ficamos formatados pelo sistema, mais imperceptíveis nos ficam as almas. Algumas pessoas vivem o privilégio da margem, nesse caso. Quiçá: os loucos, os velhos gagás, alguns mendigos, uns bêbados, alucinados… e as crianças.

E a pirataria nisso tudo?

Bom, importa dizer que não há uma… senão várias piratarias. Mas, essencialmente, nunca fui contra. Não fosse aquele cartucho laranja de 64 jogos que meu pai me trouxe do Paraguai, o que seria de minha infância? Não jogaria depois Super Nintendo, não fosse Lobsang Alvites. Não calçaria tênis até meus dezenove anos. Não teria aquela camiseta polo pros rolezinhos no shopping aos sábados, que fazíamos pulando a catraca pra poder comprar uma casquinha mista. Não veria cinema de arte mais tarde, nem teria conhecido o som de Mauricio Pereira – que hoje é um baita amigo e tá no disco – com vinte e poucos anos na perifa de Campinas.

Essa pirataria me livrou de um tanto a mais de frustração na vida. O que importa se a barrona de Suflair que se vende no terminal é falsificada? Quando as lombrigas lhe comem as tripas por dentro, pois na TV uma criança passou toda feliz e lambuzada com uma daquelas na mão e você só viu, só passou vontade. Não tem conversa. É três por cinco e boa.

Antes, porém, vem a pirataria do mar.

Talvez tenham sido em grande maioria homens cruéis, machistas, violentos, quase répteis. Mas também: o que a humanidade deu a eles? Eram exilados, escravizados fugidos, personae non gratae, órfãos pobres, miseráveis e famintos. Ainda assim, havia uma honra, um código, como há na quebrada, nas cadeias. Havia mulheres piratas esplêndidas, homens sensatos, pessoas roubando de quem tinha demais, pra conseguir algum a quem não tinha.

Lembro-me que quando estive em Angola, barbudo e cabeludo, meus kambas malungos me diziam querer deixar que crescessem-lhe também a barba e os cabelos, mas que não deviam. Cabelos e barba crescidos eram sinal da marginalidade e até denúncia de crime. E numa fala que fiz, num evento pomposo, cheio de pessoas literatas engravatadas, TV e rede nacional, comecei pedindo que não se preocupassem afinal com minha aparência: que no país de onde eu vinha, os piores bandidos usavam mesmo terno. E gravata.

Sinto um amor quase materno por piratas. Mas detesto profundamente aos corsários. E o que é o nosso mundo hoje, ainda, se não isto? Os homens mais temíveis da Terra passam caros perfumes e usam lã fria italiana. Reúnem-se nos andares altos, saem de helicóptero, sentam nos congressos e fazem pronunciamento oficial em horário nobre. Nossos criminosos de verdade não ficam, nem sequer entram, nas prisões. Suas mãos são covardes demais para agirem de forma direta, mas são frios como uma cobra. Cheios de bodes para a expiação, eles não sabem nada do mar. Mas comandam o mundo através deles.

Qual era o crime em roubar o ouro espanhol que a Espanha roubava da América Latina? Qual poderoso país vai falar um ah legítimo sobre refugiados chegando nas barcas? Sobre a ética, quando o lastro de seus tesouros nacionais escorre o sangue alheio invadido e massacrado? De justiça, quando julgaram sem lei o destino de milhões de infelizes? Com razão, quando em sua história reina a insanidade?

Falar mal de um pirata é o mesmo que falar mal do mendigo em situação de rua. Da mãe preta solteira que rouba bagatelas pra dar de comer aos filhos. Do menino negro maltrapilho que brinca descalço na viela. Do desempregado que perambula vagabundo… Nosso sistema consiste em derrubar o camelô, falir o ambulante. E superfaturar o hospital e a merenda das escolas. Trapos não ameaçam. Fardas, sim.

Tudo bem. Mas, e a música? O disco?

Minha ideia aqui, como apresenta o título, é falar da música como uma experiência de pirataria. Falar metaforicamente de como foi esperar seis anos, ou mais, para gravar um disco. Um estúdio, pra mim, era como um palácio a um pirata, que se não vive embarcado, habita uma tenda simples na praia, com areia e chulé entre espinhas de peixe carcomidas, vestígios de rum.

O primeiro que entrei foi por acaso e justamente para acompanhar, só com os olhos e a escrita, ao estimado Gilberto Gil. De algum modo aquilo deixou os estúdios ainda mais distantes, embora talvez não devesse. Quando finalmente fui pra gravar, cheguei todo bagunçado. Um desengonço. E foi quase invadindo. Não tinha um puto no bolso. Praticamente nem tinha uma banda. A não ser dois fiéis amigos, o Cris Monteiro de todos os ritmos… e Luiz Spiga, comparsa das cordas, harmonias e os efeitos.

Naturalmente, muita gente passou por aqui. Músicos são seres errantes. Uns foram morar em outros países, outros seguem vizinhos e tomamos uma pouco antes desta quarentena. Há também as brigas, desentendimentos, sem dúvidas… a arte é um movimento avançado da alma, onde a luz do farol brilha já bem próxima, mas no entanto, se agiganta o assombro pelos egos e vaidades.

O barato é que, pensando bem, Cris e Spiga têm mesmo caras de piratas. Como eu. E como o Saggiorato que chegou em prontidão com o contrabaixo. É um jeitão de ser, sabem. Cada um com uma origem, um costume. Cidades natais, histórias de andanças, sangue correndo às artérias. Jabola marcou sua presença. Tahira veio do oriente. Túlio chegou numa missão. Surgiram meus irmãos Kariri-Xocó, os Sabukás. Um quase padrinho Mauricio Pereira. A comparsaria de Rodrigo Campos e Juçara Marçal, com seus rios e caminhos das pedras. Chicão, com o astral e as teclas. O velho e bom Toinho Melodia, bebendo nossa cervejinha na beira do cais, tranquilamente. A Izabel Padovani, com suas tantas viagens nas costas, atracada… por entre minhas vindas e idas, me aconselhando do mar.

E assim vi se formar uma tripulação. Do nada. Expedições, parcerias… um país. E é isto que um disco deveria ser. Não tive na vida nenhum tempo para protocolos, procedimentos padrões. Tanto que, quando entrei nos palácios, o fiz todo mulambento. Sem modos, etiqueta. Muito no prumo do improviso, farejando como um ancestral. Na outra mão, por infinitas vezes, a alma era tudo o que eu tinha. Para me agarrar com força. E não sucumbir… Naufragar.

Na batalha naval dessa encarnação, não me restou opção outra do que ser senão pirata. Nem me escolheria outra, na conjuntura em que ainda vivemos, mesmo se pudesse. A pirataria deve acabar quando acabarem seus motivos. Piratas devem sumir, quando desaparecer o outro. Quando restarmos somente nós. Um povo.

Até lá, sou o que sou. E vou fazendo a arte que posso, tentando que as luzes não se cortem, nem as águas. Pedindo por comida na dispensa. Atrasando condomínio. Pescando com sementes no quintal. Meus filhos estão nascendo e têm meu sangue. Aprendi que discos também são isto.

No fim, espero que Nau Frágil esteja navegável em breve. Nas infomarés daqui. Ainda tem mais gente pra embarcar, eu sinto. Mas tão logo, passando a tempestade, a pandemia, ele estará nas plataformas, ancorado. Bem dizer, o disco está lançado desde o 2 de fevereiro deste 2020. Mas por enquanto apenas em formato de texto… terra à vista. Eu sei, vão dizer que é trapaça. Mas eu digo que não: é assim que a gente sobrevive. E a nossa sobrevivência é sonhadora. É digna.

A arte que me navega só faz sentido, se junto comigo puder navegar aquele mendigo. Junto com todos os outros. A gente da minha quebrada, os vagabundos que me acolheram no abandono da estação de trem na Eslováquia, os tranqueiras que me deram de comer em Paris, as irmãs do Itatinga, da Cracolândia, os imigrantes do subúrbio de Berlim que me salvaram dos bastões dos neonazistas, os loucos, as velhas gagás como minhas avós. E as crianças… como meu filho.

Eu tava quase desistindo pela septingentésima vez… é normal querer desistir quando a missão avassala tanto… no instante em que meu filho começou a dançar e a extravasar de alegria com as músicas do disco, nos meus testes de escuta no carro, para conferir as vozes, instrumentos e os arranjos. Meu filho que sente e não racionaliza. Que dança mas não anda. Que canta, sem sequer falar. Meu filho que vive… incondicional.

Acho que provavelmente pensarei em desistir mais vezes. Mas, querem saber, nunca foi a sério. A dor dói pra valer mesmo, mas o couro engrossa. A gente nasce linda demais pra deixar tanta feiura tomar conta. É preciso seguir. Segui e seguir. Tentar, errar. Não superestimar as organizações… Que afinal, vi tudo acontecer como um dom do espontâneo. Uma nação se formar organicamente, com gente de todo canto, voluntária.

Daí, não tem jeito de parar. Não tem jeito de suprimir a arte, de abortar o disco, a viagem. Voltar atrás na travessia, não dá. Pra parar com o trânsito, o transe, e assumir o bar… ficar ali aprimorando a sinuca, fazendo minha linguiça de frango ao molho com cachaça ouro e laranja na cama de farinha de milho torrada, com outros petiscos. Vendendo cerveja honesta. Não dá pra abandonar o mar… a pirataria ao menos. E ficar ali, só pescando o almoço do dia, sem mais se ocupar de vender a transcendência dos peixes da cultura humana. Não dá.

Só vou me aposentar quando o que eu fizer não conter mais alma.

Até lá… e que este dia nunca chegue: é tapar o olho do medo, vestir as roupas da utopia, carregar a barca àqueles sonhos todos de sempre, comprar umas barronas de chocolate no terminal pras horas de ansiedade. E sair nu… seguir avante. Rezar à Madona Negra, são Cristóvão… e trabalhar a ginga, às negativas. Que eu nasci sem a linha do destino na minha mão, uma andaluza me disse…

O coração é bússola e… quer ver um barqueiro pleno? Dê-lhe remos.

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.