Capa » Blog Cultura Viva » Uma carta para quem
Uma carta para quem
Santiago em cena do filme homônimo de João Moreira Salles

Uma carta para quem

Por Rafa Carvalho

Você já escreveu uma carta? Recebeu alguma? Eu, com meus trinta e poucos anos, sou de uma geração que assistiu a essa, como a tantas outras transformações no mundo.

Na nossa rua uma única senhora tinha telefone fixo. Passávamos seu número para que as pessoas deixassem recados urgentes. Havia fila nos orelhões. Havia orelhões. Até que um dia alugamos uma linha telefônica. Os números tinham sete dígitos apenas. Para mim, ainda criança, as fichas do passar do tempo iam caindo aos poucos.

Um dia, um ladrão saltou o muro da viela e pelo buraco que uma pedra havia feito no vitrô da sala, tentou roubar nosso videocassete. Eu levei anos para ter um videogame de oito bits. Anos para ter walkman. Duas décadas, quase, para ter um discman. Uma TV minimamente boa, em que os canais pegassem mais ou menos, pelo menos. Um bom rádio. Computador, internet. Tudo pareceu demorar muito, quando eu via o mundo além da quebrada.

Hoje, eu sei que passou rápido. Meus toca-fitas e discos portáteis estão guardados com algum pó entre as bugigangas. O vídeo game foi doado e dá saudades. Os videocassetes foram esquecidos, com as fitas de aniversários, festinhas da escola infantil. Ninguém mais quer roubá-los. Quase não há mais orelhões pelo bairro. Tudo é ecrã tátil. Ou quase. Nossas memórias mais internas… talvez não.

Mas queria falar de cartas quando comecei e, a este propósito, outra coisa que sumiu por aqui, foram aquelas caixinhas de correio das esquinas das igrejas, mercearias e quitandas. Dos pontos de ônibus. Onde a gente deixava as cartas já seladas pro carteiro levar. Na minha infância, além das contas, ainda chegavam algumas propagandas por correios. E havia as promoções… aquelas. Mandava-se carta para concorrer a isto e àquilo. Rótulos recortados, formulários preenchidos. Remetia-se cartões-resposta em alguns casos raros. Alguns pediam as figurinhas que faltavam num álbum. Mas as cartas pessoais mesmo… aquelas escritas a punho, de alguém para alguém… com caligrafias, cabeçalhos e carinhos… estas, já eram raras.

Tive a sorte de ser retirado da escola na favela por dona Cecília, que Deus a tenha. Dela ter acreditado em mim e pago a inscrição num processo seletivo que levou-me a uma escola melhor, quase no centro. De lá ser indicado para maratonista de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo. De assim conhecer “Os Sertões” e me aproximar tanto de minhas raízes. Dos elementos que me assentam nas secas extremas sem que a morte nos vença. E nisso tudo também a sorte… de conhecer as amigas de longe.

Sim, uma duas horas de viagem àquele tempo, já era suficientemente longe.

Não tinha computador ainda. Não tinha dinheiro para o telefone. Restavam as cartas sociais e aquele custo incrível de um centavo por envio. Enchi caixas e caixas de cartas. Conheci cidades assim. Lares, amores. Namorei em cartas pesadas, quilométricas. Desenhei, escrevi… espirrei perfume. Aprendi palavras, rotinas alheias, dores, sonhos, cartografias. Afetos que eram reconhecidos… tinham CEP. Aprendi um tanto mais do tempo, de ansiedade. E da situação analógica dos sentimentos.

Depois, com a universidade, o circo… o ônibus pra São José do Rio Pardo virou aviões. Argentina, Dinamarca, Japão. Comecei uma nova caixinha dessas cartas transatlânticas. Já mais inserido nas nem tão novas tecnologias, criei num blog um texto que falava de minha relação com os correios. De minhas esperas sentado à calçada nos dias de entrega. Expectativas, surpresas… frustrações. Ali apresentava o carteiro do bairro, Dorival. Falava de sua rotina, que observava do bar onde eu tomava um tira-gosto todas as manhãs enquanto escrevia.

Neste texto deixei o endereço verdadeiro do bar. Fiz também uma versão em inglês, com a ajuda de uma amiga. E surpreendentemente cartas chegaram de todos os cantos. Para mim, ao Dorival… e a outros personagens dessa história. Manuscritos, desenhos, CD’s, pinturas, cartões-postais… Chegou de um tudo. Do Brasil inteiro, América Latina, EUA, Índia, Laos, Japão, Escócia, França, Nova Zelândia, Quênia…

Eu respondi a todas. Exceto a última… que devo responder logo após terminar este texto.

E foi esta a minha experiência derradeira com as cartas. Os e-mails, versões virtuais das mesmas, também não duraram muito. Ficou tudo meio curto, direto, abreviado. Objetivo demais. Talvez o mais próximo que cheguemos das cartas, hoje em dia, seja nos áudios longos que ninguém tolera. Trocamos tudo por postagens nas redes… textos curtos, vídeos curtos, músicas curtas, imagens breves, o instantâneo, #hashtags. Queremos o raso cheio de gente. Não há tempo pros mergulhos profundos solitários… ou a dois. A experiência perdeu a vez para a impressão da experiência. Para a curtida sobre o convencimento do supostamente vivido.

Mas se a nossa memória não parece acessível assim, num simples touch screen da vida… a mim ela se afeiçoa muito com o cinema. Um cinema antigo a manivela. Com rolos que se queimam fácil. Películas danificadas, cores que se alteram, lapsos, cortes, emendas. Histórias paranormais… ficção documentária.

E em se tratando de cinema, à parte das cartas de amor trocadas com uma cineasta, tive outros dois destinatários importantes: o primeiro, acreditem ou não, foi Jean-Claude Van Damme. O segundo: João Moreira Salles.

Já não lembro o ano, mas eu era um jovem universitário, num Seminário de Imagem e Pensamento organizado pelo professor Etienne Samain. Num dos encontros, assistimos ao filme Santiago, do João. E ele mesmo estava lá, para conversar sobre tudo no final. Aquele documentário mexeu demais comigo. Primeiro, a pessoa exuberante e consagrada de Santiago. Logo em seguida, um misto de fascínio em como ele sabia encantar a existência, com o inconformismo profundo sobre a quantidade de dores e a melancolia em que pareceu viver seus anos todos, talvez sem nenhum real opção de que houvesse sido algo distinto, o destino.

Depois, uma ambiguidade semelhante me acometeu sobre João. De pronto, a sua vida rica desde a infância contrastava duramente com a minha. Pensei nos acessos que teve, naquilo que pôde se permitir… luxos, privilégios. Mas também nos mimos desinteressantes e as dificuldades que isso criou. O quanto aquele filme mostrava o passar do tempo em sua vida. As mudanças… muito mais certas que qualquer condição estável pelos anos de nossas passagens no mundo. E em como ali apareciam, quase ao mesmo tempo: sua arrogância, frieza e egoísmo… mas seu coração bom, quente e comprometido; sua genialidade artística criativa… com sua condição humana pequena e até mesquinha; sua visão passiva, quase nula, ou mesmo perturbadora do devir humano… com uma semente secreta de otimismo e esperança que parecia brotar de lá, ainda que fosse a contragosto.

Eu tinha muitas dúvidas naquele instante. Tinha acabado de desistir da vida monástica, tornava de algum tempo vagabundeando por estradas brasileiras e, depois da jubilação, voltei pródigo a meus estudos acadêmicos, sem tanta certeza se usaria um dia seu diploma… a menos que acabasse preso… fato que aliás, nunca descartei.

Aquelas impressões do filme e da conversa me confrontavam em demasia. Tanto quanto o minimalismo exótico, simples e dourado, da armação dos óculos de João. Eu pensava no propósito da arte, refletia algum sentido para a vida. Cogitava minhas possibilidades, sendo quem eu era, vindo de onde eu vinha. Media meus sonhos, extravagâncias e as esquisitices. Suspeitava das sinas e do destino.

Não dormi bem àquela noite e, à plena madrugada, liguei o velho computador do quarto e… escrevi uma carta eletrônica ao Etienne, pedindo que encaminhasse a outra carta em anexo a João, por obséquio. Nesta, projetei todos os meus dilemas, perguntei, ofendi, xinguei, rendia elogios e expressei toda a minha admiração por seu trabalho, meus inconformismos e acho que até alguma inveja juvenil. Chorei sem que isso fosse visível num e-mail, gritei por socorro, segui sonhando… delirei ajuda.

Obviamente, Van Damme nunca me respondeu. Mas três meses depois de minha carta, já nem lembrava, Etienne respondeu-me agradecendo gentil por minha escrita… e contando atencioso que enviara a outra pro João como eu pedia. Aquilo me acendeu qualquer centelha, mas foi isso.

Não tive nenhum retorno.

Até que outros três meses se passaram… e eu já nem me lembrava novamente. Mas uma carta eletrônica, remetida por um nome de mulher, veio parar em minha caixa de spam, no meio das sujeiras de sempre. Intui abrir aquele e-mail, contudo. E era ele. O João Moreira Salles me respondia.

Uma carta quase tão longa quanto a minha, atenciosa. Mas que em suma me dizendo: Rafa, eu não sei.

Pareceu concordar com pequenas coisas, discordava de outras, invalidou algumas, mas tudo recaía num máximo não-saber. Era como se dissesse: apesar das tantas diferenças e qualquer avanço na idade, vantagem, experiência, privilégio… continuo sendo só mais um no mesmo barco. E não sabemos bem ainda… como essas águas funcionam. Nem sequer aonde podemos chegar, de fato, com o que temos, fazemos. Ou somos.

Foi bom ter aquela resposta. Mesmo que não respondesse nada, exatamente. Lembro do monte cartas que nunca me responderam… e com vergonha, de um outro tanto que eu mesmo deixei de responder.

Quando respondemos, mesmo se não há resposta… há correspondência. Isso é o bastante pra não ser indiferente. E indiferença… deve ser o que mais mata nesse mundo.

Agora, este texto precisa terminar. Mas nunca houve uma finalidade específica pra ele. Foi uma carta, que escrevi para você. Sem saber aonde chegar… como nas cartas em que importa só o caminho. Este tempo em que andamos juntos, nos dando as mãos, mesmo que à distância… à ponte de palavras. Uma carta dessas, onde a gente só comenta como vai a vida, conta casos, casualidades.

Resolvo então, para o fim, duas coisas.

Uma é deixar aqui os endereços:

1- Bar Estrela Dalva – A/C Rafa Carvalho
Av. Lafayete Arruda Camargo, 767. Parque São Quirino
CEP 13088-540 Campinas/SP

2- @poetante

O primeiro é o que eu deixava no texto do blog. O tempo passou, me tornei pai, criador da gatos, jardineiro… e por isso já não passo mais minhas manhãs inteiras naquele bar, escrevendo a tira-gostos. Mas continuo sendo filho. E ainda passo sempre por ali, para comprar a feijoada das quartas e dos sábados, fazer um sarau de vez em quando, comer um risole de queijo com café. Volta e meia ainda vejo o Dorival, que também ainda anda por perto. O outro, é o nome que uso nas redes, Facebook, Instagram… São ambos endereços possíveis para que possamos iniciar nossa troca de cartas. Se quisermos.

E a segunda coisa resolvida: vou dedicar ao menos algumas das próximas semanas de coluna, para escrever cartas impossíveis. Cartas aos mortos. Ou aos vivos que resistem ainda mais intocáveis que o Van Damme.

Elas estarão aqui. O que fará delas ainda uma carta como essa… nossa.

Neste tempo de recolhimento, ativações da memória, delírios futuros, saudades, incertezas, promessas de mudança, tempestades se formando, esperança… enfim, neste tempo de quarentena, isolamento social e de vivermos confinados, talvez seja bom voltarem as cartas. Não que o raso não tenha sua importância, mas… essas águas são bênçãos demais, pra deixarmos de aproveitar também o fundo. Não sei aonde poderei chegar com que o tenho, faço… ou sou. Mas sei bem o que eu quero.

E o que eu quero: é a partilha.

No mais, conto que estamos bem aqui. Fé teve um pouco de febre, mas na segunda tentativa comeu todo o macarrão integral com ovo cozinho. O crisântemo apontou seu primeiro botão. Yellow ainda sangra um pouquinho na ponta do rabo amputado, mas vai bem. Anteontem assistimos “Vermelho” do Krzysztof Kieślowski juntos. A Sa fica linda quando usa os cabelos molhados e roupas de ficar em casa. Temos romãs, bananas. E amanhã vai ser melhor.

Esperando que vocês estejam bem e num abraço,

Rafa

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.