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Carta #06
Lula fotografado por Ricardo Stuckert

Carta #06

Por Rafa Carvalho

Companheiro – chamo-lhe assim pois é isso que todas somos: companhias de mundo mesmo; humano, contemporâneo, independente de quem sejamos, do que cremos, agimos; de nos amarmos, ou não; dos santos baterem, enfim… Como vai?

Escrever-lhe uma carta a esta altura é um tiro no pé. Quem lhe ama, pode me odiar. Quem lhe odeia, pode me odiar. Mas, fazer o quê? A vida tem dessas coisas… a vida tem ódio, ou melhor, nós o mantemos na vida. Vai ano, vem ano, presidente entra, presidente sai; e o ódio segue aí: lembra um pouco esses deputados eternos, coronéis, capitães hereditários decrépitos, os meritocratas, essa turma.

Você não me conhece. Sou só mais um… como você já foi. Mas agora já faz tempo que você não é. Não é? Na minha história tem nordeste, tem sul, tem o país inteiro e ainda outros; tem indígenas que por aqui já estavam antes do país ser país, tem negro, tem branco, tem bruxo, crente, analfabeto, operário, peão; tem boia-fria, lavadeira, passadeira, empregada; tem líder popular, assassinado, tem louco, tem louca, tem tudo. Miséria, tragédia, pobreza. Tem luta; resistência. Engajamento. Fé. Esperança.

Eu nasci graças a um shopping center em – veja só você – São Bernardo do Campo. Painho era chapeiro de lanchonete. Mamãe, caixa de supermercado. Daí eu nasci; assim… como tantas de nós; como tantos no mundo.

Minha mãe simpatizava com o partido dos trabalhadores. Aprendi essa simpatia do mesmo jeito em que aprendi minha crença no Cristo. Como aprendi a gostar de banana junto, no prato fundo de comida – sempre com colher. Vi um bocado de coisa… mulher sendo internada em manicômio só por ser feliz; marajá fugindo pros States largando funcionários cheios de salários atrasados, dando golpe na receita e o escambau; vi traficante narrando com gosto como matou aquele jornalista no morro, contando como funciona o acordo com a polícia; gente morrendo no paredão por dívida não paga com o tráfico, acertos de conta; vi cabeça pendurada no bairro nos tempos mais duros; uma baiana sendo presa por matar o ex-marido em legítima defesa depois de registrar 17 boletins de ocorrência por ameaça na delegacia da mulher; vi uma mãe esfregando a cara da filhinha de 2 anos no chapiscado do muro na viela. E por aí vai… amigo levando tapa de polícia por ser preto, menino levando tiro nas costas da polícia enquanto brincava por ser pobre – e por ser preto. Caminhoneiro adulterando tacógrafo, velocímetro, pegando 160 na ladeira carregado de feijão pra não perder o frete, o dólar, com 4 noites de rebite na cabeça. Senhora se prostituindo no posto de gasolina, no trevo, na beira da estrada, confessando a vergonha de contar ao filho e pro neto o que fazia, de verdade, pra sobreviver. Gente com fome. Muita gente desesperada. Vi… muita coisa que não gostei de ver.

Mesmo assim, sei que não vi nada. Sei que a gente, o povo, vê muito pouco. Vi dois impeachments neste país. O primeiro, de Collor, vi muito menino, não entendendo nada; mas me lembro de um caos financeiro, do desespero em minha casa, de uns preços malucos, aventuras nos mercados, angústias; de aprender a palavra: inflação… E o segundo, da até aqui única presidenta que tivemos, já um pouco mais consciente da vida, achei injusto: por ser arbitrário e parcial. Eu volto nisso já já, mas… seguindo aqui com as vistas: também vi Cuba – quando estavam mandando a gente pra lá, sabe? Achei importante ir; ver. E acho importante contar: que ali, vi coisas maravilhosas; e também coisas terríveis.

A vida é assim: 8 e 80, quase sempre. 13, 45… 17. Eu não acho você santo, não. E sim, é um achismo meu. Não tenho base nenhuma pra ter certeza. Aliás, ninguém tem. Ainda assim, pessoas têm se violentado barbaramente nos últimos idos dos dias, e anos, bem pelas falsas ideias polares que assumem. Várias figuras do partido sempre me pareceram problemáticas; algumas bem influentes. Não conseguia intuir nenhum amor nelas, nada suficientemente coletivo. E o que pode uma pessoa dentro de um partido? O que pode um presidente dentro de um país? Tantos poderes, tantas instâncias. A grana fala mais alto: quem tem recorre, ganha tempo, se beneficia das brechas, não divide cela superlotada, sem qualquer condição humana: cava e compra privilégios; quem não tem, se lasca; se dana. Recentemente quando preso, você já não era mais um. Passou por tudo isso como quem tem; apesar dos tantos pesares, consideremos isso: podia ser muito pior. Como é, diariamente, pra muitos companheiros; e companheiras.

Os patrocinadores das últimas eleições todas eram sempre os mesmos pra cada candidato; ao menos entre os mais cotados. São as cifras por cima da direita e da esquerda… o mesmo malote financiando os uniformes vermelhos, os azuis… e os amarelo e verde. Que diferença faz? Que diferença fez? Vi minha quebrada mudar – pra melhor – com você; com a sua presidência. Vi um país mais querido lá fora e, aqui dentro, vi familiares saindo do barraco pra alvenaria na grande São Paulo; a energia chegando na caatinga, o aprimorar dos paus-a-pique; vi outros primos e primas, além de mim, chegando à universidade; a negritude do meu bairro também… e assim eu, que dos 100 ingressos na turma de 2003 era o único advindo da escola pública, vi este número se equilibrar cada vez mais, ano após ano. Vi a fome baixar em seus índices; senti a miséria menor. Um tanto de coisa mais e… sou grato, por tudo isso.

Mas confesso que fiquei apreensivo quando vi a galera chegando de civic 0 da concessionária, equipando tudo naquela ostentação do 0 IPI. Não que eu não entenda; eu entendo. Não que eu também não quisesse; eu quis. E nem que eu ache injusto: por mim, os porteiros e as domésticas devem sim poder ir pra Miami se quiserem; Disney, tanto faz. Mas eu sentia o imperialismo ainda imperando naquilo: ainda servíamos ao mesmo senhor; e isso me incomodava. Melhorou a cultura, melhorou a educação… mas não estávamos conseguindo construir autonomia. Não havia formação profunda; transformação real. E os novos ricos pisaram nos pobres, do mesmo jeito em que foram pisados antes. E a classe média caindo na mesma cilada de sempre. O Brasil continuou sendo terra de boi e boiada.

Eu sei que leva tempo… que quinze anos é nada pra cinco séculos de peia; pra trama tão bem tecida do capitalismo no mundo pós-moderno, globalizado. Eu sei. Mas é sempre um risco não querermos perder o gado… me entende? Se sou contra o capitalismo? Não, não sou. Sou contra a doença. Se sou comunista? Não, tão pouco. Pelo menos não do que senti acontecendo no mundo neste aspecto até hoje. Socialista… anarquista… não gosto dos rótulos. Cristão, macumbeiro, budista. Reformista, fascista, progressista: isto-ista, aquilo-ista. Dizer qual o estilo da sua música, sua corrente literária. Quando você não é nem branco, nem preto, nem índio; e nem pardo. Quando não é binário, mas também não é óbvio. Se é tão raro mas, ao mesmo tempo, tão prazerosamente piegas… e clichê. Vê, no meio desta confusão toda, eu acho que estamos nos perdendo, companheiro. Pessoas acham você e seu partido comunistas, por exemplo. Eu sinto que, pelas práticas apresentadas, não têm nada a ver. Talvez estejamos num tempo em que todos se sintam no direito de achar demais… e isto não nos tem ajudado a, de fato: encontrarmos.

Tomaria feliz uma cachaça consigo. Bateria uma bolinha, assaria uma carne quem sabe; aquele frango com linguiça. Achei sua prisão parcial e arbitrária. Como o impeachment da Dilma. Isso não quer dizer que eu defenda sua inocência soberana. Intuitivamente, defenderia mais a Dilma nestes termos. Mas, no fundo… nem a ela. Para a minha sensação, nos dois casos a parcialidade e o arbitrário se mostraram muitas vezes na punição do que em tantas outras passou impunemente em casos semelhantes, mas alheios; em olhar-se com tanta minúcia e acuidade pra coisas a que antes se fazia descaradamente vista grossa – antes e durante; e ainda depois, até hoje. Foi feio pois projetaram todos os holofotes em áreas que viviam nas completas sombras. Foi enfim sujo, como as coisas têm sido neste país desde 1500. Mas não quer dizer que tenha sido injusto, no sentido mais pleno de justiça, entende? Talvez injusto, assim, tenha sido toda a impunidade, toda essa sombra nas coisas públicas por todo esse tempo, toda exclusão popular, todo egoísmo e presunção dos nossos líderes até aqui, independente das bandeiras; o poder subido à cabeça; toda a politicagem, essa má política, o toma lá dá cá; todo o não enfrentamento de quem dá as cartas, se o jogo afinal: é injusto. Talvez impróprio tenha sido isto, companheiro: jogar esse jogo. Entende? Eu vivi num país onde uma ministra foi deposta por comprar um chocolatinho simples no cartão corporativo que não lhe dava direito à sobremesa.

Mas, sobre a gestão partidária do seu partido – e dos outros –; suas presidências – e das outras –; o que se pode dizer realmente? Quantas coisas nós, o povo, não pudemos ver? Nossos números não fazem sentido, companheiro. Nunca fizeram. Um café da manhã em Brasília, com aquele preço por cabeça, num país onde a fome, no curto tempo em que se extinguia, era ainda assim em muitos lugares às custas de farinha descendo a seco na goela da gente?; um auxílio financeiro desses, pra juiz pagar a educação dos filhos, com o salário que um magistrado tem?; e se eu pergunto tudo aqui, você sabe… esta carta não tem fim. A corrupção no país é suprapartidária; transpartidária. Quem eu senti não dando, nem um pouco, o braço a torcer neste jogo: tá morto. Foi morto. Aqui em Campinas, no Rio, no meio da caatinga baiana, da floresta amazônica… mortos.

Não acredito em nossa democracia. Não acredito nesse modelo de representação. Mas acredito ainda menos em um movimento que negue explicitamente o conceito democrático, como temos visto ser pedido por alguns atualmente. Tão pouco acredito em governo; acho. Tudo anda tão confuso… parecendo tão sem saída… Queria não acreditar neste atual presidente também, mas acredito. Acredito sim; infelizmente. Aliás, não tenho bem certeza mas… penso que minha mãe votou nele inclusive. Ela que me ensinou a simpatia dos proletariados. Ela e meus parentes todos, que saíram do barraco ou do pau-a-pique para a alvenaria, que acessaram a universidade e compraram civic’s. Esse cara é, com tristeza, um retrato do Brasil. Não geral, nem generalizando – nada é generalizado nesse mundo… Mas é. Ele é muito parecido com meu pai e com os pais da minha geração. Ele é muito parecido com você, você não acha? São tênues as linhas… elas sempre são. A que separa o romântico do cafajeste, o sensível do sem-coração; o gênio humanista do psicopata.

No fim, não estou dizendo que vocês são iguais, entenda. Com ele, por exemplo, não sinto vontade de tomar nem uma tubaína. Mas vocês dois são espectros do tal povo brasileiro, paradigmas, fantasmas disso. Mais ou menos como um rapper que sai da favela pro alphaville fica sendo uma ideia muito vaga de favelado ainda. Eu sei o quanto isso é complicado; o quanto deixa margens às más interpretações. Mas a vida é isso: tudo cercado por margens. Pra onde podemos fugir? Se não pra dentro, profundo?

Talvez a diferença principal entre vocês seja esta: ele é mais gado. Um boi que ascendeu a vaqueiro, latifundiário; mais ou menos como o orangotango de Kafka. Você é mais bravio, de fato, mais arredio às normas; mais cangaço. Todavia, o que dizer do cangaço? Foi bom, foi ruim? Foi totalmente certo, justo? E se dentro do cangaço também houvesse gado? Pois eu sinto que havia, companheiro… Que em alguma medida todos ainda devemos ser – um tanto de gados, um quanto guiados assim, no fluxo do bando, a ferro e fogo, no laço, berrante: chicote e estalo; mesmo os mais emancipados de nós. E o cangaço não foi bom, afinal. A revolução cubana não foi boa. Nada humano conseguiu ser bom totalmente ainda… e talvez nem consiga. Em tudo há maldade em qualquer proporção. Por outro lado, sempre há de haver um pouco de amor, dos bons intentos ainda… até neste que aí está – eu sei; é difícil conceber. E diante das dificuldades, do complexo momento a que chegamos, como humanidade, escolhemos preconceber as coisas, ao invés. Não estamos todos sendo um pouco totalitaristas em nossas abordagens? Nossas falas não têm trazido pequenas sementes de algum genocídio, mesmo quando disfarçadas de defensoras dos direitos humanos e pacifistas? Não há sempre um grupo de “outros” na mira das nossas sentenças mortíferas atuais?

Doeu, sabe? Ver a Paulista cheia de gente de vermelho… e na quebrada nada – ou quase nada, pra não ser sensacionalista. Dói em mim essa ideia sobre política que ainda reina nos botecos, igrejinhas de bairro, áreas públicas e peladas de fim de semana. Se acho que foi culpa sua? Não, de forma alguma. Nem acho que foi do partido. Bem dizer, eu nem acredito em culpa. Mas sinto que você tem responsabilidade nisso. O partido, ou melhor, pessoas do partido… também. Como sinto ter eu mesmo minha parte em tudo. Sou responsável; todos somos.

Mas eu não escreveria uma carta ao atual presidente. Não que não haja o que dizer senão que não há chances de diálogo. Esse é um erro e um perigo eminente que não aconteceram nas gestões suas e de seu partido; pelo menos não a este nível. Lembro quando nas últimas eleições, Brown – outro mano que muito respeito e pra quem escreveria uma dessas – lhe fez uma crítica, que depois foi usada pelo atual presidente – que parece ter esse costume com sua turma de usar muitas coisas com mé fé. A resolução então de vocês, Brown e companheiro, foi precisa: uma relação saudável, de boa fé afinal, crédito, esperança e apoio; onde era possível concordar, discordar, trocar idéias – e aqui eu volto a acentuar a palavra – e enfim: vadiar a boa ginga da convivência sendo dialógico; e dialético. E eu acredito nisso. Acredito que com você ainda tenha conversa, espaço: abertura. Acredito que você não se considere um homem pronto, infalível, sem o direito de errar; mas que ao mesmo tempo tenha um compromisso com o acerto. Acredito que mesmo você não sendo só mais um, como eu… poderia um dia responder a carta de alguém assim.

Você andava ligeiramente sumido em comparação com um passado recente, quando saiu da prisão; e eu tive a vontade de lhe escrever aqui. Comecei lentamente, nos tempos de soneca do bebê, nas raras brechas desta quarentena e… de repente: você disse “ainda bem” pro advento do corona vírus, nessa sua versão pandêmica de covid-19. Pronto: você ficou super presente de novo. Quem lhe odeia, está à solta, babando; roendo-lhe os calcanhares. Quem lhe ama, está cansado lhe defendendo ainda; contra-atacando. Todos podem me odiar aqui, pelo que lhe escrevo numa carta pública e, além disso, posso ser odiado também por soar oportunista. Fazer o quê? A vida é assim… E quem é que decifra, sem falha, o que a vida é?

Pra piorar, sabe que, infelizmente, não discordo tanto de você? É terrível pensar em cada morte causada por esta pandemia… como é terrível pensar em cada morte que, idealmente, não seria natural, nem necessária. A morte de João Pedro e de tantas crianças pretas; a morte de Marielle – e de tantas mulheres; entre elas, tantas pretas –; de tantas lideranças indígenas recentemente e desde o início; a morte de trabalhadores, gente ordinária, pessoas simples, números, índices; às vezes nem isso. Mas a natureza é sábia sim, meu companheiro. E nesse mundo, só quem dá ponto sem nó, somos nós: os humanos. É triste demais mas, talvez, tudo isso aconteça mesmo pra vermos o que não demos conta de ver por um meio mais… suave. Sinceramente porém, não acho que a mãe Terra esteja muito preocupada com os Estados… principalmente esses, cheios de homens-padrão, patriarcais, brancos, ricos, plenos de privilégios. Talvez ela esteja simplesmente se ocupando do estado de saúde da Vida em si; no planeta. Uma Vida que é maior que nós, entende? Mas de que somos parte, ao mesmo tempo.

Eu diria: que péssimo… que precisamos chegar a isto, neste ponto; mas que bom sim, que ainda temos essa chance: ainda bem. No entanto dizer que tudo ocorre em função da importância do Estado é tão rude quanto a ganância privada. Tanto cruel quanto. E é um antropocentrismo besta, aliás. O mundo viveu bem sem a gente por muito, muito tempo. E assim seria de novo, se sumíssemos agora, de repente. Simples assim. A questão é que nós: não queremos sumir. Não é?

E aqui mora o meu lamento principal: quem lhe odeia quer que você suma; quem lhe ama, quer que sumam todos que se opõem a você; lembrando que os primeiros também querem o sumiço dos seus seguidores. O drama é que quando você some: sumo um pouco de mim; independendo do que eu pense de você. Não há entre nós mais quase nenhum radical. Ninguém a fim de ir às raízes. Estamos extremos, entretanto. Polares, superficiais. E vamos sumindo ao tentar totalizar, desaparecer com o mistério das dualidades. Todos vocês que botaram a faixa no peito: foram culpados e inocentes. Todos nós, que não botamos: também. Isso, se eu acreditasse em culpa; se a nós, humanos já rodados pelo mundo, ainda fosse possível qualquer tipo de inocência.

Papo reto? Não tem revolução real, se ela não nascer de cada coração presente. Enquanto for preciso prender, exilar, extinguir… não teremos conseguido. Talvez estejamos preocupados demais com os termos. Se sou contra o Estado? Não. Sou contra as privatizações. Sou contra a doença, como já disse e, para haver saúde no Brasil: precisamos do SUS, por exemplo. E de um SUS saudável, pleno, público. Precisamos assim de um Estado presente, ativo, sem dúvidas. Não entregando o cuidado dos seus a qualquer grupo de acionistas que só enxerga planilhas e rendimentos diante dos próprios narizes. Mas ao mesmo tempo, sou sim contra os Estados… entenda minha aparente – e real – contradição. Afinal, por que na Europa os Estados são diferentes do nosso, aqui, se o lastro de ouro dos seus bancos nacionais, tem ouro nosso? Se o sangue nessa posse, agora deles, é ainda o sangue nosso? Por que somos tão pretensiosos? Por que pré-sal? Por que sangrar tanto a nossa mãe assim? Por que só lembrarmos quando perdemos? E onde vamos chorar a morte de nossa mãe, quando não houver mais Terra, pra pisar?

Eu não sou brasileiro, companheiro. Sou terráqueo. Meu corpo não aceita menos que isso. E no fundo, somos mais. Os minérios fundadores das estrelas estão distribuídos por dentro de nós. Somos universais; companheiro. Minha raiz é nômada, cigana… e eu não engulo essas linhazinhas traçadas à mão nos nossos mapas. Não engulo um irmão haitiano sendo ofendido dentro de um trem em São Paulo; nem engulo ser ofendido aonde quer que eu chegue nessa Terra. É tudo nosso, companheiro. Tudo deveria ser… nosso. Ninguém devia ficar fora disso. Ao mesmo tempo, ninguém devia ser indiferente a isso; se irresponsabilizar por isso.

Vê, não tem direita sem esquerda. E vice-versa. Alguns fundamentos vão sumindo e… vamos ficando cada vez mais mancos, arrastados. Não sei o que acho do Nobel, mas de todo modo, não via sentido prum Nobel da Paz, pra você. Estamos em guerra civil, companheiro. E você percebe o quanto somos responsáveis por isso? Estamos numa guerra fria, violenta e covarde, sem coragem de dar a cara a tapa. Ainda assim, estamos nos esbofetando. Não houve paz ainda. Você não é um herói. Nós não precisamos de heróis. Nem de você, nem dele. Nós não precisamos de pastor pra tocar o gado; rebanho. Também não precisamos de lobo em pele de cordeiro; bode expiatório… O que nós precisamos mesmo é nos humanizarmos enfim. Temos que nos libertar. E depois, libertar aos bois, os rios, os lobos; a Mãe.

Tá difícil hoje, sabe? Um gato que a gente resgatou do lixo me mordeu fundo no braço. Só porque eu fui tirar ele do nosso lixo da pia, pra não virar bagunça – não passa necessidade, o bichano; pegou na veia o dente e agora querem furar minha barriga com antirrábica, fazer tomar antibiótico… A semana tá tensa; manter uma família não é fácil – nem sobre o pão, nem sobre afeto… Tá complicado ver os que estão muito mais precisados que eu, companheiro; dolorido mesmo… E por aqui, tudo cancelado; nada de trabalho remunerado à vista… tem mais uma criança vindo aí; a gente tá tentando diminuir as contas, o mercado, começamos a plantar comida em casa, mas… ainda não tem nada pra colher… essas coisas levam seu tempo, né? No meio disso tudo eu parei de comer dois dias na semana: como cinco e, na segunda e na quinta, só assisto a família comer. Isso me faz pensar no meu vô, baiano: ele comia o que sobrava, companheiro; quando sobrava… e isso só quando tinha, porque às vezes… não tinha pra ninguém. Nós aqui ainda temos, felizmente… mas eu quis sentir esse vazio, sabe? Quis lembrar o que é estar privado neste nível. A maré baixa é perigosa, companheiro. Enrosca o barco que não tem os costumes. A vaca magra… tem nem brejo aonde ir.

Sei lá, Lula… nunca foi tão difícil amar, como é hoje. Estamos todos exaustos. Mas é justamente por isso, que nunca foi tão importante nos amarmos. E eu amo você. Sou grato a você, sou crítico a você. Sou incerto a você; como a todos e a tudo. Só sei que sonho com você sendo apenas mais um… de novo. Talvez quando nosso estado for diverso e único. Talvez no fim das mortes que não sejam naturais nem necessárias. Talvez quando não houver bandeira pra jurar… quando vamos todos jurar a terra, a água e o ar… os minérios, os bichos e as plantas e… nós. Talvez quando todas as cores forem nossas; bem como todas as direções. Quando tudo for político e público no mais essencial sentido do: comum. Talvez quando chegar a utopia dos anarquistas mais sensatos. Talvez, quem sabe, sem precisarmos de outra dessas. Não é?

Não quero ser pessimista. Nem otimista demais. Simplesmente: ainda bem… Que temos uma cachaça possível pra tomar. E aquela bolinha ainda… pra bater.

Num abraço,

Rafa

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.