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Com Museu e Centro de Estudos, Campinas entra na rota mundial da cultura da paz e memória afro
Casarão da Fazenda Matto Dentro é tombado como patrimônio histórico municipal (Foto Adriano Rosa)

Com Museu e Centro de Estudos, Campinas entra na rota mundial da cultura da paz e memória afro

Por José Pedro Soares Martins

De ponto de chegada na rota mundial da escravidão no século 19 a espaço estratégico, de alcance internacional, de disseminação da cultura da paz e preservação da memória afro-brasileira nas primeiras décadas do século 21. Campinas está passando por essa transformação em função do projeto do Museu da Paz e Centro de Educação, Memória, Estudos e Cultura Afro-Brasileira, que serão instalados no Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim por iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

O Museu da Paz e o Centro de Estudos serão estruturados no casarão e outras instalações da histórica Fazenda Matto Dentro, que hoje abriga uma unidade do Instituto Biológico e o Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim. “Será um complexo com museu vivo e dinâmico e um centro de estudos concentrando e integrando ações de políticas públicas com foco na cultura da paz e igualdade racial”, define a secretária municipal Eliane Jocelaine Pereira.

A secretária Jocelaine na sede da Unesco em Paris (Foto Divulgação)

A secretária Jocelaine na sede da Unesco em Paris (Foto Divulgação)

A viabilização do Museu da Paz e Centro de Estudos

Ela nota ter assumido a Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, em 2017, com vários objetivos e metas voltadas para a implementação de uma política de cultura da paz e igualdade racial no município. Uma das ações nessa linha foi o esforço que resultou na Lei Complementar nº 250, de 10 de dezembro de 2019, estabelecendo a cota de 20% de vagas em concursos públicos municipais para negros. O primeiro edital seguindo essa norma legal. para vagas abertas na Fundação Municipal para Educação Comunitária (Fumec), foi publicado m março de 2020.

Neste contexto de promoção da cultura da paz e igualdade racial evoluiu o projeto de estruturação do Museu da Paz e Centro e Educação, Memória, Estudos e Cultura Afro-Brasileira, que se tornou viável em razão de um Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC) estabelecido no âmbito do Ministério Público – 24a Promotoria de Justiça de Campinas.

O TAC se refere a uma área que durante muito tempo foi utilizada como depósito de resíduos industriais na Macrorregião Sudoeste (Administração Regional 12), no denominado Sítio São João. Em 2018, a Promotoria fez a proposta de TAC para a empresa de matriz norteamericana Honeywell, nova proprietária da área e que aceitou os termos apresentados.

Como os recursos referentes ao TAC, e que deveriam ser pagos pela Honeywell, da ordem de mais de R$ 400 mil, não poderiam ser depositados diretamente para órgãos municipais, coube à Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos encontrar uma alternativa e a solução natural foi a parceria com a representação da Unesco no Brasil.

Museu promoverá a cultura da paz e os direitos humanos (Foto Adriano Rosa)

Museu promoverá a cultura da paz e os direitos humanos (Foto Adriano Rosa)

A parceria da Unesco com Campinas

“É mais do que conhecido e reconhecido o trabalho a Unesco com a cultura da paz e a memória da escravidão e, também, a sua competência na execução de projetos semelhantes”, comenta a secretária Jocelaine. Ela já esteve pessoalmente na sede da Unesco, em Paris, conhecendo ações da agência das Nações Unidas nos dois campos.

Desde 1994, por exemplo, a Unesco desenvolve o projeto “A Rota do Escravo: Lições do Passado, Valores para o Futuro”, que busca justamente resgatar a memória da escravidão e estimular o debate visando a erradicação das chamadas formas modernas de trabalho escravo, que continua vigente inclusive no Brasil. Desde 1995, mais de 50 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no País, em ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), do Ministério do Trabalho.

A secretária Eliane Jocelaine Pereira lembra igualmente que a Unesco vem realizando vários trabalhos expressivos no Brasil, no campo da museologia social, como no caso do Museu de Congonhas: Centro de Referência do Barroco e Estudos da Pedra, implantado pela Fundação Municipal de Cultura, Lazer e Turismo (FUMCULT) da Prefeitura de Congonhas (MG).

A Unesco também atua em conjunto com a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro – SMC-RJ, no âmbito do Projeto de Cooperação Técnica Internacional, para promover a conservação e a gestão compartilhada do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, inscrito na Lista do Patrimônio Cultural Mundial em 9 de julho de 2017. O Cais do Valongo foi o maior porto de chegada de escravos na América Latina. Estima-se em mais de 1 milhão de escravos que passaram pelo sítio, considerado portanto um dos principais locais de referência da diáspora africana.

Cerimônia de assinatura do TAC em 2019 na Prefeitura de Campinas (Foto Divulgação)

Cerimônia de assinatura do TAC em 2019 na Prefeitura de Campinas (Foto Divulgação)

Espaços no Parque Ecológico

De acordo com a secretária Jocelaine, os valores correspondentes ao TAC firmado na esfera do Ministério Público já foram depositados na conta da Unesco no Brasil, que por sua vez abriu o processo seletivo para a escolha dos profissionais que trabalharão na implantação do Museu da Paz e Centro de Estudos. Essa etapa, diz a secretária, corresponderá à montagem de um acervo digital, que servirá de base para as primeiras ações dos futuros espaços.

As instalações do casarão da Fazenda Matto Dentro estão sendo reformadas pela Secretaria Municipal de Serviços Públicos, para futuramente abrigar o Museu e Centro de Estudos. A previsão é de implantação completa dos espaços entre dois e três anos, mas já em 2021, no pós-pandemia, algumas atividades já devem ser iniciadas, acredita a secretária Jocelaine.

“A Fazenda Matto Dentro é muito simbólica em termos do período escravocrata em Campinas”, assinala a secretária. “O casarão reproduz a tradicional estrutura de moradia dos senhores na parte superior e a senzala na parte inferior. Agora será um espaço de produção de conhecimento sobre a cultura da paz e da memória afro, fonte para teses acadêmicas e território para manifestações artísticas diversas. A história do povo negro contada por ele, através da metodologia da história oral e cartografia social, e não do ponto de vista do colonizador”, descreve.

Mas o projeto é ainda mais amplo, lembra Jocelaine, pois também prevê a estruturação de espaços em sintonia com a vocação de educação ambiental do Parque Ecológico. Estão previstos ambientes como jardins sensoriais, inclusivos e acessíveis para pessoas com deficiência e sem deficiência, e trilhas adaptadas, visando universalizar o acesso aos recursos naturais do Parque Ecológico de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, como idosos, gestantes e crianças pequenas, no escopo de atividades de educação ambiental.

“É muito importante essa interlocução internacional sobre a cultura da paz e memória afro. É preciso passar a limpo a história da escravidão e do racismo, pois muito tempo o Brasil viveu o mito da democracia racial. Precisamos de políticas integradoras e a equidade necessária, para que o Brasil não seja mais um dos países mais desiguais do mundo. Para tudo isso é fundamental uma reflexão a partir da cultura, do resgate, da memória”, conclui Eliane Jocelaine Pereira, evidenciando alguns dos fundamentos dos novos espaços que colocarão Campinas no roteiro de exposições e debates internacionais sobre a  cultura da paz e valorização da cultura de matriz africana. Bases para avanços civilizatórios no século 21 que começou tão dramático e cercado de incertezas.

MATTO DENTRO: HISTÓRIA E FUTURO

A Fazenda Matto Dentro é uma das áreas mais representativas da história de Campinas e de seus ciclos econômicos, dos períodos do açúcar e café no século 19 às novas vocações nos séculos 20 e 21. Em 1806 a propriedade tinha um engenho de açúcar, do tenente-coronel Joaquim Aranha Barreto de Camargo.

Na segunda metade do século 19, o engenho se transformou em fazenda de café, tendo sido uma das mais primeiras a receber a cultura que tornou Campinas uma cidade de destaque no cenário estadual e nacional, durante várias décadas com o uso da mão-de-obra escrava.

A crise do café, na década de 1930, impactou a economia local, nacional e internacional. Em 1937 parte da Fazenda Matto Dentro foi vendida ao governo de São Paulo para a implantação de unidade do Instituto Biológico (IB), uma das primeiras instituições do futuro polo científico e tecnológico de Campinas, uma das vocações da cidade.

Na Matto Dentro, o Instituto Biológico passou a implementar pesquisas de sanidade animal e vegetal, através de criações de suínos, eqüinos e bovinos e campos experimentais de diversas culturas. Em sua mais recente reforma, a antiga Estação Experimental de Campinas passou a ser denominada, pela Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, de Centro Experimental Central do Instituto Biológico e recentemente Centro Avançado de Pesquisa em Proteção de Plantas e Saúde Animal- CAPSA.

Os parcelamentos de remanescentes da antiga fazenda Matto Dentro originaram vários bairros na Região Leste de Campinas. No final da década de 1980, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SMASP) criou o Parque Ecológico Monsenhor Emilio José Salim, em parte da propriedade. O Parque passou depois para a gestão do município.

Com área de 110 hectares e projeto paisagístico assinado por Roberto Burle Marx, o Parque Ecológico foi concebido para a recuperação e proteção de uma área de 2.850.000 m2 – com 1.100.000 m2 aberta ao público – com espécies da flora brasileira, espécies nativas da região da bacia do rio Piracicaba e algumas espécies exóticas, sobretudo de palmeiras. O Parque tem quadras poliesportivas e muito espaço para lazer e educação ambiental.

As instalações históricas da Fazenda Matto Dentro, como o casarão e tulha, foram tombadas pelo Condephaat, do patrimônio estadual, pela Resolução 34 de 10/05/1982. Em 14 de março de 2002 o Condepacc, do patrimônio municipal, tombou o Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim, incluindo os edifícios – Casa Sede, Casa Anexa, Tulha, Capela e Remanescentes Arquitetônicos, inseridos no Grau de Proteção Um (GP1) e áreas verdes Projeto Paisagístico de Roberto Burle Marx. Agora, com a instalação do Museu da Paz e Centro de Estudos a antiga fazenda será espaço para outra das vocações campineiras, para a solidariedade.

 

 

 

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