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Cresce em Campinas o movimento contra leilão de prédio histórico restaurado da Lidgerwood
Antiga fábrica da Lidgerwood, onde estava o Museu da Cidade (Foto Martinho Caires)

Cresce em Campinas o movimento contra leilão de prédio histórico restaurado da Lidgerwood

Por José Pedro Soares Martins

Com o apoio de artistas, arquitetos, historiadores e cidadãos em geral, cresce em Campinas o movimento contra o leilão do prédio histórico da antiga Fundição Lidgerwood. O edifício que abrigou o Museu da Cidade entre 1993 e 2016 pertence ao governo de São Paulo, que anunciou a intenção do leilão do prédio e da área como parte do programa estadual de privatização.

O Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas (IHGGC) vem liderando ações questionando a intenção do governo paulista. Um Manifesto contrário ao leilão, e pela transferência do edifício histórico para Campinas, foi lançado pela Comissão de Cultura da Câmara Municipal.

“Diante da deterioração do prédio da antiga Fundição Lidgerwood e do recente anúncio da intenção por parte do Governo do Estado de São Paulo de leiloar a edificação e a área, nós que assinamos este manifesto nos dirigimos ao governo estadual e à Prefeitura Municipal de Campinas para apelar a essas duas esferas pela manutenção e conservação do prédio, bem como sua transferência ao município para fins de preservação da memória”, defende o Manifesto, redigido após debate promovido pela Comissão de Cultura da Câmara, com a participação de vários envolvidos no processo histórico de luta pela preservação do edifício da Lidgerwood.

O documento lembra que “a edificação foi construída em 1885, sendo uma das primeiras fábricas de Campinas, localizada na área central da cidade. É um importante patrimônio arquitetônico, histórico e cultural, mas que, desde a década de 1990, vem sendo ameaçado, inclusive por projetos de obras viárias que felizmente foram barrados pela mobilização de profissionais e ativistas da Cultura. Graças a essa luta, o prédio foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc), tendo abrigado, entre 1993 e 2016, o Museu da Cidade, que reunia acervos da fusão entre os museus Histórico, do Índio e do Folclore a partir de concepções museológicas mais contemporâneas, dinâmicas e integradoras, voltadas para a valorização da diversidade cultural.  Mesmo com o estado deteriorado do local e com a retirada do acervo do museu, inúmeras atividades envolvendo cultura imaterial como capoeira, ensaios, teatro, exposições e saraus continuaram a ser realizadas no local, tendo sido suspensas devido à pandemia”. O edifício foi igualmente tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat – Resolução SC-68 de 19/12/2017).

Já assinaram o Manifesto, entre outros, os vereadores Paulo Bufalo, Paolla Miguel, Gustavo Petta, Mariana Conti, Guida Calixto e Cecílio Santos, os historiadores Sonia Fardin e Américo Baptista Vilela, o arquiteto Luiz Antonio Toka Aquino, Mauro Antonio Guari (da Associação Amigos do Museu da Cidade) e a Representação Popular, pela Sociedade Civil, no Conselho Municipal de Política Cultural. O abaixo-assinado pode ser acessado no endereço https://bit.ly/2RHcIZo

Pátio com cisterna do edifício Lidgerwood após restauro e instalação do Museu da Cidade, em 1992 (Foto Acervo Ana Villanueva)

Pátio com cisterna do edifício Lidgerwood após restauro e instalação do Museu da Cidade, em 1992 (Fot0 Ana Villanueva)

Ícone do Patrimônio Histórico de Campinas

Uma das primeiras indústrias de Campinas, a Fundição Lidgerwood começou a operar em 1886. Um século depois, em 1987, a ameaça de derrubada do prédio gerou um forte movimento preservacionista, com ativa participação do arquiteto e ex-prefeito Antônio da Costa Santos, que resultou na criação do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc), a 17 de dezembro de 1987, pela Lei Municipal nº 5.885, assinada pelo prefeito José Roberto Magalhães Teixeira. Originalmente o Conselho era denominado  Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico de Campinas.

Em 1990 o prédio da antiga Lidgerwood foi tombado pelo próprio Condepacc e depois restaurado, sob coordenação da arquiteta Ana Villanueva. As ameaças permaneceram e em 2016 a Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS), empresa ligada ao governo de São Paulo e proprietária do prédio, manifestou o interesse em reaver a sua posse. Com isso, o Museu da Cidade teria que ser transferido, o que realmente aconteceu. A CPOS é a empresa responsável pelas soluções de engenharia elaboradas para os órgãos da administração direta e indireta da administração estadual.

Naquela oportunidade, já houve um forte movimento da sociedade civil e o então governador, Geraldo Alckmin, chegou a prometer ao prefeito Jonas Donizette que enviaria um projeto à Assembleia Legislativa, transferindo a propriedade do edifício histórico para Campinas, o que nunca aconteceu.

“O governador disse entender o valor que o imóvel, que é histórico e tombado como patrimônio histórico, além do bem cultural que ele abriga, representam para a nossa cidade. Por isso, concordou em suspender o processo de comodato que, por ter chegado ao fim, obrigaria Campinas a devolver o imóvel. E, com a lei a ser votada na Assembleia, será possível acertar a doação em definitivo para a cidade”, afirmou o então prefeito Jonas Donizette, após encontro com o governador. Agora o governo estadual anuncia a intenção de leiloar o prédio e a área, o que motiva nova e forte mobilização.

Município se mobilizou pelo restauro do prédio

O Município de Campinas se mobilizou pelo restauro do prédio histórico da Lidgerwood, lembra a arquiteta Ana Villanueva, uma das signatárias do Manifesto contrário ao leilão do edifício e que participou do debate promovido pela Comissão de Cultura da Câmara Municipal.

Na época responsável pela Coordenadoria do Patrimônio Cultural de Campinas, da Secretaria Municipal de Cultura, a arquiteta coordenou o projeto de restauro do edifício, que ainda era de propriedade da Fepasa, antes de passar para CPOS, mas com cessão de uso para o Município de Campinas, para a instalação do Museu da Cidade.

Ana Villanueva observa que os recursos do restauro foram bancados pela CBPO. A arquiteta observa que na oportunidade do restauro, entre 1991 e 1992, o secretário municipal de Cultura era o historiador Célio Turino que se empenhou pelo projeto. Turino também assina o Manifesto contrário ao leilão do edifício histórico. Na época o prefeito era Jacó Bittar e o vice-prefeito, o arquiteto Antônio da Costa Santos, que tanto se empenhara pela preservação do prédio.

Salão principal do edifício Lidgerwood após instalação do Museu da Cidade, em 1992 (Foto Ana Villanueva)

Salão principal do edifício Lidgerwood após instalação do Museu da Cidade, em 1992 (Foto Ana Villanueva)

Sob a coordenação de Ana Villanueva, o projeto foi executado com a participação da historiadora Sonia Fardin e outros servidores municipais. O projeto de restauro, objetivando a instalação do Museu da Cidade, recebeu o Prêmio “Arquitetura Santa Marina”, na Primeira Bienal Internacional de Arquitetura do Recife (PE), em 1992.

A arquiteta lembra que o projeto de restauro foi desenvolvido seguindo-se algumas premissas, como a participação da comunidade na definição do uso. A função definida foi então a de que o edifício seria aberto para vários eventos, de artes plásticas, dança e música, sempre mantendo-se a inter-relação com o prédio.

Ana Villanueva nota que foram igualmente seguidas as diretrizes da Carta de Veneza, documento datado de maio de 1964, aprovado no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, realizado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos (ICOMOS). Considerado um avanço conceitual em relação à Carta de Atenas, de 1933, a Carta de Veneza estipula que a conservação de edifícios históricos deve acontecer de modo sistemático, mantendo-se o seu uso em benefício de toda a sociedade.

Uma das diretrizes para o restauro, diz Ana Villanueva, foi a de que o espaço da nave central tivesse o pé direito duplo. Anteriormente, o espaço tinha um piso e um sótão. O pátio dos fundos, por sua vez, contava com uma cisterna coberta e que foi localizada após uma intervenção artística. Como o espaço seria multiuso, foram previstas as instalações de livraria, auditório e café, que no entanto não chegaram a ser executados.

Foram materializados três ambientes: (1) a nave principal para atividades museológicas e um mezanino que ao mesmo tempo recuperava a dimensão histórica do piso e poderia oferecer um espaço de eventos se ligando ao auditório, o que também não chegou a ser executado: (2) o espaço administrativo e de arte- educação; e (3) e os dois pátios, sendo que no pátio dos fundos foi construído um bloco de sanitários e onde foi descoberta a cisterna, que foi exposta com iluminação própria.

Ana Villanueva lembra ainda que todos os ambientes de conectavam e eram visíveis. “As marcas do tempo foram expostas, como por exemplo a pátina das paredes da nave central”, acrescenta a arquiteta. Os novos elementos introduzidos, ela completa, sempre seguindo as diretrizes da Carta de Veneza, foram implantados de forma harmônica com o conjunto do edifício.

Ela cita como exemplos as novas esquadrias, que foram produzidas em ferro fundido como as originais, porém pintadas em cores diferentes. As autênticas eram em preto, e as novas, em marrom. A tubulação, por outro lado, ficou externa, para que não foram destruídas as alvenarias. E os vãos de portas e janelas, que eram fechados, foram abertos.

A arquiteta cita ainda que o bloco de sanitários foi executado em tijolos para garantir a harmonia com a edificação, porém sendo usado como revestimento no sentido horizontal para demonstrar sua contemporaneidade. No piso dos pátios, foram utilizados paralelepípedos, para assegurar a continuidade do piso externo.

Optou-se também, cita Villanueva, por não voltar a fachada da esquina da rua Lidgerwood com a avenida Andrade Neves, pois a existente já tinha seu valor de antiguidade. Os letreiros escritos LIDGERWOOD na fachada estavam bem fracos e foram repintados, conclui a arquiteta responsável pelo restauro, que indicava a intenção do Município de Campinas de garantir a preservação e uso adequado do espaço.

“Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de cada povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradições seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores humanos, as considera um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade”. Este é o primeiro parágrafo da Carta de Veneza. Que ela inspire os atuais gestores na decisão sobre o futuro do prédio histórico da Lidgerwood, uma das empresas que abriram as portas para o processo que levou Campinas a ser uma referência internacional em inovação e criatividade.

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