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Lavagem das Escadarias da Catedral de Campinas completa 30 anos e simboliza reparação, fé e (ainda) a luta contra o preconceito
Comunidades das religiões afro-brasileiras na lavagem das escadarias da Catedral: a forte influência na cultura de Campinas e do Brasil (Foto Martinho Caires)

Lavagem das Escadarias da Catedral de Campinas completa 30 anos e simboliza reparação, fé e (ainda) a luta contra o preconceito

Por Adriana Menezes

“Quem construiu a catedral foram os escravos; como não podiam entrar, faziam a festa lá fora.” Nas palavras de Maria Aparecida dos Santos, de 71 anos, isso explica a Lavagem da Escadaria da Catedral Metropolitana de Campinas, realizada há 30 anos no Sábado de Aleluia pelas comunidades das religiões afro-brasileiras. Para comemorar a 30ª edição realizada ontem, a paranaense de pele branca que participa da lavagem desde a sua primeira edição, e m 1985, saiu de casa na manhã deste sábado às 9h, caminhou toda a extensão da Avenida Francisco Glicério até a Catedral, onde ajudaria na venda das camisetas da Barraca de Mãe Dango, uma das criadoras do evento juntamente com Mãe Corajacy, cujos nomes oficiais são Mam’etu Oyacorajacy (Inzo Musambu M’Boti Ofulá) e Nengua Dango (Inzo Musambo Hongolo Menha).

 Em frente à Catedral, as comunidades cantaram e dançaram ao som dos tambores, todos vestidos de branco, como já é tradição


Em frente à Catedral, as comunidades cantaram e dançaram ao som dos tambores, todos vestidos de branco, como já é tradição

“Isso aqui é reparação, fé, cultura e relacionamento”, disse Mãe Dango em seu pronunciamento durante a lavagem.  O ato nasceu como demonstração de resistência ao preconceito e à exclusão dos negros e suas heranças religiosas ainda no final do século XX. “Para dizer que nossa cultura é de fé e nossa religiosidade é de força”, completou Mãe Dango, recordando a primeira vez em que as comunidades se uniram em Campinas para fazer a lavagem das escadarias, quando as lideranças diziam: “Eu vou na frente porque se tiver que apanhar, eu apanho.”

O secretário municipal de Cultura, Ney Carrasco, e o diretor de Cultura, Gabriel Rapassi, receberam os agradecimentos de Mãe Dango e Mãe Corajacy

O secretário municipal de Cultura, Ney Carrasco, e o diretor de Cultura, Gabriel Rapassi, receberam os agradecimentos de Mãe Dango e Mãe Corajacy

Hoje a cerimônia da lavagem das escadarias faz parte do calendário oficial de eventos da Secretaria de Cultura de Campinas, e teve ontem a presença do secretário, Ney Carrasco, e do diretor de Cultura Gabriel Rapassi. Toda a estrutura municipal de serviço prestou apoio ao evento, como Emdec (no trânsito) e Setec (na organização das barracas).

Diversidade de fé e de cor

O cortejo com as comunidades que vieram de Piracicaba, Mongaguá, Monte Mor, Paulínia, São Paulo, Hortolândia e diversas cidades do Estado saiu da Estação Cultura e percorreu a extensão da 13 de Maio até a Catedral, onde chegou por volta de 11h30, no ritmo dos tambores. As primeiras palavras foram de saudações e reverência a Nossa Senhora da Conceição. Em seguida, as comunidades dançaram e cantaram os cânticos afros. No final, a água perfumada de alfazema lavou as escadas da Catedral e as mães e pais de santo distribuíram cravos brancos e salpicaram a água perfumada na população.

A lavagem simbólica das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, desde 1985, representa a resistência ao preconceito ao negro e suas heranças culturais

A lavagem simbólica das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, desde 1985, representa a resistência ao preconceito ao negro e suas heranças culturais

Ivone Galdino, de 81 anos, chegou às 9h para se posicionar na grade de isolamento, assistir de perto a lavagem e ganhar a bênção de Mãe Dango com a água de alfazema salpicada em sua cabeça. “É a primeira vez que venho. Sou católica, mas eu respeito e queria a bênção. Valeu a pena esperar”, disse Ivone com um maço de cravos nas mãos. Além dos religiosos e praticantes das religiões afro-brasileiras (de todas as cores), o evento atrai curiosos de todas as religiões. Ainda assim, em todas as palavras das lideranças, o real motivo da manifestação é lembrado: a “luta contra a intolerância ao nosso povo”. Mãe Dango falou sobre o passado recente, quando em 85 ainda havia o medo da violência contra a manifestação, e também fez referência ao passado de escravidão: “Estamos esquecidos há 500 anos”.

No País de todos os credos e todas as cores, negros e brancos celebram juntos o ato de resistência ao preconceito contra os negros e as práticas religiosas de herança africana

No País de todos os credos e todas as cores, negros e brancos celebram juntos o ato de resistência ao preconceito contra os negros e as práticas religiosas de herança africana

 Preconceito e exclusão

Praticamente no mesmo horário, ontem também aconteceu no Rio de Janeiro uma manifestação dos moradores do Morro do Alemão, em protesto à morte de Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, atingido na cabeça por um tiro de fuzil. Com bandeiras e balões brancos – a mesma cor dos trajes usados na lavagem da escadaria da Catedral de Campinas -, os moradores protestavam contra a violência, também como ato de resistência ao preconceito e à exclusão com a qual convivem as comunidades daquela região. A morte de Eduardo ganhou espaço na grande imprensa e teve repercussão nacional.

Mas a morte do filho de Maria José Lima Santos, a Maria do Acarajé, de 44 anos, há cinco meses, não teve a mesma repercussão. Ele morreu atropelado, em frente à sua casa, em Paulínia, e ninguém foi responsabilizado por isso. O olhar baixo e o silêncio de Maria sinalizaram que ela preferia não falar sobre o assunto. Falou de outro filho, de 10 anos, que tem para criar, sozinha.

 lavagem das escadarias propriamente dita, com água perfumada de alfazema, começou por volta das 13h de sábado, sob os olhares de um público que aguardou a manhã inteira pelo ato

lavagem das escadarias propriamente dita, com água perfumada de alfazema, começou por volta das 13h de sábado, sob os olhares de um público que aguardou a manhã inteira pelo ato

Maria montou sua barraca de tapioca em frente à catedral, onde estavam instaladas todas as barracas. Só não levou acarajé porque já havia outros vendendo o quitute baiano. Famosa por seus acarajés, a baiana de Jequié participa de grandes eventos que acontecem nos principais clubes e nas maiores escolas e condomínios de Campinas. O período de maior movimento é o das festas juninas. Mas ela conta que não foi sempre assim. “Fiquei três anos numa fila de espera de uma escola para conseguir levar minha barraca. Eles diziam que era comida de umbanda.”

 

 No palco montado ao lado das barracas, grupos musicais de percussão acompanharam as canções religiosas da cerimônia


No palco montado ao lado das barracas, grupos musicais de percussão acompanharam as canções religiosas da cerimônia

Heranças históricas

Maria saiu de casa para trabalhar aos 13 anos. “Naquele tempo (há 30 anos), uma vez por mês colocavam numa rádio de Jequié anúncios de mulheres de São Paulo procurando empregada. Eu fui trabalhar numa casa na Rua Oscar Freire, em São Paulo, mas fiquei só três meses. Fiquei desempregada e sozinha. Até que um dia bati na porta de uma casa porque eu estava com fome e com frio. A mulher me acolheu e eu trabalhei lá até meus 18 anos. Até hoje falo com ela, que me trata muito bem”, conta sua história.

A baiana que professa o Espiritismo Maria José Lima Santos, de 44 anos, é conhecida como Maria do Acarajé; participa da lavagem há quatro anos com sua barraca de tapioca

A baiana que professa o Espiritismo Maria José Lima Santos, de 44 anos, é conhecida como Maria do Acarajé; participa da lavagem há quatro anos com sua barraca de tapioca

Depois que saiu dessa casa, Maria foi trabalhar para outra família, onde ficou até os 27 anos. “Foi o INSS que me colocou aqui, porque demoraram tanto para me pagar o que eu tinha direito pelo meu trabalho que eu comecei a vender acarajé. Hoje eu vivo disso.” No evento da lavagem das escadarias, Maria participa há quatro anos. “Demorei um pouco para entender a lavagem. Hoje eu entendo que é uma forma de mostrar que somos todos iguais, porque a festa acolhe todo mundo.”

A paranaense e praticante do Candomblé Maria Aparecida dos Santos, de 71 anos, participa da lavagem desde a primeira edição, em 1985, e hoje ajuda na barraca de Mãe Dango, uma das criadoras do evento

A paranaense e praticante do Candomblé Maria Aparecida dos Santos, de 71 anos, participa da lavagem desde a primeira edição, em 1985, e hoje ajuda na barraca de Mãe Dango, uma das criadoras do evento

Sobre Martinho Caires

2 comentários

  1. Claudia Marisa Teixeira

    Maria, guerreira!!! Linda reportagem!!

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