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É possível “salvar a Terra nos limites do capitalismo?”: pergunta pós-Estocolmo em 1972
Cantareira secou em 2014: mudanças climáticas e desafios para a gestão (Foto Adriano Rosa)

É possível “salvar a Terra nos limites do capitalismo?”: pergunta pós-Estocolmo em 1972

Páginas da história ambiental – X

Por José Pedro Martins

É possível “salvar a Terra nos limites do capitalismo?” Esta foi uma das perguntas dos debates que seguiram à publicação do relatório “Os Limites do Crescimento”, do Clube de Roma, e à Conferência de Estocolmo, de 1972. São questões ainda muito atuais no debate ambientalista global, e que vão marcar por exemplo a Conferência de Paris em dezembro de 2015 sobre as Mudanças Climáticas.

A publicação de “Os Limites do Crescimento” e as conclusões da Conferência de Estocolmo provocaram, efetivamente, importante controvérsia na comunidade internacional, em função das várias questões levantadas, entre elas a da finitude dos recursos naturais e sobre quais caminhos a adotar. Vários debates importantes se seguiram aos dois eventos e um deles, ainda a  13 de junho de 1972, foi promovido em Paris, pelo Clube do “Le Nouvel Observateur”, com a participação de Edgar Morin, Edmond Maire, Edward Goldsmith, Herbert Marcuse, Michel Bosquet, Philippe Saint-Marc e Sicco Mansholt. O tema: “Ecologia e Revolução”. A elite do pensamento ambientalista, cientítico e corporativo, discutindo um tema crucial. O conteúdo do debate é um importante termômetro para avaliar como estava a temperatura planetária em termos da discussão dos temas em questão.

No debate, Sicco Mansholt assinalou como o grande desafio era encontrar formas de aproximar Primeiro do Terceiro Mundo. Ele criticou o diretor-geral da FAO, que em Estocolmo assinalou que “o homem não podia deixar de utilizar pesticidas e inseticidas”, considerando a necessidade de aumentar a produção de alimentos para uma população em constante crescimento. Mansholt se perguntou, então, “para onde vamos se continuarmos a lançar nos rios e nos mares quantidades cada vez maiores desses produtos”.

Edmond Maire, secretário-geral da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), que reunia em sua maioria os trabalhadores cristãos, destacou como a instituição já se preocupava com a questão do consumismo da sociedade industrial, mesmo antes da divulgação de “Limites do Crescimento” e da carta de Sicco Mansholt a Franco Maria Malfati. O sindicalista notou que a pouca adesão às críticas à sociedade consumista devia-se ao condicionamento cultural do indivíduo, o que na sua opinião não seria atingido com o endeusamento da natureza. “A abordagem ecológica deve situar-se num conjunto e não se centrar num ruralismo mítico ou num utópico regresso à natureza”, sustentou Maire, para quem a participação da população – totalmente consciente e esclarecida com uma informação permanente – nas decisões sobre o seu futuro era essencial.

Metropolização (como em Campinas) cada vez maior no mundo: quais, então, os limites do crescimento?

Metropolização (como em Campinas) cada vez maior no mundo: quais, então, os limites do crescimento?

Michel Bosquet, redator do “Le Nouvel Observateur”, depois de fazer uma brincadeira com Sicco Mansholt (“nunca devemos desesperar completamente  de um velho social-democrata”), disse que a ecologia, “pelos parâmetros novos que ela introduz no cálculo econômico, é, virtualmente, uma disciplina essencialmente anticapitalista e subversiva”. O jornalista comentou então alguns desses novos parâmetros, relacionados aos conceitos caros à chamada Economia Ecológica, muito em voga na transição dos séculos 20 e 21: “Enquanto o único ´otimo` conhecido da contabilidade capitalista é o aumento do capital, o lucro, a ecologia introduz parâmetros extrínsecos: a administração ótima dos recursos naturais do ambiente, dos equilíbrios biológicos; a procura do máximo de durabilidade, de valor de uso, e já não de valor de troca; a satisfação e o desenvolvimento ótimo dos homens no seu trabalho e fora dele, e já não o rendimento e a produtividade máxima do trabalho do ponto de vista do capital”.

Tecnologia dá conta? – O ambientalista britânico Edward Goldsmith interveio no debate, sustentando que não existiria, na sua opinião, “solução tecnológica para os problemas criados pelo desenvolvimento econômico”. Questionou em seguida o organismo mundial discutido em Estocolmo, batizado de “Earthwatch”, que teria o objetivo de “verificar globalmente o nível de todos os poluidores”. Esse mecanismo seria na sua opinião inviável, por ser impossível verificar os impactos combinados das milhares de substâncias poluentes existentes.

Goldsmith comentou em seguida que a sociedade industrial foi “a única que fixou a noção de progresso como objetivo. Ela é apenas uma em vários milhares estudadas e descritas pelos etnólogos. Existe apenas há cento e cinquenta anos, enquanto o homem existe na terra há pelo menos um milhão de anos: o equivalente a dois dias na vida de um homem de 50 anos. Ora, todas as sociedades viáveis que conhecemos se opunham a qualquer desvio perigoso”, disse, contestando o conceito de pobreza, que seria “muito mais que a privação de bens materiais. É um estado de espírito – um estado de desmoralização que as condições urbanas criadas pelo desenvolvimento não podem senão agravar. Ivan Illitch escreveu: ´A industrialização não elimina a pobreza, moderniza-a`. Acontece o mesmo com o desemprego”.

Goldsmith pregou então uma “mudança radical de orientação da nossa sociedade. Teremos sem dúvida de desenvolver uma sociedade descentralizada, organizada em comunidades muito mais pequenas, capazes de dirigirem a si próprias e possuidoras, portanto, da condição principal da estabilidade. Essa descentralização permitirá também reduzir ao mínimo a pressão da população sobre o ambiente. Por outro lado, é provável que tais sociedades possam satisfazer-se com um consumo de recursos e de energia sensivelmente inferiores, o que reduziria igualmente a criação de poluidores”.

O sociólogo Edgar Morin – que depois cunharia a expressão Sociedade Complexa, para caracterizar o caráter multidimensional do conhecimetno necessário para o século 21 – participou do debate comentando inicialmente que a consciência ecológica é a consciência da dependência do ser humano dos ecossistemas, que estão sendo destruídos pela lógica da civilização industrial. O que está em xeque então é a própria civilização ocidental baseada, a seu ver, em três princípios organizadores, “que se tornam atualmente os princípios da sua ruína: a separação cartesiana do homem-sujeito num universo de objetos a manipular (funamento do humanismo moderno); a ciência concebida como conhecimento objetivo que não se preocupa nem com o seu sentido nem com o seu fim, e que, por isso mesmo, se torna no instrumento dos poderes e das potências; por último, a concepção burguesa, e depois marxista, do homem conquistador da natureza, que acaba por se tornar no Gengiscão dos subúrbios solares”.

Como socializar - e não privatizar - a natureza?

Como socializar – e não privatizar – a natureza?

O ecologista francês Philippe Saint-Marc defendeu por sua vez que, na sua opinião, “o único meio de proteger a natureza está em socializá-la”. E mais: “É preciso libertar as cidades da ditadura dos engenheiros e, para que elas se tornem vivas, é preciso reintroduzir nelas a poesia. Mas para mudar este sistema nefasto de desenvolvimento é preciso atacar as forças econômicas, técnicas e políticas que dele beneficiam. É um problema político que reclama um combate e um debate democrático pela conquista do poder”.

A participação talvez mais esperada no debate foi a do filósofo alemão Herbert Marcuse. Observou inicialmente que a oposição à Guerra do Vietnã, então em curso nos EUA, era um dos aspectos da rebelião planetária, em sintonia com a questão ecológica. “A guerra, genocídio contra o povo, é também ´terricídio` na medida em que ataca as fontes e recursos da própria vida. Não basta acabar com os homens vivos: é preciso proibir também a existência àqueles que ainda não nasceram, queimando e envenenando a terra, desfolhando as florestas, fazendo saltar os diques”, disse.

Genocídio e terricídio –  Para Marcuse, “o genocídio e o terricídio na Indochina constituem a resposta capitalista ao esforço ecológico revolucionário de libertação: as bombas visam impedir a reabilitação econômica e social da terra empreendida pelo povo do Vietnã do Norte. Mas, num sentido mais lato, o capitalismo de monopólio embrenhou-se numa guerra contra a natureza, tanto a natureza do homem como a natureza exterior”.

Na sua opinião, não existe possibilidade de “salvar a Terra no quadro do capitalismo”, e defendeu que “a luta por uma extensão do mundo da beleza, da não-violência, da calma, é uma luta política. A insistência nesses valores, na restauração da Terra como ambiente humano, não é só uma idéia romântica, estética, poética que apenas diga respeito aos privilegiados: hoje, é uma questão de sobrevivência”. (In “Ecologia contra poluição”, Novos Cadernos D.Quixote, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1973)

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