Por José Pedro Martins
A violência contra a mulher é um monstro que destrói a autoestima, provoca horror, gera um oceano de dor e, muitas vezes, causa a morte. Para combatê-la, uma discussão muito mais ampla e aberta sobre o tema, a proliferação de serviços de proteção e apoio às vítimas e nada de projetos como aqueles que proíbem o debate de questões de gênero em escolas. A visão é de uma das maiores especialistas brasileiras sobre violência doméstica e contra a mulher, a psicóloga Lucélia Braghini, que há mais de 30 anos atende, diariamente, a vítimas desse monstro, como profissional do SOS Ação Mulher e Família, de Campinas. Ela falou com exclusividade para a Agência Social de Notícias.
Lucélia se formou na PUC-Campinas em 1982, fez mestrado em Educação na Unicamp e Doutorado em Saúde Mental na mesma Universidade. Tem vários cursos de especialização, atuação como docente e é autora do livro “Cenas repetitivas de violência doméstica: um impasse entre Eros e Tânatos” (Campinas, Editora da Unicamp; São Paulo, Imprensa Oficial, 2000), indicado ao Prêmio Jabuti de 2001. Ela também escreve para várias publicações, como “Wall Street International”.
A psicóloga explica que, no SOS Ação Mulher e Família, atende aos casos de demanda espontânea, ou seja, das vítimas que procuram voluntariamente o serviço para superar os impactos, dores na carne e na alma, de alguma modalidade de violência. São as pessoas que “entendem ter um sério problema e que precisam ser ajudadas”.
INDIGNAÇÃO
Convivendo há décadas com o monstro, Lucélia Braghini não se cansa de se indignar com a violência doméstica e contra a mulher. “Me assusta, me deixa indignada e muito triste reconhecer que existe um lado sombrio no ser humano que é tão avassalador. É muito triste saber disso”, diz a especialista, que ficou recentemente horrorizada com dois casos que tiveram ampla repercussão na mídia nacional e internacional, os de estupros coletivos contra uma jovem no Rio de Janeiro e contra outras três no Piauí.
“Me deixa absurdamente estarrecida, sobre o que o ser humano é capaz de fazer. A civilização veio para o ser humano controlar os seus impulsos, seus instintos, e às vezes a besta selvagem que o homem tem dentro de si toma conta”, lamenta a profissional. Estudiosa há décadas do assunto, Lucélia nota ser antigo o debate em torno de teses como a de que o ser humano seria essencialmente bom, sendo a sociedade que o corrompe. “É uma discussão antiga. Volta e meia as coisas que o ser humano é capaz de fazer me deixam impressionadas”, admite ela, tão experiente na questão.
CULPA PELA VIOLÊNCIA
Para a especialista, a tese da capacidade de corrupção pela sociedade, pelo ambiente em que se vive, “não explica tudo”. Da mesma forma, a violência não poderia ser explicada apenas pela ausência de uma educação adequada, no momento certo, ou seja, nos primeiros anos de vida.
“Não estou contestando a teoria sociológica não, em absoluto. Mas acredito em um ser humano ativo, que não é apenas produto do ambiente. É ativo, capaz de modificar a si e ao seu ambiente”, avisa Lucélia Braghini.
Ela avança um pouco mais nessa visão: “Independente de nossa herança, do nosso legado, dos papeis estereotipados que assumimos, somos capazes de recriar nossa história, de nos transformarmos e de transformar o ambiente em que vivemos”.
Nesse sentido, a visão de que “sou cruel porque meu pai e mãe foram cruéis comigo” pode ser uma “desculpa esfarrapada”, acredita a profissional do SOS Ação Mulher e Família. Ela explica: “A pessoa que cresce, torna-se adulta, passa a ser dona de sua vida, faz escolhas e é responsável por essas escolhas. A partir disso não dá para jogar a culpa nas costas da família, da própria sociedade, da cultura”.
Sim, a sociedade impinge papeis e padrões de comportamento. “Mas posso dizer não a esses padrões”, diz a terapeuta. “Posso ser uma pessoa diferente. Às vezes falta boa vontade ao ser humano. Falta vontade de crescer, de algo mais. Estamos aqui para crescer, estamos nesse planeta evoluir e isso muitas vezes falta no ser humano. Às vezes impera o sadismo de ver o sofrimento do outro”, completa.
A VIOLÊNCIA CRESCE?
Outra controvérsia que não é nova, reconhece Lucélia Braghini, refere-se ao suposto avanço da violência contra a mulher. Pergunto então a ela se é possível comparar o status da violência contra a mulher no momento em que começou a atuar no SOS Ação Mulher e Família, em meados da década de 1980, em pleno início da redemocratização do país, e o panorama atual, segunda década do século 21, em que a mídia constantemente noticia casos com esse perfil, o perfil do monstro.
“É uma pergunta difícil de ser respondida. Alguma informação estatística pode apontar o aumento da violência doméstica. Mas tenho dúvida se o que aumentou foi a notificação dos casos ou a violência propriamente dita. Não dá para responder, mas o fato é que a violência continua acontecendo em nossas famílias e que a mídia tem ventilado muito mais o assunto”, diz a especialista.
Também é um fato, nota Lucélia, que há uma clara contradição na sociedade contemporânea. “O ser humano tem avançado vertiginosamente na área da tecnologia, temos n exemplos de produtos chamados de última geração. No entanto, no que diz respeito ao comportamento, em algumas atitudes o ser humano se mostra tão privimitivo quanto na idade da pedra”, completa a estudiosa, reforçando, então, a urgência para que uma atenção ainda maior do poder público e sociedade em geral para a questão.
CULTURA DO ESTUPRO
A chamada cultura do estupro, expressão muito utilizada na repercussão sobre os casos já citados, é um dos principais sintomas de que o monstro continua à espreita. Para Lucélia Braghini, a cultura do estupro é “o triunfo do conservadorismo na cultura, são os valores conservadores se manifestando”. Em outras palavras, é a manifestação “de como é difícil mudar antigos valores, de como alguns valores estão entranhados na alma das pessoas”.
E esse conservadorismo não se trata de um desafio local, regional ou continental, alerta a profissional do SOS Ação Mulher e Família. “É algo universal e milenar. Espancar a mulher porque traiu o marido acontece em muitos lugares. Esse pensamento está introjetado no inconsciente coletivo, além da minha própria história, da minha herança pessoal”, entende ela.
O que fazer, então, para derrotar o monstro? Não há mágica, não há solução única, mas tudo aponta para um conjunto de ações, envolvendo múltiplos atores, em diversas frentes. De qualquer modo, Lucélia acredita que a mudança deve levar tempo. “Não é algo para nossa geração. Algumas gerações vão passar”, afirma, com um misto de tristeza e realismo nos olhos.
DISCUSSÃO PÚBLICA, AMPLA
“Como se muda isso? Fazendo o que estamos fazendo, levando a público, discutindo, revendo, levando o assunto ao maior número de pessoas”, defende Lucélia Braghini, com a autoridade de estar há muitos anos diante do monstro e seus efeitos, cruéis e devastadores.
Esta é uma diferença real, assinala. “Antes tudo podia ficar abafado, hoje as coisas vêm a público mais facilmente que antigamente. A violência doméstica, contra a mulher, é uma discussão com muito maior frequência na mídia, que tem trazido assuntos polêmicos”.
Mas, reitera, a mudança é longa. “Com mais discussão vamos mudando valores, mas isso é lento, é de geração para geração. Gerações para gerações, no plural”, corrige.
SERVIÇOS MAIS FORTES
Por experiência, e muita experiência, própria, a terapeuta destaca que o fortalecimento e a ampliação de serviços, como o próprio SOS Ação Mulher e Família – além de Delegacias da Mulher e outros – é fundamental para um combate permanente, visando a derrota do monstro. O objetivo, que deve ser coletivo, da superação da violência contra a mulher.
“Hoje há mais serviços, mais acesso, mais espaço para reflexão, há muita procura de pessoas por atendimento psicológico. Isso é importante como sinal de mudança. Há 20 anos procurava-se mais o advogado que o psicólogo”, comenta a profissional.
Ela explica a sua visão: “O advogado, que é muito importante, é visto como uma autoridade pela usuária, que a vê investida do poder de dar um susto no marido. Mas não é ela que coloca limite, é alguém de fora que coloca limite para ela. Isso mudou. Hoje o psicólogo é mais procurado pelas pessoas para uma introspecção, para a autoanálise, o que é muito bom. Só a parte legal não é suficiente, é muito comum termos mulheres que se separam dos parceiros judicialmente mas continuam na mesma casa, sob o mesmo teto, e isso é complicadíssimo porque tem algo que ela não consegue romper”, salienta a especialista.
A existência, então, de maior número e de serviços de atendimento mais fortalecidos representa, então, um salto no sentido de derrota do monstro da violência doméstica, da violência contra a mulher. E, claro, maior avanço em termos de legislação, como a contribuição dada pela Lei Maria da Penha.
“Foi um grande avanço. Antes o parceiro tinha liberdade de ação. Sem coerção, podia deitar e rolar. Hoje já existem instrumentos de coerção, embora em muitos casos não sejam fator intimidatório da violência”, ressalta Lucélia Braghini.
Mas estes são os aspectos externos, fundamentais, da lei, recorda. “Existem os aspectos internos, emocionais, que podem continuar dolorosos”, acrescenta. Aí entram os serviços de acolhimento e atendimento, como o próprio SOS Ação Mulher e Família.
A METAMORFOSE, O NASCIMENTO DA BORBOLETA
Porque a transformação é possível, ela acontece, atesta Lucélia Braghini, de novo do alto de sua longa trajetória como terapeuta de mulheres, muitas, vítimas de violência doméstica. Ela faz a anatomia da metamorfose, da mulher humilhada, com autoestima muito baixa, para a mulher empoderada, protagonista. A gênese da borboleta.
“Não é um fato isolado que leva a mulher a transformar a sua vida. É um conjunto de fatores. A primeira coisa é perceber que a mulher existe, que é uma pessoa e merece respeito. Para ela ser respeitada e se dar o respeito, não no sentido popular que se vê por aí”, relata a especialista.
Passo importante nesse sentido é trabalhar a autoestima, continua. “É a melhoria do autoconceito. Se gosto de mim não vou permitir que outra pessoa pise no meu calo, não vou ficar quieta”, esclarece.
Porque em muitas ocasiões não se trata apenas da dependência econômica, por exemplo. “Muitas vezes a dependência não é econômica, mas emocional. Aí a mulher na relação, no lugar de vítima. Nesse lugar de sujeição e ela precisa sair da sujeição, mostrar ao parceiro que ela pensa, tem desejos, seus próprios valores como pessoa, tem os mesmos direitos que o parceiro. Que pensa, faz escolhas”, descreve a terapeuta.
Muitas vezes a mulher se sujeita à violência, diz Lucélia, “porque não concebe e não consegue tocar a vida sozinha. É o ruim com ele, pior sem ele, aquela filosofia popular. Ela fica na relação, mas precisa dar o salto, ter a percepção de que é capaz, de que consegue dar a volta por cima”.
Não é uma transição fácil, comenta. “Vai ser difícil, mas consigo dar a volta por cima. Esse despertar é fundamental. Por isso é muito usado o termo empoderamento, porque a mulher quando chega aqui está fragilizada e precisa se fortalecer. Se fortalecer em todos os pontos de vista. No acompanhamento psicológico ela pode manifestar as fragilidades dela, ser entendida, valorizada como ser humano. É a percepção de que deve ser respeitada como ser humano, pelo que ela é. E ela não está acostumada ser respeitada, não tem parâmetro de ser respeitada. É tudo muito novo”, prossegue a terapeuta, resumindo como é o processo de acolhimento e escuta da mulher vítima de violência e que busca o atendimento psicológico.
Nessa escuta, algumas perguntas são muito importantes. “Uma pergunta que faço muito às mulheres é: no que ele te nutre? Você precisa dele para quê? Faço muito essa pergunta para as mulheres e encontro muitas respostas interessantes. As mulheres então refletem sobre porque continuam com o parceiro, o que ganham se continuam com ele, e a dependência paulatinamente pode ser rompida”.
A terapeuta conclui, reiterando a relevância do atendimento psicológico para a mulher superar os traumas e as feridas da violência: “Em qualquer situação nova bate a insegurança, me pergunto será que dou conta, que consigo? Dá um frio na barriga romper uma situação e se adaptar a outra, criar raízes em outro mundo. Será que consigo sustentar meus filhos, dou conta? Pois esse casal um dia sonhou construir uma família. Em algum momento esse casal se amou de alguma maneira. É difícil abrir mão de tudo isso e começar do zero. No que vou me apoiar? Se a mulher está muito fragilizada ela não consegue. Mas ela pode sim aprender a se defender e a dar passos gigantescos”.
O QUE NÃO FAZER: IMPEDIR O DEBATE DE GÊNERO
Se está claro o que deve ser feito – ampliar o debate, expor e discutir o problema, fortalecer os serviços de acolhimento e atendimento e melhorar os instrumentos legais e eventualmente policiais à disposição das vítimas -, Lucélia Braghini também está convicta do que não deve ser executado, no combate sem tréguas ao monstro. São iniciativas como o projeto, em curso inclusive na Câmara Municipal de Campinas, que proíbe a discussão de questões de sexo e gênero nas escolas.
“Esta é a família conservadora que se sente ameaçada. Esta proposta é o triunfo dos valores antigos tradicionais, e não se trata apenas de não aceitar os direitos LGBT, mas de manter os papeis tradicionais do homem e da mulher. É o triunfo do patriarcado, da ideia do homem público na rua e da mulher como dona de casa. São valores ainda presentes, apesar dos propalados avanços que vemos em tecnologia, na mídia”, diz a profissional do SOS Ação Mulher e Família.
Lucélia Braghini entende que projetos como esse, vetando a discussão de questões de gênero na escola, prejudicam os avanços, não contribuem para o combate à violência contra a mulher. “Há meninas abraçadas na rua, de mãos dadas, mas o velho caminha junto com o novo. Os valores tradicionais convivem com os novos, então a reação existe. E essas propostas são prejudiciais ao impedir o avanço da discussão, isso é evidente”, avisa a especialista.
UMA LUTA COLETIVA
Ficou cristalino. O monstro da violência contra a mulher, o monstro que carrega a cultura do estupro no seu corpo e em seu conjunto de valores, anda por aqui e ali. E para combatê-lo, e para vencê-lo, apenas uma luta coletiva, um esforço permanente, uma ação em várias frentes, afirma Lucélia Braghini, que já conheceu centenas, milhares, de mulheres vítimas do insidioso, do brutal, do inominável, do nada humanista ou civilizatório.
“Precisamos de milhares. Para a gente avançar não basta uma cabeça só pensando. Precisamos muitas cabeças, pensar e agir coletivamente. Disseminar esse pensamento para o número máximo possível de pessoas”, adverte.
Lucélia Braghini conclui, renovando o apelo para a luta conjunta, sistemática, contra o monstro da violência contra a mulher: “Vamos continuar batalhando nas esferas públicas, mas também em termos dos indivíduos. Continuar investindo em educação, no sistema judiciário, também no marco das políticas públicas, precisamos disso. Um trabalho coletivo, não isolado”.