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Prudente de Moraes, “precursor” do Salão Internacional de Humor de Piracicaba?
À esquerda, ala do Museu Prudente de Moraes com referências às sátiras ao ex-presidente (Foto Adriano Rosa)

Prudente de Moraes, “precursor” do Salão Internacional de Humor de Piracicaba?

Por José Pedro Martins

A revista “Don Quixote”, dos tempos heroicos do humor na imprensa brasileira, adorava pegar no pé do presidente Prudente de Moraes. E não faltou motivo, considerando que o primeiro presidente civil do Brasil, entre 1894 e 1898, conviveu com muitos problemas e convulsões de ordem política, social e econômica. Uma caricatura publicada no número 35 da revista, de 1895, tornou-se clássica. A ilustração mostra o presidente correndo, com a legenda lapidar:  “Mas o chefe do Estado, prudentíssimo e ali ao lado, retirou-se sem cair na cova que lhe fora destinada”. Teria sido Prudente de Moraes um “precursor” do Salão Internacional de Humor de Piracicaba, que neste sábado, dia 27 de agosto, inaugura a sua 43ª edição? Com as muitas caricaturas e charges que lhe foram destinadas, Prudente teria instalado a vocação piracicabana para o humor, para criticar os donos do poder?

A mesma “Don Quixote” dá pistas que podem corroborar uma resposta positiva a estas indagações. A revista foi fundada por ninguém menos que Angelo Agostini, italiano nascido em 1843 e que no Brasil desde os 16 anos tornou-se um dos desbravadores do humor gráfico no país.  Vivendo primeiro em São Paulo, já aos 21 anos Agostini editou “O Diabo Coxo”. Depois morando no Rio de Janeiro, criou a “Revista Illustrada” e, também, a “Don Quixote”, cujo nome, assim citado com a grafia original, em homenagem ao personagem lendário de Cervantes, era a encarnação de seu espírito mordaz e demolidor.

Pois Prudente de Moraes tornou-se alvo da pena de Agostini. O presidente nascido em Itu, em 1841, e que faleceu em Piracicaba, em 1902, era chamado na “Don Quixote” como “Prudente de Mais”, uma referência ao seu suposto imobilismo diante de crises consecutivas ocorridas durante o mandato.

Página da edição 35 da "Don Quixote", de 1895, em que aparece no alto à direita Prudente de Morais em "fuga" (Hemeroteca Biblioteca Nacional)

Página da edição 35 da “Don Quixote”, de 1895, em que aparece no alto à direita Prudente de Moraes em “fuga” (Hemeroteca Biblioteca Nacional)

A realidade demonstrava que não era bem assim, muito pelo contrário. Foi durante o governo do piracicabano nascido em Itu que aconteceram as campanhas finalmente vitoriosas contra Canudos, o que rendeu vasto material para a imprensa e os seus ilustradores – lembrando que “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, um dos grandes pilares da literatura brasileira, é a crônica, dura e amarga, do conflito que teve Antônio Conselheiro no seu epicentro. O próprio Agostini é autor de uma imagem, de 1896, publicada na “Revista Illustrada”, apresentando Conselheiro repudiando a República.

Curiosamente, a “Revista Illustrada”, depois de 23 anos de atividades, encerrou o seu ciclo em 1898, o ano em que Prudente de Moraes deixou a presidência. A última edição, de número 739, foi o retrato da transição, expondo na capa Prudente conversando com o seu sucessor, o campineiro Moraes Salles, que acabava de voltar de viagem à Europa. A legenda não deixava por menos: “Em família. Conversaram animadamente sobre a Europa, as viagens, as manifestações, o estado sanitário etc. Só não trataram da política. Muito bem”. Angelo Agostini, o “algoz” de Prudente de Moraes, é o criador do “Nhô-Quim” e “Zé Caipora”, considerados personagens que ajudaram a lançar as bases das histórias em quadrinhos no Brasil. O cartunista morreu em 1910.

Prudente de Morais e Campos Salles, na "Revista Illustrada" (Hemeroteca Biblioteca Nacional)

Prudente de Moraes e Campos Salles, na “Revista Illustrada” (Hemeroteca Biblioteca Nacional)

Outros ilustradores, bem como jornais e revistas, usaram abundantemente a figura de Prudente de Moraes como “material de trabalho” no período presidencial, que coincidiu com o momento em que atuavam alguns dos expoentes pioneiros do humorismo gráfico, como K.Lixto (1877-1959) e Raul Pederneiras (1874-1953). O presidente respondia como devia, aceitando as críticas e ironias. Ele gostava e respeitava as artes e seus produtores. Esteve presente nas primeiras duas edições, de 1895 e 1896, da Exposição Geral de Belas Artes, realizada pela Escola Nacional de Belas Artes.

Instalado na casa onde o ex-presidente morou, o Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes contempla, em seu acervo, a visão satírica da imprensa sobre o homem a quem a história reservou o papel de fazer a complicada travessia da República “militar” para a “civil”. Uma vocação de Piracicaba para o humor, para a principal e mais inteligente arma de crítica aos chamados poderes constituídos (ou que ainda não chegaram lá), estava sinalizada ali? O Salão Internacional de Humor, criado por um grupo de jovens corajosos e brilhantes, em plena ditadura militar, e que chega à 43ª edição, a ser aberta neste final de semana, continua a saga mais do que centenária e agora reconhecida no mundo todo.

 

 

 

 

 

 

 

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