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“Campinas sofre de desnutrição cultural e a cidade não está se mexendo”
Marcos Garcia, disposto à luta (Foto Divulgação)

“Campinas sofre de desnutrição cultural e a cidade não está se mexendo”

Há anos Campinas não tem um teatro à altura da cidade, ao mesmo tempo em que o espaço do Centro de Convivência Cultural agoniza. Sede de região metropolitana, padece da falta de um grande festival, referência no país. Polo científico e tecnológico, não tem uma escola de arte pública, gratuita, para a formação integral. O Salão de Arte Contemporânea, que durante anos projetou a terra de Carlos Gomes, há tempos não tem uma edição. Tudo isso sinalizando que Campinas “sofre de desnutrição cultural, e o pior é que a cidade não está se mexendo”. O diagnóstico é do novo presidente do Fórum Municipal de Cultura, Marcos Garcia, que assumiu a função com a disposição de torná-lo um espaço de cobrança, de pressão, de resgate do lugar da cultura como “alimento da alma”.

O artista plástico e decorador nascido em Dracena, mas que desde os 15 anos passou a viver em Campinas, parece não temer desafios. “Com 80 dólares no bolso”, e depois de se despedir no segundo ano do curso de Engenharia, partiu para Paris, decidido “a ser artista”. Na capital francesa, sem condições de frequentar um ateliê pago, estudou em escola pública – daí a sua crítica da falta de algo semelhante em Campinas, guardadas as devidas proporções. “Falta um espaço para a formação de um artista completo, com aulas de dança, teatro, pintura”, lamenta.

Obra de Marcos Garcia (Foto Divulgação)

Obra de Marcos Garcia (Foto Divulgação)

Depois de algum tempo passou a ter aulas e a trabalhar com Luis Ansa, professor do Institut National de Restauration du Louvre, e depois com o cenógrafo Roberto Plate, com o qual realizou vários cenários para teatros franceses e para a Ópera de Paris. Em 1986, já na Bélgica, se formou em Artes pela École Superieur de Peinture Van der Kelen em Bruxelas. Realizou em 1990, após várias exposições coletivas, sua primeira exposição individual no Relais Culturel de Chaillot em Paris.

Ao todo, quase dez anos na Europa. De volta a Campinas em 1991, passou a trabalhar como artista plástico, decorador e restaurador, tendo feito, por exemplo, a restauração do painel do Salão Nobre da Ponte Preta e da Capela da Casa de Saúde de Campinas. Em 2006, restaurou a sede da Corporação Carlos Gomes, na rua Benjamin Constant – que foi pichada poucos dias depois. Foi a gota d´água para Marcos Garcia mergulhar de vez nas batalhas da política cultural em Campinas, culminando no final de 2016 com a sua eleição para a presidência do Fórum Municipal de Cultura, sucedendo a outro artista plástico, o renomado Mário Gravem Borges. “É uma questão de urgência. Os artistas precisam se mexer ou do contrário morremos todos”, diz Garcia, em entrevista exclusiva à Agência Social de Notícias, na qual comenta várias faces da paisagem cultural campineira.

Mais uma obra de Garcia (Foto Divulgação)

Mais uma obra de Garcia (Foto Divulgação)

DESNUTRIÇÃO CULTURAL

A ideia central de Garcia é a de que Campinas “sofre de desnutrição cultural avançada”. São vários os motivos para essa constatação, segundo ele. A cultura, na sua opinião, deixou de ser encarada como elemento essencial para o ser humano, “alimento da alma, fonte de beleza”. Ela tornou-se algo secundário, no contexto da sociedade de consumo e do entretenimento. Cultura passou a ser sinônimo de evento de arte ou lazer. “Cultura não é evento, é algo muito mais profundo, é fundamental para a identidade de uma cidade, de um povo”, explica, citando o caso da França, onde o ministro da Cultura (no caso, Jack Lang) chegou a ser o segundo cargo mais importante durante o governo de François Mitterrand. Esta dimensão está sendo perdida e Campinas é um exemplo disso, ele protesta. “E o pior é que a cidade não está se mexendo, está achando normal a situação, não está percebendo que a falta da cultura além do lazer contribui para a violência, para a intolerância, a homofobia”, sintetiza.

Teatro Municipal José de Castro Mendes, há anos o único teatro público da cidade (Foto José Pedro Martins)

Teatro Municipal José de Castro Mendes, há anos o único teatro público da cidade (Foto José Pedro Martins)

FALTA DE UM TEATRO

A ausência de um teatro do porte que a cidade tem é uma das principais lacunas culturais de Campinas, entende Marcos Garcia. “Nós temos o Teatro Castro Mendes, que é um cinema reformado (ex-Cine Casablanca) e isso há vários anos”, recorda. O recente anúncio do governo municipal, que desistiu da construção do Teatro de Ópera no Parque Ecológico, pegou de surpresa o artista plástico, assim como muitos outros setores da cultura local. A notícia de que o dinheiro previsto para o Teatro de Ópera seria investido na reforma do teatro do Centro de Convivência Cultural, do mesmo modo, foi recebida com reticência. “O Convivência tem problemas de construção. Vamos ver. Não sinto seriedade”, diz o novo presidente do Fórum Municipal de Cultura.

Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti”, nascido junto com os Salões (Foto José Pedro Martins)

Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti”, nascido junto com os Salões (Foto José Pedro Martins)

SITUAÇÃO DOS MUSEUS 

A condição dos museus de Campinas é um dos espelhos do “caos cultural” que a cidade vive, considera Marcos Garcia. O Museu da Cidade está em situação precária, à espera de uma definição sobre o futuro de seu endereço tradicional, as instalações do prédio histórico da Fundição Lidgerwood (ver matéria da ASN aqui). O Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC), na sua avaliação, foi transformado “em uma galeria de arte”, na medida em que não expõe de forma permanente o seu acervo. “O acervo representa a história da arte em Campinas, deveria estar exposto permanentemente”, defende. “Além disso, a iluminação não é boa e falta ar condicionado”, cita.

Marcos Garcia lamenta muito que o Salão de Arte Contemporânea de Campinas não tenha sido mais realizado, o que no seu entender representa uma grande perda. “Muitos artistas foram revelados no Salão, que proporcionava momentos de intercâmbios, de trocas, muito férteis”, constata. Da mesma forma, lembra que, por falta de apoio em Campinas, os importantes artistas plásticos Paulo Cheida e Celina Carvalho decidiram instalar o Museu Olho Latino em Atibaia, no início do século 21. Mais recentemente, há o caso do Museu de Arte Moderna de Campinas, que existia virtualmente e que, por decisão de alguns artistas, inclusive o próprio Garcia, tornou-se um “museu real”. O acervo estava exposto na Estação Cultura, mas teve que ser retirado por decisão do atual governo local, segundo Garcia. As obras foram devolvidas aos artistas, à espera de um local para a reestruturação do MAM. Marcos Garcia entende que o Museu de Imagem e do Som (MIS), instalado no Palácio dos Azulejos, tem desempenhado o seu papel. “Apesar da precariedade, o acervo está exposto e sempre há atividades de cinema, por exemplo”, diz ele. “A situação seria muito melhor se houvesse empenho em restauro e conservação do prédio onde está o MIS, um dos únicos tombados pelo patrimônio nacional em Campinas”, complementa. Muitas exibições de filmes no MIS são organizadas por coletivos de cultura.

MIS-Campinas, no Palácio dos Azulejos (Foto José Pedro Martins)

MIS-Campinas, no Palácio dos Azulejos (Foto José Pedro Martins)

FICC

Assim como muitos artistas,  Marcos Garcia diz estar indignado com a questão do Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC). Os 76 projetos contemplados no edital de 2016 não foram pagos e o edital de 2017 ainda não foi anunciado. Muitos protestos já aconteceram, a Prefeitura argumenta que a crise econômica e fiscal inviabilizou o início do pagamento, que deveria acontecer em três parcelas. “Lamentavelmente as prioridades são outras”, afirma Garcia. Ele diz que o Fórum Municipal de Cultura tentará agir para que “seja cumprida a lei”. No caso, a lei que criou o FICC.

Museu Carlos Gomes, tributo ao maestro e compositor campineiro (Foto Martinho Caires)

Museu Carlos Gomes, tributo ao maestro e compositor campineiro (Foto Martinho Caires)

CARLOS GOMES

Outra prova do “descaso com a cultura”, segundo Marcos Garcia, é o tratamento que a cidade dá para o seu maior expoente das artes, o maestro Antônio Carlos Gomes. “Pouca gente sabe que Carlos Gomes tem um museu em Campinas e que ele está enterrado aqui, na praça Antônio Pompeo, no centro”, afirma. Quanto ao Museu Carlos Gomes, instalado no Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), na sua opinião ele mereceria muito maior atenção da cidade em geral. O mesmo com relação ao próprio CCLA, um dos mais importantes patrimônios históricos campineiros. “O nome de Carlos Gomes deveria ser muito mais cultuado e muito mais valorizado, com grande retorno para Campinas. As cidades europeias onde nasceram grandes compositores fazem isso, como a Bonn de Beethoven ou a Salzburg de Mozart”, destaca.

Edifício histórico da Lidgerwood, onde funcionava o Museu da Cidade de Campinas (Foto Martinho Caires)

Edifício histórico da Lidgerwood, onde funcionava o Museu da Cidade de Campinas (Foto Martinho Caires)

FÓRUM MUNICIPAL DE CULTURA

Marcos Garcia diz que assumiu o desafio de presidir o Fórum Municipal de Cultura com um sentido de urgência. “Nossa atuação não será partidária, nosso partido é a arte. Mas vamos brigar, pressionar, gritar se preciso”, afirma. Indagado se a postura ideal não seria a da busca do diálogo e da apresentação de propostas, ele não hesita: “Vamos conversar, mas já se percebeu que o diálogo não funciona. Eles não escutam, ou gritamos ou morremos todos”. Uma das ideias, segundo ele, é que o próprio Fórum promova saraus e outros eventos, para que os artistas de Campinas mostrem o seu trabalho, o seu talento, a sua angústia de expressão. Outra questão que deve ser tratada é a do Plano Municipal de Cultura, elaborado há muitos anos mas que ainda não saiu do papel. “Precisa ser atualizado, é uma questão complexa”, reconhece. “É pouco tempo para o tamanho da encrenca, mas vamos para a luta”, finaliza Marcos Garcia, sobre o mandato de apenas um ano à frente do Fórum. “Não tem outro jeito, a cultura precisa voltar a ser vista como o encantamento da alma humana, é algo urgente, temos fome disso, assim como temos fome de comida. Acontece que, pela desnutrição cultural, a cidade está se acostumando a não comer cultura. Quem não come há muito tempo esquece o gosto da comida”.

 

 

Sobre ASN

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Um comentário

  1. Edmilson Siqueira

    Concordo com quase tudo que o Marcos falou, mas acho que faltou uma coisa: tentar tirar a arte das mãos do poder público e buscar patrocínios na iniciativa privada. Os cofres públicos – pessimamente administrados – não conseguem sustentar nem o setor de saúde, vital para a população de baixa renda, ou fazer a manutenção da cidade. Se a cultura continuar a depender das autoridades para renascer, não vai sair do túmulo em que se encontra.

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