Por Adriana Menezes
Contra a violência, elas pegaram as crianças para brincar. E nessa brincadeira o ciclo de violência doméstica, que começara a se perpetuar de geração em geração, foi chegando ao fim. Assim começou o projeto ReCriando Vínculos que acontece há 15 anos pelas mãos de voluntárias, dentro do SOS Ação Mulher e Família, em Campinas. Pela dinâmica do projeto, o lúdico se encarrega de curar os efeitos da negligência, da ofensa verbal, da violência física, da violência sexual e da agressão psicológica.
Hoje são atendidas oito crianças, de 4 a 11 anos, que representam oito famílias com histórico de violência. Para atendê-los duas vezes por semana, sete voluntárias se organizam em atividades que incluem brincadeiras com filhos e pais. O SOS Ação Mulher e Família é uma entidade de utilidade pública municipal, estadual e federal, fundada em Campinas em 1980 para prestar apoio, orientação e acompanhamento a famílias com um ou mais integrante vítima de violência ou violação dos direitos.
Ação preventiva
“Em 2001, começamos a perceber que chegavam ao SOS (Ação Mulher e Família) mulheres da terceira geração de famílias com padrão de violência. A filha da vítima passava pela mesma situação, e depois a neta. Foi quando decidimos trabalhar com a prevenção e intervir com as crianças e toda a família”, diz a psicóloga e terapeuta familiar Maria Isabel Penteado, coordenadora do ReCriando Vínculos. Desde o início do projeto, também estão a socióloga e assistente social Cláudia Reischling, a doutora em Física Teresinha Serra Matos e a psicanalista Ruth Cerqueira Leite.
Pular corda, confeccionar um brinquedo e jogar juntos possibilitam a vivência entre pais e filhos e o fortalecimento do vínculo. “Eles vão brincando e vão fazendo analogia com a vida.” A base do trabalho, que dura de seis a nove meses, é que eles sejam ouvidos. Além das brincadeiras, há o grupo terapêutico para compartilhamento. “Eles precisam dar significado a tudo que vivem. Por isso resgatamos também o brincar dos pais e fazemos brincadeiras com os adultos. Queremos buscar as competências dessas pessoas e não o drama delas”, diz Maria Isabel.
Sem recursos
De acordo com a psicóloga, a criança que vê os pais brigarem ou que sofre com a negligência, sem os cuidados devidos, também é vítima de violência, tanto quanto aquela que sofre abuso sexual ou agressão física. “E tudo isso vem crescendo”, diz a psicóloga, que lamenta hoje, após 15 anos de trabalho, estar sem recursos para o ReCriando e com a perspectiva de perder o espaço onde recebe as famílias. Ela precisa de pelo menos três salas para trabalhar.
Maria Isabel lembra que em 2009 o projeto teve financiamento do Criança Esperança, assim como já foi contemplado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), mas por estar localizado no Centro da cidade, onde não há demanda (sem registro de casos), ficou sem financiamento e sobrevive do voluntariado.
Voluntárias
A equipe de profissionais e voluntárias também promove um grupo de estudos, transformando o trabalho em campo de aprendizado e capacitação, onde a prática é teorizada. Além de Maria Isabel, Cláudia, Teresinha e Ruth, também trabalham como voluntárias a estudante de Ciências Sociais Aline Bonfá, a estudante de Psicologia Arianne Machado de Almeida e a psicóloga Cíntia Borges.
Antes de se aposentar, Teresinha Serra Matos já era voluntária. “O que me motiva? Dar minha contribuição à sociedade”, explica em poucas palavras. “Se existe essa demanda social, então vamos unir forças, mesmo sabendo que é uma falha do Estado, porque não posso ter somente uma visão crítica, devo também contribuir”, continua a física. “Enfim, eu me sinto bem. Simplesmente eu gosto e fico feliz de ver como as crianças se transformam.”
Voluntária há 15 anos, a socióloga e assistente social Cláudia Reischling tem motivação ideológica com a questão da violência. “Essa reprodução transgeracional da violência nos fez ver que a criança, especialmente, precisava ser cuidada, junto com toda a família”, sintetiza.
Os relatos
O relato da transformação das crianças pelo trabalho do ReCriando aparece naturalmente nas palavras das mães, que quando procuraram o serviço do SOS Ação Mulher e Família foram orientadas a levar seus filhos para o projeto voluntário. Conheça, a seguir, quatro histórias de violência vividas por famílias que participam das atividades terapêuticas do ReCriando. Para preservar a identidade dos envolvidos, não há identificação das mães nem das crianças.
Violência sexual
“Eu sofri agressão física do meu ex-companheiro, que tinha um histórico de violência familiar, além de ter problemas com drogas e álcool. Tenho um filho de 4 anos que também sofreu violência sexual, provavelmente da minha ex-sogra, avó do meu filho. Eu percebi mudança no comportamento do meu filho, até que ele me contou como era o carinho que ele recebia. Primeiro procurei o SOS Ação Mulher e hoje tem um juiz acompanhando o caso, mas eu ainda acho a Justiça negligente, porque não impediu o contato do meu filho com a família do pai. Estou tentando fazer com que a visita seja somente em local público, mas continuo lutando para preservar a dignidade do meu filho. O relatório do ReCriando foi anexado ao processo. O projeto é muito bom e meu filho está mais amoroso. Os livrinhos e brincadeiras, desde fevereiro, ajudaram muito. Agora eu tenho mais esperança e consigo falar sem chorar. Casei porque fiquei grávida. Aos poucos comecei a achar o comportamento dele esquisito. Quando vi que era droga, procurei a família, que já sabia e não me deu muita atenção. Eles eram omissos e diziam que não aceitavam devolução do filho. Eu vendi minha clínica, logo depois comecei a sofrer violência física. Ele pedia desculpas, dizia que era por ciúme, mas havia outros tipos de violência. É que no começo a gente nem percebe o que é de fato violência. O pai do meu filho foi convidado a participar do projeto, mas ele não quis.” – Oito meses no ReCriando Vínculos.
Agressão física e psicológica
“Meu marido é usuário de droga e me agredia fisicamente. Eu também reagia. Meu filho de 7 anos começou a passar mal com frequência. Também sofri violência psicológica com ameaça patrimonial caso eu me separasse dele ou caso eu contasse para alguém. Ele dizia que eu ficaria sem nada se fizesse isso. Um dia quebrou a TV, que ele adorava, na frente do meu filho. Eu chorava muito, tive depressão. Meu filho começou a acompanhar o pai, ficava nos bares ou nos pontos de droga. Quase sempre ficava jogando enquanto o pai usava droga, ou bebia quando acaba o dinheiro. Meu filho então protegia o pai, não me obedecia, não queria mais meu carinho, só queria ficar na rua. Cheguei a chamar polícia, e até chamei bandido, para me ajudar. O pessoal do Progen (Projeto Gente Nova de inclusão social de jovens através da educação) começou a perceber que eu chegava com marca no corpo, e me encaminhou para o projeto em março. Desde que estamos aqui, uma vez por semana, melhorou 90%. Meu filho não vai mais com o pai, entende agora que o pai tem problema com álcool e droga, nossa relação melhorou muito. Eu confesso que tive vontade de matar meu marido, fiquei muito agressiva na época. Acho que agora ele só não me bate porque está fraco, magro, por causa das drogas perdeu uns 30 quilos. Continuo casada, estamos falidos, mas agora eu não fico mais chorando o tempo todo. Voltei a trabalhar e não estou mais detonada psicologicamente como eu estava. A verdade é que a violência deixa a gente doente. Eu digo a ele que as pessoas agora sabem de tudo e que tenho o apoio da Justiça.” – Há sete meses no projeto.
Perda afetiva
“Tenho uma filha de 10 anos, que até os 8 anos tinha um pai adotivo, que foi embora. Ela não conhecia o pai biológico, que é pai da minha filha mais velha de 22 anos. Ela perguntou e eu contei quem era o pai. Em novembro de 2014 eu fiquei muito doente, internada no hospital, e minha filha mais velha cuidou da mais nova. Mas a minha pequena começou a se automutilar e ter muito TOC . Encontrei apoio muito grande com o projeto ReCriando. Tanto eu quanto minha filha mais velha fazemos terapia no SOS Ação Mulher e Família. Aqui a gente se fortalece, porque temos colo, apoio, carinho. Consegui voltar a trabalhar. Eu sinto como se aqui fosse minha segunda família. Aprendi a enfrentar as situações. Estou separada há sete anos, por exemplo, e nunca fui atrás dos papeis. Antes eu não tinha forças para fazer isso. É difícil mexer com tudo isso. Mas aqui você fica mais leve. Essa semana eu até enfrentei o meu ex-marido. Acho que a depressão da criança acontece pela confusão dos pais. E minha filha já melhorou em muita coisa aqui.” – Seis meses no ReCriando Vínculos.
Testemunha de agressão
“Vivi 18 anos com meu parceiro e sofri violência psicológica. Meu filho de 7 anos sofreu muito com tudo que aconteceu. E tudo que nós queremos, afinal, é que os filhos cresçam felizes, tenham uma infância saudável e uma vida legal. Não quero que se repita a vida do pai na vida dele. Tenho um filho de 30 anos do meu primeiro casamento, que durou 11 anos. Tenho três netos. Eu era muito nova quando casei, forçada por minha mãe, que não me deixou ter infância nem adolescência. O meu filho mais velho também sofreu muito, porque o pai havia presenciado o assassinato dos avós. E tenho meu filho de 7 anos do segundo parceiro, que já tinha antes dois filhos e quase foi preso por não pagar a pensão deles. Fui descobrindo as coisas aos poucos, porque ele mentia muito, mas acredita na própria mentira. Era envolvente com todos, inclusive comigo, a ponto de me fazer achar que a culpa de tudo era minha. Ele colocava minha família contra mim. Ele me fazia parecer um monstro, só porque sou explosiva, mas ele era mentiroso, falsificava minha assinatura em cheque e me escondeu por dois meses que estava desempregado. Chegou a ir para a Europa por 20 dias dizendo que tinha um prêmio a receber. Ele mentia muito. Comecei a descobrir que ele devia dinheiro a todo mundo porque vieram as cobranças. Ele tirou tudo que eu tinha. Meu filho viu as pessoas ameaçando o pai e me ameaçando. Diziam que iam nos matar. Fiquei dois anos sob essa tortura psicológica e há dois meses me separei. Procurei terapia gratuita. A gota d’água foi quando um cobrador bateu nele e meu filho viu o pai ser agredido. Ainda estou conseguindo manter minha loja e agora meu filho está no ReCriando, e pede para vir. Sinto uma melhora nele. Com a experiência de uma e de outra, nós também nos fortalecemos.” – Há dois meses no projeto.