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Brasil sai novamente arranhado da Cúpula, que sela a financeirização do enfrentamento às mudanças climáticas
Cantareira quase secou em 2014: alerta de impacto das mudanças do clima para a região mais populosa do Brasil (Foto Adriano Rosa)

Brasil sai novamente arranhado da Cúpula, que sela a financeirização do enfrentamento às mudanças climáticas

Por José Pedro Soares Martins

O presidente Jair Bolsonaro usou um tom mais moderado em seu discurso na Cúpula convocada pelo presidente norteamericano Joe Biden para equacionar o desafio das mudanças climáticas, mas o Brasil saiu chamuscado do encontro que começou ontem, 22 de abril, o Dia da Mãe Terra, e terminou hoje. Muitas afirmações do presidente brasileiro não correspondem à verdade ou contrastam com as ações de seu próprio governo, que tem promovido notórios retrocessos na área ambiental. Foram convidados a participar 40 chefes de Estado, de países responsáveis por mais de 80% das emissões atmosféricas, na Cúpula que sela a estratégia de financeirização do enfrentamento das mudanças do clima e não tocou em temas sensíveis, como a escalada dos subsídios para os combustíveis fósseis.

No primeiro dia de sua posse no cargo, Joe Biden anunciou o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, estabelecido em 2015 e que prevê um esforço conjunto para redução de emissões atmosféricas, no sentido de que não seja ultrapassada a marca de 1,5 grau Celsius de elevação da temperatura média no planeta até o final do século. A Cúpula foi convocada pelo líder norteamericano tendo em vista a realização em novembro, em Glasgow, Escócia, de mais uma Conferência da Convenção das Mudanças Climáticas, a COP-26.

Em seu pronunciamento na abertura da Cúpula, Biden anunciou a meta de redução, até 2030, de 50% a 52% dos gases de efeito estufa (GEE) emitidos pelos Estados Unidos, em relação a 2005. Por muitos anos os EUA foram o país de maior emissão de GEE, mas foram ultrapassados pela China.

Financeirização – A Cúpula do Clima convocada por Biden, e realizada de forma virtual, sela o processo de financeirização das estratégias de enfrentamento das mudanças climáticas. Financeirização no sentido de destinação de recursos suficientes para investimento em fontes renováveis de energia, como solar e eólica, mas também em termos de ativa participação do mercado financeiro nas negociações relacionadas ao combate ao aquecimento global.

O esforço do sistema financeiro em participar intensamente desse processo global ficou evidente pelo lançamento justamente no dia 21 de abril, véspera da abertura da Cúpula do Clima, da The Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ). A iniciativa é presidida por Mark Carney, Enviado Especial da ONU para Ação Climática e Finanças, e reúne mais de 160 empresas que somam ativos superiores a US$ 70 trilhões e participam das principais ações do setor financeiro voltadas para acelerar a transição para emissões líquidas zero de GEE no máximo até 2050.

Várias iniciativas, no âmbito do setor financeiro e envolvendo trilhões de dólares em ativos, já vinham sendo desenvolvidas voltadas com o argumento de financiamento da a descarbonização da economia, com impacto na redução de emissões de GEE. Casos da Paris Aligned Investment Initiative, da Race to Zero e da Net Zero Asset Owner Alliance da ONU.

Todas as ações se somaram agora na The Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), com o anunciado propósito de “alinhar as emissões operacionais e atribuíveis de suas carteiras com caminhos para emissão líquida zero até 2050 ou antes”. Em breve, novos trilhões de dólares serão acrescentados a essas iniciativas, com o lançamento pelas grandes seguradoras da Net-Zero Insurance Alliance (NZIA).

Por ocasião do lançamento da iniciativa, os articuladores da GFANZ assinalaram que, “para desbloquear os trilhões necessários para alcançar um futuro resiliente e com emissões zero”, a nova Aliança buscará ações como “expandir o número de instituições financeiras com compromissos de alta ambição, confiáveis e transparentes para financiar a transição para zero líquido” e “coordenar compromissos e ações em todo o sistema financeiro para apoiar a transição em toda a economia, incluindo as ferramentas analíticas críticas e infraestrutura de mercado (como agências de classificação de crédito, auditores e bolsas de valores) para que as instituições financeiras implementem suas estratégias de emissão líquida zero”.

A GFANZ também se compromete a “defender políticas públicas que apoiem a transição de toda a economia para a emissão líquida zero” e a “garantir que os compromissos sejam apoiados por metas provisórias (para 2030 ou antes), juntamente com planos de transição robustos consistentes com a meta de 1,5 ° C acima dos níveis pré-industriais, conforme exigido pela Race to Zero”.

“Financiar o processo de descarbonização é muito importante, principalmente porque nós temos no mundo muitos países que não contêm recursos para fazer essa transição. São normalmente países que poluíram menos e portanto têm menor responsabilidade em todo o problema climático que está acontecendo e mesmo assim são importantes para fazer uma modificação na sua forma de desenvolvimento, indo para uma economia de baixo carbono. Então, financiar isso é extremamente importante”, nota Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima,  ouvido pela Agência Social de Notícias.

Astrini continua, alertando que “isso não é tudo, a gente precisa principalmente de decisão política e transformações que sejam exemplares e aconteçam de forma acelerada, principalmente nos países desenvolvidos, os mais ricos, que têm o maior débito com a questão ambiental e climática no planeta e precisam colocar mais ambição em suas metas e sobretudo ações mais imediatas”.

Ele cita por exemplo a Rússia, que “ainda tem promessas extremamente vagas, totalmente vazias, sobre o que vai fazer com a agenda do clima”, e também a China, “no momento o maior emissor de gases de efeito-estufa e que ainda tem promessas muito, mas muito fracas”.

O secretário-executivo do Observatório do Clima entende então que “a gente precisa de financiamento, mas precisa principalmente de ações financeiras internas nesses grandes poluidores, para que saiam na frente, deem o exemplo e transformem suas matrizes de desenvolvimento, que são as que mais poluem”.

Subsídios a fósseis de fora – A Cúpula  do Clima convocada pelo presidente Joe Biden não abordou com a devida profundidade, por outro lado, um tema muito sensível para a descarbonização da economia mundial, que é o excesso de subsídios dados ao uso em larga escala de combustíveis fósseis.

“A questão de cortes de subsídios, de investimentos na indústria de fósseis é o básico a ser feito. O mundo não será transformado em um lugar com menos carbono se o dinheiro continuar sendo revertido para as indústrias que poluem. Tivemos inclusive anúncios recentes em países como a China de inauguração, de investimento em usinas a carvão, a combustíveis fósseis”, alerta Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

Ele continua: “Estamos falando de uma emergência climática e alguns dos maiores países do mundo investindo na situação contrária. O que vai fazer a diferença nessa corrida para resolver o problema do clima é para onde o dinheiro vai. Se o dinheiro for para as energias renováveis, no rumo correto, começamos a nos posicionar bem nessa batalha e ter chances de manter o planeta em aquecimento médio global em 1,5 grau. Mas se os investimentos continuarem sendo derivados para indústrias poluentes aí realmente ficará muito difícil para existir uma solução para a questão do clima porque o incentivo financeiro e de desenvolvimento estará indo no caminho oposto”.

O fim dos subsídio aos fósseis não esteve presente na Cúpula do Clima convocada por Biden, mas marcou o debate em fóruns paralelos. Participando de uma audiência virtual no mesmo Dia da Terra, promovida por Comissão da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos que discute o enfrentamento das mudanças climáticas, a ativista sueca Greta Thunberg clamou pelo banimento dos incentivos aos fósseis. “O fato de ainda termos esta discussão e ainda mais de estarmos subsidiando os combustíveis fósseis direta ou indiretamente usando o dinheiro dos contribuintes é uma vergonha”, declarou.

Vários analistas entendem que os Estados Unidos, que convocaram a Cúpula do Clima, em uma reviravolta em termos do que os governos republicanos, sobretudo, faziam em relação às mudanças climáticas, devem fazer a lição de casa para contribuir efetivamente nos esforços para reduzir as emissões atmosféricas. Uma das medidas seria retomar a proibição da exportação de petróleo cru dos Estados Unidos a outros países, como foi solicitado pelo relatório “Impactos de Carbono da Reinstauração da Proibição de Exportação de Crude dos EUA”, lançado pela Greenpeace em 2020.

O relatório mostrou que, desde o levantamento da proibição, as exportações de petróleo bruto cresceram mais de 750%, passando de cerca de 400.000 barris por dia em 2015 para 3,4 milhões de barris por dia em outubro de 2019. Em 2019, 24% do petróleo dos EUA foram exportados.

De acordo com o documento, a redução das emissões derivadas da reinstauração da proibição de exportação de petróleo bruto equivaleria ao encerramento das atividades de 19 a 42 centrais a carvão. A reduções das emissões globais de gases de efeito estufa, decorrentes da exportação de petróleo cru, seriam de 80 a 181 milhões de toneladas de equivalente de dióxido de carbono por ano. Em comparação, a cidade de Nova Iorque é responsável por 55 milhões de toneladas de equivalente de dióxido de carbono por ano.

Rebecca Concepcion Apostol, diretora do programa norte-americano da Oil Change International, organização parceira de Greenpeace na produção do documento, declarou, na oportunidade de lançamento do relatório: “O levantamento da proibição de exportação de petróleo bruto desencadeou uma expansão descontrolada da produção de petróleo dos EUA, principalmente na bacia do Permiano, no Texas e no Novo México. A expansão da produção petrolífera provocou uma crise de poluição atmosférica e hídrica local e uma epidemia de queima de gás e ventilação que acelerou as mudanças climáticas em tempo real. Os nossos líderes eleitos em Washington têm de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para limitar o desenvolvimento do petróleo, não para lançar a passadeira vermelha para a Big Oil desenterrar mais petróleo, piorando a nossa crise climática a cada dia que passa”.

Outro desafio para o governo Biden está relacionado às emissões atmosféricas resultantes das atividades do poderoso setor militar do país e da indústria bélica. Um relatório produzido em 2019 pela Brown University mostrou que, se o Pentágono fosse um país, seria o 55º maior emissor de dióxido de carbono do mundo. O Departamento de Defesa dos Estados Unidas representa, por sua vez, o maior consumidor institucional de petróleo no planeta.

Se o presidente do Partido Democrata manifesta uma outra postura em relação aos antecessores republicanos, é preciso lembrar que governos anteriores de sua sigla apoiaram várias iniciativas de estímulo aos fósseis. Representou um escândalo internacional, na época, a visita da secretária de Estado Hillary Clinton à Bulgária, em 2012. A secretária do governo de Barack Obama tinha viajado a Sofia para convencer o governo búlgaro a manter o acordo com a Chevron para exploração do gás de xisto no país, com o uso da tecnologia de fracking. Hillary também atuou em relação à vizinha Romênia, com o mesmo propósito. Entretanto, tanto Romênia como Bulgária, diante de muita pressão popular, acabariam instaurando uma moratória de exploração de fracking, como mostrou reportagem de Mother Jones.

Combater o desmatamento é o maior desafio para o Brasil no enfrentamento das mudanças climáticas (Imagem de Hans Braxmeier por Pixabay)

Combater o desmatamento é o maior desafio para o Brasil no enfrentamento das mudanças climáticas (Imagem de Hans Braxmeier por Pixabay)

Bolsonaro na Cúpula – Ao contrário de outras oportunidades, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, foi menos agressivo em seu pronunciamento na abertura da Cúpula do Clima. Aliás, ele havia inclusive se recusado a participar de evento semelhante anterior, a Climate Ambition Summit 2020, convocada pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e realizada a 12 de dezembro de 2020.

Agora Bolsonaro usou um tom mais conciliatório, mas ainda assim muitas de suas afirmações não foram fundamentadas nos fatos reais ou contrariam exatamente o que tem feito o seu governo na área ambiental.

Por exemplo, afirmou o presidente: “No campo, promovemos uma revolução verde a partir da ciência e inovação. Produzimos mais utilizando menos recursos, o que faz da nossa agricultura uma das mais sustentáveis do planeta. Temos orgulho de conservar 84% de nosso bioma amazônico e 12% da água doce da Terra. Como resultado, somente nos últimos 15 anos evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera”.

Entretanto, como revelou o relatório “Análise das emissões brasileiras de Gases de Efeito Estufa e suas implicações para as metas de clima do Brasil 1970-2019″, lançamento em 2020 pelo Observatório do Clima, o desmatamento na Amazônia e o setor agrícola são responsáveis por mais de 70% das emissões atmosféricas do país, com tendência de crescimento, revertendo o que vinha sendo verificado desde o início do século 21.

O documento mostrou que “desde 2010, ano de regulamentação da PNMC (Política Nacional sobre Mudança do Clima), que estabeleceu a primeira meta doméstica de redução de emissões da história no Brasil, o país elevou em 28,2% a quantidade de gases de efeito estufa que despeja na atmosfera todos os anos”, revertendo então a tendência de queda verificada entre 2004 e 2010.

Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, foi de 9,6% o aumento das emissões brutas de gases de efeito estufa do Brasil. “No ano em que o país teve sua governança federal de clima desmontada, com a extinção da Secretaria de Mudança do Clima e Florestas do Ministério do Meio Ambiente e o engavetamento dos planos de prevenção e controle do desmatamento (PPCDAm e PPCerrado), o país lançou na atmosfera 2,17 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2 e), contra 1,98 bilhão em 2018. O PIB nacional no mesmo ano subiu 1,1%, o que sugere que as emissões no Brasil, diferentemente das da maioria das outras grandes economias, estão descoladas da geração de riqueza”, afirmou o documento do Observatório do Clima.

“O nosso problema de descarbonização é parar a emissão de carbono que acontece vinda do desmatamento da Amazônia em primeiro lugar e depois da agricultura brasileira”, comenta Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima. “Acabar com desmatamento é o passo inicial. Em todas as iniciativas para combater o aquecimento global, as mudanças climáticas, o desmatamento é a forma mais rápida e barata de parar a emissão de gases de efeito-estufa”, diz Astrini.

Ele lembra que “transformar por exemplo a emissão de países europeus tem um custo e um tempo de transição. Parando de desmatar a floresta não tem custo, só benefícios. Acabar com o desmatamento contribui para a preservação da biodiversidade, com o equilíbrio climático, faz bem para a economia como para a imagem do país mundo afora”, acrescenta o secretário executivo do Observatório do Clima.

Pois a imagem brasileira saiu novamente arranhada da Cúpula do Clima de Biden, como salientou o Observatório em nota sobre a participação do presidente brasileiro. Para o Observatório, a Cúpula “marca uma virada histórica na economia e na geopolítica mundiais. As três maiores potências globais — EUA, China e União Europeia — devem começar a travar uma corrida rumo à recuperação verde e à descarbonização econômica. A disputa pela hegemonia se dará num mundo cada vez menos dependente de combustíveis fósseis. A sinalização política foi dada pelos anúncios das novas metas de EUA, Japão, Canadá, Reino Unido e outros países, e uma sinalização do engajamento chinês com a redução do uso de carvão. Uma nova ordem mundial começa a emergir”.

“O Brasil sai da cúpula dos líderes como entrou: desacreditado. Bolsonaro passou metade de sua fala pedindo ao mundo dinheiro por conquistas ambientais anteriores, que seu governo tenta destruir desde o dia da posse”, concluiu Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

Até Glasgow serão sete meses. A verificar a postura do governo brasileiro em relação ao desmatamento na Amazônia e, também, as atitudes do governo Biden, se efetivamente marcarão uma virada de posição histórica de Washington quanto ao esforço global contra as mudanças climáticas.

 

 

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