Por José Pedro Martins
Fevereiro de 2015. Já era a terceira ocasião em que a oceanógrafa campineira Camila Negrão Signori viajava para o continente gelado da Antártica. Mas desta vez ela sentiu diferenças importantes em relação às expedições anteriores. Estava menos frio e a pesquisadora quase não viu neve. Nem precisou usar o reforçado macacão laranja “Mustang” ou as resistentes botas “Caribu”, vestimentas projetadas para suportar frios intensos, fornecidas pela ESANTAR, a Estação de Apoio Antártico, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Camila sentiu então na pele, literalmente, o que um mês depois as bases argentinas de Marambio e Esperanza detectaram. Nos dias 23 e 24 de março, bases registraram recordes históricos de temperatura na Antártica: 17,4 e 17,5 graus centígrados, respectivamente, segundo o Serviço Meteorológico Nacional. A informação chamou a atenção da comunidade científica internacional, embora sem repercussão na imprensa brasileira.
Em sua terceira expedição à região, a oceanógrafa participava justamente de um projeto (o Interbiota) que estuda as interações biológicas em ecossistemas marinhos próximos à Península Antártica sob diferentes impactos de mudanças climáticas. A campineira é mais uma integrante do elenco de profissionais que estão dedicando anos e anos de estudos sobre a diversidade da vida marinha, uma das últimas fronteiras do conhecimento e onde os impactos do aquecimento global estão sendo cada vez mais sentidos.
O mar ajudando a entender a complexidade dos câmbios climáticos e apontando caminhos para a construção de um futuro mais luminoso para o planeta – como os indescritíveis cenários que Camila presenciou em sua já intensa trajetória de pesquisadora.
Amor ao mar, de Ubatuba ao Rio
O mar e seus encantos e mistérios – e tanto ainda a conhecer. Camila alimentou o amor ao mar em um lugar muito conhecido e apreciado pelos campineiros: Ubatuba. Sempre passava suas férias e outras épocas do ano na casa de praia da família. No paraíso do Litoral Norte paulista, aprendeu a mergulhar, a esquiar e a praticar vários outros esportes náuticos.
A identidade com o mar era crescente e sempre apontou uma vocação. Havia a oportunidade de fazer Biologia na Unicamp, e a Diplomacia e Medicina também foram opções pensadas em algum momento. Mas não tinha jeito: a atração pelo sublime e o incógnito das águas profundas era muito forte e ela foi cursar Oceanografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
No Rio, a paixão pelos oceanos se consolidou. O gosto pelo desafio, a inquietude da descoberta, aquela emoção em transitar pelo desconhecido – atributos dos cientistas natos – se firmando na pele e na alma da menina que frequentava clubes no Cambuí e que, na adolescência, com o apoio total da família, estudou no prestigiado Colégio Porto Seguro – o que lhe seria de grande valia na carreira, como veremos a seguir.
Na companhia das raias e tubarões
Novas oportunidades surgiram no mestrado, em Ciências Biológicas/Zoologia, pelo Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tese acabou sendo direcionada para a área dos tubarões e raias, os elasmobrânquios que Camila já havia estudado na graduação.
Na graduação, ela se dedicou à taxonomia e, na pós, à diversidade e distribuição geográfica dos tubarões e raias pelas costas do Rio de Janeiro. Nestas oportunidades aconteceram as primeiras horas de embarque, em navios como o Antares, da Marinha brasileira.
O trabalho de Camila e outros profissionais resultou no livro “Guia para identificação de tubarões e raias do Rio de Janeiro”, de 2010. Publicado pela Technical Books Editora, o livro é de co-autoria de Camila Negrão Signori, Ulisses Leite Gomes, Otto Bismarck Fazzano Gadig e Hugo Ricardo Secioso Santos.
O Guia apresenta as espécies encontradas no Rio de Janeiro, como o tubarão-de-seis-guelras (Hexanchus griseus), o tubarão-espinhoso (Echinorhinus brucus) e o tubarão-charuto (Squaliolus laticaudus). No livro, os autores advertem para os dramas relacionados à conservação das espécies de elasmobrânquios, fundamentais ao ecossistema marinho por serem predadores do ápice da cadeia alimentar e, por isso, com papel determinante na manutenção do equilíbrio entre as numerosas populações marinhas.
Os autores citam que “a excessiva pesca de larga escala tem levado numerosas espécies ao declínio populacional, chegando muitas delas à beira da extinção”. Os pesquisadores lembram que os tubarões têm geralmente um ciclo de vida longo, crescimento lento, baixa fecundidade relativa e maturidade sexual tardia. Com isso, os efeitos da pesca excessiva se tornam poderosos em termos de conservação das espécies.
Rumo aos oceanos
Camila fez o seu mestrado superando muitos desafios. Como não tinha bolsa de estudo, para ajudar na manutenção dava aulas de alemão à noite em uma escola de idiomas. O alemão que ela aprendeu no Porto Seguro de Valinhos, o colégio conhecido por seu denso currículo bilíngue.
Ainda no final do mestrado, a oceanógrafa recebeu o convite de um ex-professor de graduação para trabalhar em uma empresa de consultoria ambiental, onde atuou de 2008 e 2010. Momento de enriquecer a experiência profissional, tomando contato com outras áreas do conhecimento. Na empresa, participou de vários estudos de monitoramento e impacto ambiental, de plataformas da Petrobrás e outros projetos no Rio de Janeiro a um sistema adutor no agreste pernambucano.
Era apenas uma preparação para outros saltos. Veio o momento do doutorado, que fez na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de Ciências/Microbiologia, como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No trabalho junto ao Laboratório de Biogeoquímica da UFRJ, a oportunidade de participar de vários projetos e expedições científicas.
Nesses anos no Rio de Janeiro, um dos projetos de que participou foi a Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD) sobre a Estrutura e Funções do Ecossistema da Baía da Guanabara. Com outros pesquisadores da UFRJ, o propósito é verificar, por meio de estudos de longo prazo, os efeitos quali-quantitativos das alterações de origem humana sobre o ecossistema da Baía de Guanabara – a mesma que tem provocado muita polêmica em função da realização das Olimpíadas de 2016.
No Atlântico Sul
Hora de ir mais longe – e muito longe. Em dezembro de 2011, a primeira grande expedição internacional. Camila estava na travessia transatlântico Brasil-África, como parte do projeto “Relações entre a estrutura de comunidades fitoplanctônicas e as taxas de incorporação do carbono inorgânico no Oceano Atlântico Sul e Tropical”.
A viagem aconteceu a bordo do Navio Hidroceanográfico Cruzeiro do Sul, da Marinha Brasileira. É um navio construído, como pesqueiro de alto-mar, em estaleiro da Noruega. Foi ao mar pela primeira vez em março de 1986. Em 1991 foi convertido para navio de pesquisas sísmicas. O navio foi incorporado à Marinha Brasileira em fevereiro de 2008, já batizado como Cruzeiro do Sul, e totalmente remodelado como embarcação de pesquisas, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
A expedição aconteceu entre o Rio de Janeiro e Cidade do Cabo, na África do Sul. Ao longo do percurso, equipamentos de alta precisão colhiam amostras das águas do Atlântico em profundidades de até 3 mil metros. O trabalho de Camila era avaliar a composição e estrutura de tamanho das comunidades de fitoplâncton marinho, a sua biomassa e performance biossintética. Muitas informações importantes extraídas, sobre os ciclos de carbono em nível regional e global.
No WHOI, referência mundial
No top das pesquisas marinhas. Ocasião especial para Camila Signori foi o doutorado-sanduíche, de abril a dezembro de 2013, no Woods Hole Oceanographic Institution (WHOI), de Falmouth, nos Estados Unidos. Trata-se de uma das mais respeitadas instituições de Oceanografia em todo planeta, com incomensurável contribuição científica.
Entre os feitos do WHOI, está a participação na expedição de 1985 que localizou os restos do Titanic, navio mitológico que afundou a 15 de abril de 1912. Nessa mesma linha, uma equipe do WHOI localizou em 2011, por meio de um sonar de varredura lateral, grande parte do campo de destroços do voo 447 da Air France. Na noite de 31 de maio para 1 de junho de 2009, o Airbus A330-203, que ia do Rio de Janeiro para Paris, caiu no Oceano Atlântico, com 228 pessoas a bordo.
Feitos como estes são possíveis pela alta tecnologia em equipamentos marinhos desenvolvida no WHOI. São vários veículos submarinos concebidos e construídos pelo Woods Hole Oceanographic Institution, e a campineira Camila Signori chegou a ter o privilégio de viajar em um deles.
Alvin é um dos submersíveis mais conhecidos e lendários entre a comunidade científica mundial. Foi com ele que cientistas encontraram os destroços do Titanic e com ele têm sido feitas pesquisas que abrem novas trilhas para o conhecimento. O Alvin pode chegar a mais de 4 mil metros de profundidade. Em sua viagem submarina, Camila chegou a 2.514 metros – provavelmente foi a primeira, ou no mínimo uma das primeiras, mulher brasileira a descer a essa profundidade. Com capacidade para levar um piloto e dois cientistas, o Alvin é operado pelo WHOI, onde Camila fez o seu doutorado-sanduiche. Calcula-se que as viagens a bordo do Alvin já resultaram na redação de mais de 2 mil artigos científicas, por pesquisadores de várias origens. “É indescritível. As formas de vida que dá para ver, as cores do oceano profundo, é uma oportunidade sem igual”, descreve Camila, sempre na rota das novas fronteiras da ciência.
Rumo à Antártica
Com expedições nacionais e internacionais no currículo, e com dezenas de estudos e participações em vários projetos, chegava o momento de viver uma experiência sonhada por muitos cientistas: uma viagem à Antártica. E a primeira aconteceria entre 5 de fevereiro e 8 de março de 2013, a bordo do navio Almirante Maximiano, como parte dos projetos “Processos de enriquecimento de águas superficiais do Oceano Austral e influências sobre o ecossistema marinho: dos produtores primários aos predadores de topo (PRO-OASIS)” e “Circulação oceânica e interações criosfera-oceano no entorno da Península Antártica: uma investigação das ligações entre processos costeiros e o Oceano Profundo (POLARCANION)”.
Mais uma oportunidade para a oceanógrafa campineira conhecer um pouco mais sobre os ciclos de vida no ambiente marinho, agora em um ecossistema único e especial, o mar gelado da Antártica. A viagem foi entre a cidade portuária de Punta Arenas, no Chile, na região da Patagônia, até as Ilhas Shetland do Sul, na Antártica.
Este arquipélago situado a 120 quilômetros ao norte da Península Antártica está separado do continente gelado pelo estreito de Bransfield. De cara, o que mais chamou a atenção de Camila Signori foi a impressionante “quantidade e diversidade de vida” no ambiente Antártico.
É ela mesma quem descreve: “O nascer e o pôr-do-sol parecem ainda mais coloridos. E como se essa paisagem não bastasse, é um lugar de muita vida! São aves como gaivotas, petréis, pombas antárticas, skuas e os famosos pinguins, são focas e lobos marinhos, são muitas baleias (jubarte e fin – espécies mais frequentes e abundantes – além da baleia minke Antártica, orca e baleia bicuda, de acordo com as avistagens dos especialistas a bordo). Fora os organismos que habitam a coluna d’água e/ou não conseguimos ver a olho nu, como as bactérias e arqueias, os organismos fitoplanctônicos e zooplanctônicos (principalmente krill e salpas), com papel ecológico fundamental de sustentar esses animais superiores da cadeia alimentar”.
É muita vida! O Almirante Maximiano é o navio de pesquisa polar da Marinha Brasileira. Construído em estaleiro nos Estados Unidos, em 1974, foi incorporado à Marinha em 2009, passando a compor, com o navio oceanográfico Ary Rongel, a frota utilizada nas expedições científicas à base brasileira na Antártica.
A primeira expedição de Camila à região foi uma das primeiras, também, após o incêndio que em fevereiro de 2012 destruiu a Estação Comandante Ferraz e levou à morte de duas pessoas, além de provocar a destruição de quase a metade do material científico na base brasileira no continente branco.
Um ano depois, nova expedição à Antártica. Foi entre 3 de fevereiro e 6 de março de 2014, e no mesmo trajeto Punta Arenas – Ilhas Shetland do Sul, e como parte dos mesmos projetos científicos do ano anterior. “A rotina a bordo é de muito trabalho, mesmo à noite e de madrugada, com alguns momentos de descanso e lazer”, relata Camila. O trabalho não para a bordo. São 24 horas diretas, com dois turnos de trabalho, normalmente sob as condições climáticas mais difíceis.
Nos raros momentos livres, a oportunidade para tirar fotos (nos raros dias de sol e céu claro), registrando em arquivos digitais o que a memória não gostaria de esquecer. A comida a bordo, ela conta, não é nada diferente do cardápio tradicional de todo brasileiro: café da manhã, arroz, feijão e misturas no almoço, ceia noturna com bolo e outros itens. O maior alimento, claro, o contato com uma paisagem e ecossistema singular, sonho de inúmeros pesquisadores.
“A Antártica é um ambiente extremamente dinâmico, o que nos faz respeitar muito navegar e trabalhar nas águas do Oceano Austral”, ela conta. “Em um mesmo dia, podemos encontrar “mar de almirante” (muito calmo), pouco vento, céu limpo, e horas mais tarde, mar turbulento, ventos de 20-30 nós, céu bastante encoberto, podendo até nevar, além da sensação de frio intenso. Assim, dia a dia, encontramos condições de trabalho e paisagens diferentes, o que torna esse lugar ainda mais especial”, narra a oceanógrafa de Campinas.
As mudanças climáticas
A terceira viagem de Camila Signori à Antártica foi entre 2 e 27 de fevereiro de 2015, sempre com o Almirante Maximiano – ou “Tio Max”, como os marinheiros e pesquisadores carinhosamente batizaram. Desta fez um trajeto diferente, entre Punta Arenas – Baía Maxwell – Ilhas Elefante/Estreito de Gerlache – Estreito de Bransfield – Ilha Livingston, retornando em seguida à cidade chilena. Agora, como parte do projeto “Interações biológicas em ecossistemas marinhos próximos à Península Antártica sob diferentes impactos de câmbios climáticos (Interbiota)”, coordenado pelo Prof. Eduardo Secchi, da Universidade Federal do Rio Grande.
Camila conta que, dessa vez, estava menos frio e ela quase não viu neve. “Neste mês, o navio não ficou coberto de neve e completamente branco nenhum dia sequer, o que aconteceu algumas vezes nos anos anteriores”, ela lembra, acrescentando que não precisou vestir o “Mustang” ou as botas “Caribu”.
Sinais dos impactos das mudanças climáticas? Ela lembra que um dos objetivos do atual projeto é justamente verificar de que maneira as mudanças climáticas globais afetam os processos biogeoquímicos e a biota da região de estudo. “Sabe-se, através de outras pesquisas, que a porção oeste da Península Antártica (onde atuamos), junto com o Ártico, são áreas muito sensíveis e têm experimentado as taxas mais alarmantes de aquecimento, além de maior degelo, alteração no regime de ventos e de circulação oceânica, podendo levar a mudanças na estabilidade da coluna d’água e dos organismos que nela habitam”, explica Camila, que colheu amostras de microorganismos, precisamente para subsidiar o estudo sobre o efeito dos câmbios climáticos em sua dinâmica vital.
“Muito além de um projeto importante de pesquisa, a Antártica é para mim uma bela e inesquecível experiência de vida”, diz Camila, que espera, sim, voltar à região, dando continuidade aos seus estudos.
Ela já se inscreveu no pós-doutorado e aguarda os resultados de outros contatos, nacionais e internacionais, que a colocarão novamente nos itinerários dos oceanos. Sempre o desejo de de experimentar a beleza e os enigmas e conhecimentos ainda escondidos nos mares, mesmo com desafios como o trajeto pela Passagem de Drake, ponto obrigatório entre o continente e a Península Antártica e considerado um dos trechos de navegação mais temidos e perigosos do mundo (senão o mais perigoso), com ondas que podem alcançar 10 metros de altura e ventos com força de furacão. Camila Negrão Signori é uma navegante do futuro, à busca da luz do saber no oceano profundo. Uma luz que pode iluminar rotas de desenvolvimento menos turbulentas na passagem pelo século 21.