Por José Pedro Martins
Um artista marcado para a transgressão e a liberdade. A primeira exposição de Cícero Dias aconteceu em um hospital psiquiátrico, no Rio de Janeiro, em 1928. Foi uma exibição do mural “Eu vi o mundo… Ele começava no Recife”, para muitos críticos o seu maior trabalho. Sinalização de que o pernambucano, nascido em uma família de canavieiros, sempre buscaria superar fronteiras e propor novos paradigmas. Cícero Dias tem uma obra riquíssima, mas ainda pouco conhecida dos brasileiros, lacuna que um museu em sua homenagem, em Escada, cidade onde nasceu em 1907, está procurando preencher.
Sétimo dos onze filhos de Pedro dos Santos Dias e Maria Gentil de Barros, Cícero poderia ter uma vida tradicional, dentro dos cânones que sua origem social indicava. Ele nasceu no Jundiá, um dos muitos engenhos de cana que tornaram Escada um dos municípios mais ricos de Pernambuco entre o final do século 19 e início do século 20. Com a força da cana, Escada teve oito barões, título concedido pelo Império, e um deles, Antônio Epaminondas de Barros Correia, o Barão de Contendas, era o seu avô materno.
O Jundiá, por sua vez, era de propriedade do seu avô paterno, o Coronel Manoel Antônio dos Santos Dias, primeiro prefeito de Escada e ainda condecorado pelo rei de Portugal como Visconde de Santa Filonila. Com essa linhagem, Cícero Dias poderia estar fadado a uma trajetória convencional, não foi o que aconteceu. Escolheu as artes plásticas, que cultivava em criança nas aulas com uma tia. Já morando no Rio de Janeiro na década de 1920, mergulhou de vez na pintura. E no bucolismo de Santa Teresa, concebeu “Eu vi o mundo…”
No grande painel, elaborado em homenagem ao abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), indicações de como seria o repertório do artista. Recortes do universo dos canaviais, os valores e crenças do Nordeste, referências à política e, claro, retratos do Recife, onde começava o mundo, o mundão maior, que ele veria com os próprios olhos e pintaria.
Mas não foram esses elementos pictóricos de “Eu vi o mundo…” que chocariam o Rio de Janeiro quando ele foi finalmente exposto, em 1931, na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Foram as cenas de nudez, literalmente atacadas por um defensor da moral que, navalha em punho, as retalhou.
Os nus, um claro contraponto ao que dizia a formação religiosa reinante nos engenhos de cana, voltariam a aparecer em muitos outros momentos da obra de Cícero Dias. Tanto que Gilberto Freyre (1900-1987), um amigo de sempre, qualificaria essa tendência como “sur-nudismo”, uma possível variante do surrealismo que jorrava da Europa.
Foi de Dias a ilustração da primeira edição de “Casa Grande & Senzala”, de 1933, quando o escadense já morava no Recife. Quatro anos depois, o pintor chegou a ser preso pelo Estado Novo. Foi a motivação para que, incentivado por Di Cavalcanti (1897-1976), que inicialmente achava os quadros do pernambucano um tanto estranhos, Cícero fosse para Paris, pouco antes da Segunda Guerra Mundial mas já em plena ascenção do nazi-fascismo.
Mudança de rota – Na capital francesa, o inevitável contato com a vanguarda. Henri Matisse (1869-1954), Fernand Léger (1881-1955) e, principalmente, Pablo Picasso (1881-1973). Cícero Dias teve o amargo privilégio de acompanhar a construção de “Guernica” – que viria ao Brasil, em 1953, para a II Bienal de São Paulo, exatamente pela amizade de Picasso com o pernambucano.
A partir de Picasso e outros, a mudança de rota. O que era uma vocação em Cícero Dias para a transgressão torna-se uma constante. Vão emergir a abstração, a geometria, as nítidas influências picassianas, como em “Mulher sentada com espelho” (1940).
Em 1942, Cícero Dias está entre os brasileiros que, como Guimarães Rosa, são presos pelos nazistas e confinados em Baden-Baden. Eles seriam trocados por prisioneiros alemães no Brasil e liberados em Lisboa. Dias volta para a França, para viver clandestinamente em Vichy, mas depois retorna para Portugal, levando na bagagem uma preciosidade. O poema “Liberté” do amigo Paul Éluard (1895-1952). O escadense remeteu então o poema para Londres, de onde ele partiria, reproduzido aos milhares, a bordo dos aviões britânicos, para “bombardear” a França ocupada.
“E ao poder de uma palavra/ Recomeço minha vida/ Nasci pra te conhecer/ E te chamar/ Liberdade” são os versos finais do poema, na tradução de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Manoel Bandeira, outro escadense ilustre. Liberdade, a palavra que Cícero Dias mais cultivaria, no plano estético e na vida, um norte para biografia artística, intelectual e pessoal.
Fixou residência em Paris, onde morreria em 2003, quase centenário. Mas continuou produzindo muito, tendo o verde dos canaviais, o imaginário fantástico do sertão e as ruas e rios de Recife como referência permanente.
No coração da capital pernambucana, a lembrança constante do mestre de Escada. A Rosa dos Ventos, no Marco Zero de Recife, leva a assinatura de Cícero Dias. Um artista grandioso, ainda não muito conhecido dos brasileiros, ou pelo menos não tão badalado como outros, cuja vida e obra começam a ser disseminados pelo museu que leva o seu nome, no centro de sua cidade natal.
ESPAÇO DA MEMÓRIA
A memória afetiva alimenta o universo pictórico de Cícero Dias. São recorrentes as referências à infância nos engenhos, aos canaviais como pano de fundo, às figuras do imaginário fantástico nordestino.
Pois agora um território específico busca preservar e difundir a memória do próprio pintor, o Espaço Cultural Museu Cícero Dias, no centro de Escada, sua cidade natal. Fica na Rua da Matriz, a poucos metros da Igreja de Nossa Senhora da Escada.
No térreo, muitos documentos, fotos e vários objetos lembrando Cícero Dias, mas também a Biblioteca de Apoio “Tobias Barreto de Menezes” (1839-1889). Homenagem ao escritor e filósofo sergipano que morou em Escada, entre 1871 e 1881, onde fundou o jornal “Deutscher Kämpfer”. Sim, escrito em alemão.
Retratos antigos, máquinas de datilografar, aparelhos de rádio, instrumentos musicais e outros itens ajudam a compor o acervo, como as referências a Manoel Bandeira (1900-1964), outro nativo célebre de Escada, nascido no engenho Limoeirinho. Tobias Barreto e Manoel Bandeira, mas também outros pernambucanos ilustres, como Josué de Castro, Paulo Freire e João Cabral de Melo Neto, são alguns dos patronos da Academia Escadense de Letras – Casa Tobias Barreto, outra importante instituição cultural de Escada.
No primeiro andar, uma galeria com obras de artistas locais e outras origens, e um espaço para lembrar os tantos jornais que Escada já teve, financiados com o ouro verde da cana – foram pelo menos 25, entre “O Escadense”, de 1863, até o início do século 20. Estão lá exemplares de “Mariquitos” e “Correio da Escada”, entre outros.
Na escadaria que dá acesso ao andar superior, várias bandeiras dos blocos que fizeram a alegria do Carnaval local e ainda estão na memória dos nativos, como “As Catraia da Vila”, “Clube Intermunicipal” e “Só vai quem bebe”.
Todo esse acervo sob a guarda do jovem historiador e pesquisador Marcos Cavalcanti Pereira, também dirigente da Sociedade Cultural Escadense. Ele é capaz de explicar em detalhes cada objeto guardado no Museu Cícero Dias, ou mesmo os componentes dessa ou daquela família que era dona de engenho.
Cícero Dias e Tobias Barreto. Dois grandes nomes da cultura brasileira, que Escada tem orgulho de mostrar como seus.