A polêmica sobre a proposta de proibição de debate do termo “gênero” ou orientação sexual nas escolas continua em Campinas, um ano depois da conclusão do Plano Municipal de Educação (PME), cuja elaboração foi exigência do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024. Essa discussão, que também está presente em outras partes do país, dominou boa parte do processo de construção do PME e, segundo o ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, contribuiu para que o próprio PNE não tenha avançado como poderia em dois anos de execução.
No último dia 24 de junho, sexta-feira, foi promovida uma mesa sobre “Gênero e Orientação sexual na Escola Pública: um debate sobre a PELOM 145/2015″, realizada na Associação de Docentes da Unicamp (Adunicamp). Os convidados apresentaram argumentos que derrubaram mitos criados em torno do tema e apontam, segundo os organizadores, consequências negativas para a sociedade, caso sejam aprovadas como propostas como essa (de emenda à Lei Orgânica do Município), impedindo a discussão sobre a chamada “ideologia de gênero”, o termo gênero ou orientação sexual nas escolas de Campinas.
“O termo ‘ideologia de gênero’, cunhado por uma onda conservadora, cria a ilusão de que falar sobre gênero, preconceito e orientação sexual é ideológico e vai induzir a juventude a se tornar homossexual”, disse Ângela Soligo, pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da Unicamp. Ela mencionou uma pesquisa sobre violência e preconceitos nas escolas do Brasil, aplicada em 2013, que obteve diversos relatos de alunos sobre preconceitos contra meninas, negros e não heterossexuais, enquanto professores e diretores muitas vezes ignoram e silenciam.
Soligo também afirmou que a expressão que se ouve de muitas pessoas, de que falar sobre essas questões “não é papel da escola”, é uma falsa teoria, com suporte religioso fundamentalista. “Ao se negar a falar sobre isso, a escola se omite e alimenta o preconceito, a violência e a cultura do estupro. O acesso aos conhecimentos, todos, é direito da criança e do adolescente, está no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)”, disse ela.
Preconceito X violência – Dados levados ao debate pelo juiz José Henrique Rodrigues Torres indicam que, mesmo com a Lei Maria da Penha (2007) e a punição decorrente, a violência contra mulheres tem aumentado e ocorre em maior parte dentro de casa, praticada por pessoas da família ou muito próximas. Segundo ele, em Campinas, de 12 acusados e julgados recentemente, 11 foram condenados. O único absolvido foi porque tinha deficiência mental.
“Se a família tivesse cumprido esse papel de orientar, não teríamos esses problemas. O papel da família é importante, mas não é exclusivo. As pessoas não vivem só nas famílias”, disse Torres, que é titular da 1ª Vara do Júri de Campinas. “Se essa proposta for aprovada, infelizmente, contribuiria de forma decisiva para o aumento da violência, da discriminação, dos preconceitos, estereótipos, intolerância e desigualdade. É por isso que não posso ficar resignado diante disso”, advertiu Torres, sobre a PELOM 145/2015.
Interesses – “Para Magali Mendes, presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos Humanos de Campinas, existem interesses maiores por trás desse recrudescimento do conservadorismo político, para “manter privilégios, uma hegemonia social e religiosa”. “Discriminar e oprimir mulheres, gays e lésbicas é manter um grupo na reserva social, enquanto outros poucos enriquecem. Eles partem de uma família que não existe, além de na cabeça deles e na Rede Globo. Os professores são fundamentais para perceber a violência contra crianças e adolescentes e dialogar. Sem isso, os problemas criados seriam imensos!”, explicou Magali.
Inconstitucional – O juiz Torres também considera a proposta inconstitucional, porque contraria princípios fundamentais dos cidadãos e cidadãs brasileiros, veda o conhecimento, fere o direito do legislador e até tratados internacionais. “Clamo aos senhores vereadores de Campinas que não fechem os olhos, bocas e ouvidos dos legisladores, alunos e professores das escolas da cidade”, afirmou o juiz, referindo-se à possibilidade de aprovação da proposta, de acordo com documento divulgado pelos organizadores do debate na Adunicamp.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, vereador Carlão do PT, disse que ele e outros vereadores têm trabalhado pela retirada dessa Proposta, mas, como são pequena minoria, avalia que só uma forte mobilização popular pode viabilizar isso. “Sem contar que ainda há repressão policial aos Movimentos quando vêm pra Câmara protestar. Já temos três professores da rede municipal afastados porque fazem esse debate na escola. Se aprovado, seria um prejuízo enorme para as políticas que conquistamos”, alertou Carlão.
O debate foi organizado e mediado por Petrilson Pinheiro, professor do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp), com o objetivo de promover a reflexão da sociedade sobre o assunto. Há um ano, a PELOM, de autoria do vereador Campos Filho, foi aprovada por 25 votos a 5, em 1ª discussão (Legalidade) na Câmara Municipal (dia 29 de Junho de 2015, uma semana depois, praticamente, da entrada em vigor do Plano Municipal de Educação). Antes de ser colocado em 2ª discussão (Mérito), precisa passar por Audiência Pública, que é quando a população tem a oportunidade de tirar dúvidas e opinar.
Censura, violência e Dados – O mandato do vereador Carlão também considera fundamental destacar o caráter de censura de propostas como essa PELOM, que busca impedir apresentação de projetos sobre o assunto, contradizendo o propósito de uma Casa de Leis, que deve ser um espaço de amplos debates, envolvendo toda a sociedade de forma democrática e pluralista. Os movimentos sociais que atuam na defesa dos Direitos Humanos e uma ampla gama de pesquisadores, destaca o mandato do vereador Carlão, apontam para a necessidade de se construir uma educação não sexista e inclusiva como único caminho para o enfrentamento das diversas desigualdades e violências que atingem mulheres, negros e LGBTTs.
Para tanto, se baseiam em dados, como os do Mapa da violência 2012, segundo o qual entre 1980 e 2010 houve um aumento de 230% no número de mulheres assassinadas em comparação aos homicídios de forma geral, que aumentaram 124%; 41% das mulheres foram mortas dentro das suas casas com armas que exigem proximidade (não de fogo); nos casos das meninas, especialmente crianças, os principais autores de violência sexual são parentes ou pessoas de convívio familiar próximo.
Segundo dados do IPEA, no Brasil, entre 2009 e 2011, estima-se que uma mulher tenha sido morta por causas violentas a cada 1h30; 54% destas mulheres são jovens entre 20 e 39 anos; 61% são negras. O Relatório Anual de Assassinatos de Homossexuais no Brasil de 2014 documentou 326 mortes de gays, travestis e lésbicas, incluindo 9 suicídios. Um assassinato a cada 27 horas. Um aumento de 4,1 % em relação ao ano anterior (313), o que mantém o Brasil como campeão mundial de crimes motivados pela homo/transfobia.