Por José Pedro Soares Martins
Piracicaba, 31 de julho de 2016 – Piracicaba completa 249 anos nesta segunda-feira, 01 de agosto, como exemplo de cidade que busca preservar a sua cultura e identidade, ao mesmo tempo que pensando o futuro. É o olhar para o local, o regional e o global, de forma simultânea. Assim a cidade começa a se preparar para comemorar os 250 anos, protegendo sua memória e sinalizando os novos tempos.
O eixo de Piracicaba, o elemento que fundamenta a identidade cultural local, é muito conhecido e celebrado. É o rio Piracicaba, o rio “onde o peixe pára”, em idioma indígena.
As principais festas, como a Festa do Divino (que já soma 190 edições), são realizadas no Rio Piracicaba. A preocupação com as raízes culturais é política permanente e resultou em iniciativas como a Bienal Naifs, que já teve 12 edições, como uma das mais importantes ações do gênero no país. A Bienal é realizada no SESC Piracicaba, localizado… a poucos metros da rua do Porto, ícone de cultura e lazer.
Mas a inquietação com a proteção da memória e da identidade não tem uma conotação provinciana, pelo contrário. A Campanha Ano 2000, lançada em 1985, pela Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Piracicaba, sob a liderança do engenheiro Nelson de Souza Rodrigues, e voltada para denunciar a degradação do rio e propor soluções de mudança, levou à criação em 1989 do Consórcio Intermunicipal das Bacias dos rios Piracicaba e Capivari. Hoje também envolvendo a bacia do rio Jundiaí.
Criado por iniciativa do então prefeito de Piracicaba, José Machado, com apoio do prefeito de Bragança Paulista, Nicola Cortez, o Consórcio PCJ tornou-se referência nacional e internacional no debate sobre recursos hídricos. Por sua atuação, Machado tornou-se presidente da Agência Nacional de Águas (ANA).
A atuação do Consórcio e região em geral foi determinante para a nova legislação paulista e brasileira de recursos hídricos, que incluiu por exemplo a criação de comitês de bacias. Os Comitês PCJ são atualmente presididos pelo prefeito de Piracicaba, Gabriel Ferrato dos Santos.
MEMÓRIA DO RIO E DA ESPERANÇA
Principal liderança da Campanha Ano 2000, o engenheiro agrônomo Nelson de Souza Rodrigues é um ícone da preocupação de Piracicaba com a preservação da memória e da identidade, ao mesmo tempo em que se preocupa com a qualidade de vida das novas gerações.
Além de lutar pela despoluição do rio que representa a própria alma da cidade, o agrônomo se voltou, ao longo de toda a sua vida, para catalogar e documentar espécies animais e vegetais que fazem a riqueza da biodiversidade das bacias dos rios Piracicaba, Mogi-Guaçu e outras do interior de São Paulo.
Quando ainda morava em Pirassununga, na de´cada de 1950, trabalhando no Posto Avançado de Piscicultura do Instituto de Pesca, da Secretaria Estadual da Agricultura, o agrônomo nascido em São Paulo teve a oportunidade de cultivar uma paixão antiga. Junto ao rio Mogi-Guaçu, o encanto cada vez maior pelas águas e os peixes, mas também se tornando um grande colecionador de pássaros. Chegaria a ter cerca de 400 deles, de dezenas de espécies.
Tangarás azuis com faixa preta e topete vermelho, saíras do Rio Negro, handais, periquitos, araras, tico-ticos e um raríssimo japu-açu, entre outros, promovendo uma sinfonia permanente de cores e múltiplos sons. Dois pássaros tinham um certo xodó do colecionador. Eram duas sabiás, uma poca e uma laranjeira, ambas muito raras e muito procuradas. O agrônomo rejeitou grandes ofertas por esses e outros pássaros.
Nesses tempos, outro talento desenvolvido. Era o de taxidermista, a partir de técnicas que conheceu ainda em São Paulo. Foram muitos pássaros e peixes que ele submeteu à técnica. Mantém até hoje um exemplar de peixe raríssimo, o cascudo-espinho (Pterygoplichthys gigas).
Um dia, a libertação. As leis mudaram, a visão sobre os animais também. O agrônomo teve que libertar as suas aves. Muitas delas foram encaminhadas a instituições científicas, assim como a quase totalidade dos indivíduos empalhados. “Não foi muito fácil não ficar sem eles”, confessa, com um olhar de nostalgia feliz.
A vocação de Nelson Rodrigues para a documentação, para a guarda da memória, nasceu com ele. Em 1948, graduado como engenheiro agrônomo na ESALQ de Piracicaba, ele voltou para São Paulo. Dois anos depois, a primeira atividade profissional, mas ainda não era na área para a qual estudou.
Foi atuar como fotógrafo na capital paulista, chegando a trabalhar nos primórdios da legendária Companhia Vera Cruz. Os primeiros astros dos filmes brasileiros foram fotografados por ele.
Dominar e aprimorar as técnicas fotográficas foi determinante para que o agrônomo Nelson desenvolvesse um olhar diferenciado, sofisticado, para as coisas da natureza. Com esse olhar se tornou um dos pilares da inclinação de Piracicaba para preservar a memória, de olho no futuro melhor.
Não por acaso, deixou esse olhar como legado para o neto. Luccas Guilherme Rodrigues Longo é o coautor, com o avô, do livro “Piracicaba, seu rio, seus peixes”, lançado em 2014, pelo Proac do governo estadual e com apoio da Prefeitura de Piracicaba. O livro documenta o olhar de Nelson de Souza Rodrigues sobre o rio Piracicaba. São informações completas sobre o rio e a sua bacia de 1,2 milhão de hectares, com destaque para os estudos sobre peixes. O piracicabano Luccas é biólogo, especialista em Bioecologia e Conservação pela UNIMEP e mestre em Conservação de Ecossistemas Florestais pela ESALQ/USP.
Outra ação na cidade com visão local e global é a Agenda 21 de Piracicaba, que uniu vários segmentos em torno de uma plataforma comum. Ações de cidadania assim não são raras. O Conselho Coordenador das Entidades Civis de Piracicaba tem décadas de atuação e foi parceiro da Campanha Ano 2000.
E existe o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, que neste ano está em sua 43ª edição. Nascido em plena ditadura militar, durante muito tempo o Salão foi um espaço único de livre expressão de ideias no Brasil. Depois alcançou fama mundial e é um dos principais territórios de manifestação das inquietudes e dos sonhos de artistas de muitos lugares, como intérpretes do que acontece em seus países. Há alguns anos o Salão de Humor é realizado no Engenho Central, um grande complexo com vocação cultural situado, claro, às margens do rio Piracicaba. Recentemente foi criada a Associação dos Amigos do Salão Internacional de Humor de Piracicaba, para dinamizar ainda mais o evento.
Memória da República – Além do eixo de identificação com o rio Piracicaba, a cidade de Piracicaba também cultura a memória da República. A República ainda em construção, mas que deu seus primeiros passos com o movimento que evoluiu na região de Piracicaba e Campinas, na segunda metade do século 19, pela força da cultura do café.
Neste aspecto o personagem central em Piracicaba é Prudente de Moraes, que viveu na cidade e foi o primeiro presidente civil da República, entre 1894 e 1898. As sátiras que a imprensa direcionou a Prudente de Moraes, em seu período na presidência, são indicativas do papel dos meios de comunicação na consolidação da democracia, desde essa época.
O espaço em que o piracicabano ou visitante pode apreciar essa lembrança dos primórdios da República é a casa onde Prudente de Moraes morou e que hoje sedia um Museu Histórico com o seu nome. No acervo do Museu, é possível apreciar peças como o número 35 da revista “Don Quixote”, de 1895, que publicou uma caricatura que se tornou clássica. A ilustração mostra o presidente correndo, com a legenda lapidar: “Mas o chefe do Estado, prudentíssimo e ali ao lado, retirou-se sem cair na cova que lhe fora destinada”.
A revista foi fundada por ninguém menos que Angelo Agostini, italiano nascido em 1843 e que no Brasil desde os 16 anos tornou-se um dos desbravadores do humor gráfico no país. Vivendo primeiro em São Paulo, já aos 21 anos Agostini editou “O Diabo Coxo”. Depois morando no Rio de Janeiro, criou a “Revista Illustrada” e, também, a “Don Quixote”, cujo nome, assim citado com a grafia original, em homenagem ao personagem lendário de Cervantes, era a encarnação de seu espírito mordaz e demolidor.
Pois Prudente de Moraes tornou-se alvo da pena de Agostini. O presidente nascido em Itu, em 1841, e que faleceu em Piracicaba, em 1902, era chamado na “Don Quixote” como “Prudente de Mais”, uma referência ao seu suposto imobilismo diante de crises consecutivas ocorridas durante o mandato.
A realidade demonstrava que não era bem assim, muito pelo contrário. Foi durante o governo do piracicabano nascido em Itu que aconteceram as campanhas finalmente vitoriosas contra Canudos, o que rendeu vasto material para a imprensa e os seus ilustradores – lembrando que “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, um dos grandes pilares da literatura brasileira, é a crônica, dura e amarga, do conflito que teve Antônio Conselheiro no seu epicentro. O próprio Agostini é autor de uma imagem, de 1896, publicada na “Revista Illustrada”, apresentando Conselheiro repudiando a República.
Curiosamente, a “Revista Illustrada”, depois de 23 anos de atividades, encerrou o seu ciclo em 1898, o ano em que Prudente de Moraes deixou a presidência. A última edição, de número 739, foi o retrato da transição, expondo na capa Prudente conversando com o seu sucessor, o campineiro Moraes Salles, que acabava de voltar de viagem à Europa. A legenda não deixava por menos: “Em família. Conversaram animadamente sobre a Europa, as viagens, as manifestações, o estado sanitário etc. Só não trataram da política. Muito bem”. Angelo Agostini, o “algoz” de Prudente de Moraes, é o criador do “Nhô-Quim” e “Zé Caipora”, considerados personagens que ajudaram a lançar as bases das histórias em quadrinhos no Brasil. O cartunista morreu em 1910.
O Museu “Prudente de Moraes” tem em seu acervo, portanto, verdadeiras relíquias ilustrando as bases da democracia e da República no Brasil. E também não estariam nessas publicações as sementes do que viria a ser o próprio Salão Internacional de Humor de Piracicaba?
Novos desafios – Piracicaba cresceu muito e, claro, os desafios aumentaram de magnitude. A cidade tem em 2016 cerca de 380 mil moradores, segundo projeção da Fundação Seade, e é sede de uma Aglomeração Urbana que, em futuro não muito distante, pode vir a se transformar em região metropolitana. O incremento da violência é uma das maiores preocupações. Entre 2014 e 2015, a forte estiagem, aliada a sérios problemas de gestão no Sistema Cantareira, contribuíram para uma imagem que os piracicabanos não gostam: o seu rio quase seco, demonstrando que as mudanças climáticas vão exigir muito esforço coletivo e em particular dos poderes públicos.
O XV de Novembro, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e a UNIMEP são outras referências importantes da memória de Piracicaba que, ao lado da forte identidade local, em torno do rio, são a base para busca de superação dos desafios. Daqui a um ano serão dois séculos e meio de uma trajetória peculiar no cenário de São Paulo e do Brasil.