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O panorama em Campinas nos dias do golpe militar de 1964
Avenida Francisco Glicério foi palco da Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade, dia 7 de abril de 1964 (Foto Adriano Rosa)

O panorama em Campinas nos dias do golpe militar de 1964

Por José Pedro Martins

Campinas refletiu com intensidade a luta ideológica que levou ao golpe militar de 31 de março de 1964, embora muitos historiadores ainda afirmem que a data precisa seja 01 de abril. O certo é que a cidade sentiu os impactos daqueles dias turbulentos, que ecoam 53 anos depois, agora com cores inquietantes, no momento em que o país passa de novo por forte instabilidade política e econômica.

Quentes antecedentes – No dia 4 de fevereiro de 1964, quando a cidade ainda sentia os reflexos da escassez de açúcar (levando o presidente da Câmara Municipal, Romeu Santini, a fazer apelos ao presidente da Superintendência Nacional de Abastecimento), a população campineira foi surpreendida com boatos de que um grande carregamento de armas de guerra, destinadas à região central do Brasil, teria sido apreendida na cidade, antes do embarque nas composições da Companhia Mogiana. As informações nunca foram confirmadas, mas mobilizaram Prefeitura, Câmara, governo estadual e agentes do DEOPS.

Ainda no início de fevereiro, foi deflagrada uma grande polêmica sobre a autorização dada pelo prefeito Ruy Novaes para a utilização do Teatro Municipal “Carlos Gomes” para um encontro promovido pela União Campineira de Estudantes Secundaristas (Uces). O encontro foi considerado como de “inspiração comunista” pelo general Guilhermino dos Santos, que criticou duramente o gesto de Novaes.

Em uma carta publicada na imprensa, o prefeito se penitenciaria de sua decisão, mas o episódio alimentou controvérsia. O vigário da paróquia do Taquaral, Milton Santana, um aliado das causas operárias e que por isso chegaria a ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional, enviou carta aos jornais, salientando que o prefeito não deveria se penitenciar, “porque lá (no Teatro) não se realizou o que afirmou o ilustre general”.

O assunto dividiu opiniões, e até Sociedades Amigos de Bairros, como as do Alto da Nova Campinas e de Aparecida, criticaram o uso do teatro para “fins demagógicos”. Curiosamente, o Teatro Municipal seria demolido em 1965, com autorização de Novaes, um fato que até hoje gera polêmica na cidade que sente a falta de um grande espaço para espetáculos.

MIS-Campinas, no Palácio dos Azulejos,  sede da Prefeitura Municipal em 1964  (Foto José Pedro Martins)

MIS-Campinas, no Palácio dos Azulejos, sede da Prefeitura Municipal em 1964 (Foto José Pedro Martins)

Presença americana refletida em Campinas – No dia 17 de fevereiro, o prefeito Ruy Novaes anunciou que solicitaria apoio da Aliança para o Progresso, para ampliação do sistema de águas e esgotos da cidade. Quatro dias depois, o secretário municipal de Governo, Cláudio Novaes, revelou que seriam solicitados da Aliança alimentos que seriam distribuídos a instituições de caridade e escolas.

A Aliança para o Progresso foi o movimento lançado pelo presidente John Kennedy, dos Estados Unidos, de apoio aos países latino-americanos em desenvolvimento, como forma de evitar o avanço das ideias comunistas, a partir da vitória do movimento revolucionário em Cuba em 1959. Dirigentes da Aliança estivem em Campinas no início de 1964, mas o apoio anunciado não chegou a ser materializado.

O discurso de Goulart – Na Câmara Municipal de Campinas os ânimos se acirravam, com discursos pró e contra o presidente da República, João Goulart. No final de fevereiro os representantes do Partido Socialista Brasileiro, como Fortunato Gallani, manifestavam apoio às reformas anunciadas por Goulart, enquanto vereadores do PTB, como José Antônio Rezze, informavam que seria realizada em Campinas uma conferência de San Tiago Dantas, homem-forte de Jango, como o presidente era conhecido.

Em contrapartida, a bancada da União Democrática Nacional (UDN), integrada por vereadores como Ruy de Paula Leite, anunciava os pronunciamentos na cidade dos deputados Herbert Levy e Sandra Cavalcanti, que eram críticos aos rumos tomados pelo governo Goulart. Em sua estadia na cidade, Levy teve um encontro demorado, a portas fechadas, com o prefeito Novaes.

A guerra ideológica continuava e a 10 de março foi aberta a Convenção Nacional das Classes Produtoras, no Rio de Janeiro, na sede da Associação Comercial. “Vamos tomar posição sobre a infiltração comunista nos altos postos do governo”, afirmou no abertura do encontro o presidente da Associação Comercial, Ruy Gomes de Almeida. Participaram da Convenção, como representantes da Associação Comercial e Industrial de Campinas (ACIC), Rosalvo Lopes da Silva, Saulo Duchovni e Mario dos Santos.

No dia 12 de março o comandante do II Exército, general Amaury Kruel, que teria grande participação no golpe de 31 de março, esteve em Campinas. O general visitou as guarnições militares e almoçou com lideranças políticas.

A visita de Kruel aconteceu na véspera do célebre comício de João Goulart no centro do Rio de Janeiro. No encontro, o presidente reiterou algumas de suas reformas de base, como a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes, para iniciar uma reforma agrária. O presidente também assinou decreto, encampando as refinarias Capuava, Manguinhos, Rio Grandense, Matarazzo, Amazônia e Ipiranga.

Para muitos analistas, foi este comício que precipitou o movimento militar, com apoio em setores empresariais e religiosos. No mesmo dia, multiplicaram-se os pronunciamentos saídos dos quarteis. Falando pela Rede da Democracia, de emissoras de rádio, o marechal Ângelo Mendes Moraes afirmou que estava na etapa final a preparação para a “marcha do comunismo” no Brasil.

Catedral Metropolitana de Campinas, um dos ícones do patrimônio arquitetônico local, palco final da Marcha da Família a 7 de abril de 1964 (Foto José Pedro Martins)

Catedral Metropolitana de Campinas, um dos ícones do patrimônio arquitetônico local, palco final da Marcha da Família a 7 de abril de 1964 (Foto José Pedro Martins)

As marchas “com Deus” – Em Campinas a movimentação era intensa. O Partido Libertador (PL), do vereador Orestes Quércia,  anunciava a realização na cidade da Convenção Nacional da legenda, que lançaria a candidatura de Carlos Lacerda à Presidência da República. A 17 de março o vereador Fernando Paolieri, do Partido Social Progressista (PSP), propunha em sessão da Câmara que fossem convidados todos os candidatos à Presidência para um debate em Campinas, o que naturalmente não se concretizou em função do golpe de 31 de março.

No dia 20 de março foi realizada, em São Paulo, a primeira “Marcha em Defesa da Constituição”, que se repetiria na forma das “Marchas com Deus, pela Família e pela Liberdade”. Era o início das manifestações de rua, em preparação à derrubada de Goulart.

No mesmo dia o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, se manifestou “contra o golpe” que representariam as reformas propostas pelo governo Goulart. Por outro lado, em declaração na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, o líder comunista Luiz Carlos Prestes expressou apoio ao presidente, postura que obviamente desagradou ainda mais aos segmentos conservadores.

Em Campinas a reação à Marcha de São Paulo foi a revelação de que a cidade também teria a sua manifestação de rua, que aconteceria, contudo, ao contrário de outros locais, somente depois do golpe militar já executado. A realização da Marcha em São Paulo impediu que o governador Adhemar de Barros viajasse a Campinas, para a aula inaugural da Unicamp. Barros foi substituído pelo jurista Miguel Reale. Participou da cerimônia o adido cultural da Embaixada dos Estados Unidos, Alvim H.Cohen.

Horas antes do golpe – Diante da gravidade da situação, na sessão de 23 de março a Câmara Municipal se dedicou exclusivamente a debater o momento político nacional. Por iniciativa do presidente, Romeu Santini, a Câmara aprovou na sessão uma moção sobre o momento nacional. O documento começava admitindo a necessidade de emendas à Constituição, “para garantir a maior autenticidade do regime”, mas advertia que as reformas de base não deveriam servir de pretexto para que “se concretize um atentado contra a liberdade mergulhando o Brasil numa ditadura legalizada”.

A moção citava, em seguida, a participação de Campinas em muitos momentos cruciais da vida nacional, como o movimento republicano e abolicionista e a presença brasileira na Segunda Guerra Mundial. “Não pode, portanto, a Edilidade Campineira pecar por omissão, nas atuais circunstâncias”, prosseguia o documento, em suas justificativas.

Os vereadores de Campinas manifestavam, então, sua “repulsa a quaisquer regimes de exceção que sufoquem a liberdade de pensamento e retirem do cidadão o direito de livre iniciativa”. E expressavam, ainda, a sua “plena confiança no Congresso Nacional, e nas gloriosas Forças Armadas da nação, na certeza de que ambos agirão de forma a assegurar os direitos constitucionais, impedindo que a Nação possa mergulhar na desordem”.

Dois dias depois, a 25 de março, o prefeito Ruy Novaes, reuniu-se demoradamente com o comandante do 5 GCAN. “Falamos unicamente de política”, admitiu o prefeito no final do encontro. “A situação está ótima e estamos partindo para eleições pacíficas em 1965″, completou o otimista coronel. À noite o prefeito viajou para o Paraná, para assuntos particulares.

Na madrugada do dia 26, os sinais de violência política chegavam a Campinas. Uma bomba, considerada de “pequeno poder explosivo” pela polícia, explodiu no escritório regional da Superintendência de Política Agrária (Supra),   órgão-chave no programa de reforma agrária proposto por João Goulart. O prédio ficava localizado na rua Conceição, no centro.

Inscrição no antigo Fórum de Campinas: cidade é citada em vários trechos do histórico relatório da Comissão Nacional da Verdade (Foto José Pedro Martins)

Inscrição no antigo Fórum de Campinas: cidade é citada em vários trechos do histórico relatório da Comissão Nacional da Verdade (Foto José Pedro Martins)

Os dias do golpe – A 31 de março de 1964 era desencadeado o golpe militar, com a movimentação das tropas do general Olímpio Mourão Filho em Minas Gerais. No mesmo dia, no Palácio dos Azulejos, sede do governo municipal de Campinas, era intensa a mobilização de mulheres que organizavam a “Marcha da Família”.

No dia 1, a Câmara Municipal se declarou em “estado de vigilância cívica”. Na tribuna os vereadores se revezavam, manifestando sua convicção na obediência “à lei e à democracia”. Comissões especiais foram constituídas pelos vereadores, uma para visitar as autoridades militares locais, e outra para discutir com o prefeito medidas para evitar um eventual desabastecimento de gêneros alimentícios durante a crise política.

Novos sinais da tensão política nacional eram evidentes no dia 2, com a apreensão de “farto material de propaganda comunista” em local que servia para reuniões dos comunistas locais na rua General Osório. A Polícia Civil também apreendeu os impressos convocando para uma concentração popular no mesmo dia, no Largo do Rosário, onde seria lançada a Frente de Mobilização Popular. A sede da Uces foi vasculhada, assim como a paróquia da Vila Teixeira, do padre Hermínio Berlusconi, onde os policiais nada encontraram.

Na sessão do dia 3, os vereadores se mantiveram em “vigilância cívica” e discutiram as ações policiais contra os sindicatos campineiros. No mesmo dia Atílio Simionatto, de tradicional família de sindicalistas, informou à Polícia que sua residência tinha sido depredada. No dia 6, prisões de sindicalistas foram executadas em Campinas.

A Marcha da Família de Campinas com Deus e pela Liberdade aconteceu no dia 7 de abril, com apoio total da Prefeitura e da Câmara. O prefeito decretou o fim do expediente às 16 horas, para garantir participação maciça dos funcionários. O transporte por ônibus foi gratuito. Os bancos fecharam as portas às 15 horas, o comércio também fechou mais cedo.

Um contingente de mais de 70 mil pessoas esteve na manifestação, que começou na Universidade Católica, na esquina da rua Marechal Deodoro e avenida Francisco Glicério, terminando em frente à Catedral. Com a Marcha, atrasada em Campinas em relação a outros locais, a cidade continuava espelhando o crítico momento nacional. Com o aprofundamento da ditadura, setores da sociedade campineira passaram a criticar os rumos do governo militar. (Extraído do livro “Câmara em Foco: Os 200 anos do Poder Legislativo em Campinas”, de José Pedro S.Martins, de 1998).

 

 

 

 

 

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