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Doenças negligenciadas são desafio gigantesco para a saúde pública no Brasil
Coleta e destinação de resíduos continuam sendo um dilema em grande parte do Nordeste, região com muitas doenças consideradas negligenciadas, um dos sintomas da desigualdade social estrutural no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Doenças negligenciadas são desafio gigantesco para a saúde pública no Brasil

Por José Pedro S.Martins

Campinas, 30 de abril de 2018

O motorista Marcus Schaffer Lourenço, de Campinas, sentiu que algo estava errado naquela manhã de maio de 2015. “O corpo doía muito, parecia que eu levei uma surra de seis pessoas”, lembra. Achou inicialmente que era uma gripe e não ficou muito preocupado. No outro dia não teve jeito, foi ao Hospital Celso Pierro, da PUC-Campinas, e tomou soro por várias horas. Estava com dengue, da qual ainda guarda sequelas. Marcus foi um dos milhares de moradores de Campinas atingidos pela doença entre 2014 e 2015. Naqueles anos, a cidade liderou o ranking nacional da enfermidade que voltava a provocar pânico na população brasileira.

A dengue não está sozinha. Ela é uma das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs), conforme a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que fez um primeiro relatório a respeito em 2010 (aqui). Um balanço dessas enfermidades, e não apenas da dengue, ratifica o enorme desafio que elas representam para a saúde pública no Brasil, país tropical que também tende a sofrer o impacto das mudanças climáticas, multiplicando vetores para muitas doenças.

Universidades, centros de pesquisa e organizações sociais estão procurando fazer a sua parte, para compensar os insuficientes investimentos públicos e privados na prevenção e combate às doenças negligenciadas. Um incremento robusto de ações em saneamento é considerado essencial para o enfrentamento dessas enfermidades no país.

O Brasil registra casos de pelo menos 14 das doenças negligenciadas identificadas pela OMS e a geografia das DTNs no país coincide com a má distribuição de renda. As regiões Norte e Nordeste, que apresentam a menor renda média brasileira, concentram grande parte da incidência das DTNs. A região Norte é território para nove tipos de doenças negligenciadas e a região Nordeste, para oito. São sete as DTNs documentadas no Centro-Oeste, cinco no Sudeste e quatro no Sul.

O Ministério da Saúde considera que são três os níveis de categorização das doenças negligenciadas. São da Categoria 1 as doenças não controladas e/ou emergentes/reemergentes: dengue e leishmaniose. Na Categoria 2 estão aquelas doenças ainda de elevada magnitude: malária, esquistossomose, tuberculose e geo-helmintoses. As enfermidades consideradas em declínio são da Categoria 3: Doença de Chagas, hanseníase, tracoma, raiva, filariose linfática e oncocercose.

As doenças negligenciadas são de origem infecciosa e parasitária, grupo que tem reduzido a sua participação no elenco de causas de óbitos no Brasil. Nas décadas de 1930 e 1940, esses tipos de doenças representavam mais de 40% das causas de mortes. Desde a década de 1990, as doenças infecciosas somam cerca de 5% das causas de óbitos. Os casos da dengue e leishmaniose mostram, entretanto, que ainda permanecem muitas barreiras para erradicar as doenças negligenciadas no país.

“Precisamos erradicar essas doenças e combater principalmente o silêncio epidemiológico que existe em nossa sociedade”, diz o médico sanitarista Pedro Tourinho, justificando o projeto que, como vereador, apresentou e foi aprovado na Câmara Municipal de Campinas, criando a Semana da Conscientização das Doenças Negligenciadas. A lei que recebeu o número 15.388/2013 estabelece que a Semana da Conscientização contemple o dia 14 de abril, data em que, no ano de 1909, o médico e pesquisador brasileiro Carlos Chagas anunciou a descoberta da doença que recebeu o seu nome. O vereador Carlão do PT e os ex-vereadores Ângelo Barreto e Carlinhos Camelô também assinaram o projeto que resultou na lei. O projeto foi construído em parceria com a Associação dos Portadores da Doença de Chagas de Campinas e Região (ACCAMP).

Ainda há muito a caminhar em pesquisa e políticas públicas a respeito das doenças tropicais negligenciadas no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Ainda há muito a caminhar em pesquisa e políticas públicas a respeito das doenças tropicais negligenciadas no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Histórico – As chamadas doenças negligenciadas existem há tempos imemoriais mas essa designação é recente na história da Medicina. Em 1970 a expressão apareceu no âmbito do programa “The Great Neglected Diseases”, coordenado por Kenneth Warren e patrocinado pela Fundação Rockfeller. Em 2001 a organização Médicos Sem Fronteiras propõe a classificação das doenças em Globais, Negligenciadas e Mais Negligenciadas, de acordo com o seu documento “Fatal Imbalance”.

Os esforços de MSF foram determinantes para ampliar a mobilização internacional e, em 2003, é criada a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi). Dois anos depois a Organização Mundial da Saúde (OMS) cria o Departamento para Controle de Doenças Tropicais Negligenciadas. Em 2007, na sede da OMS em Genebra, Suíça, é realizado o encontro de parceiros globais sobre doenças negligenciadas.

A iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas tem se empenhado para que a indústria farmacêutica dê maior atenção às chamadas doenças da pobreza. Entre 2000 e 2011, segundo a DNDi, foram aprovados 850 novos medicamentos e somente 4% com indicação para doenças negligenciadas, que representam 11% do volume total de doenças.

O retorno, com milhares de casos, da dengue e da leishmaniose é, de fato, um dos principais indicadores de que as doenças negligenciadas continuam sendo um grande dilema para a saúde pública no Brasil. Abaixo, um panorama das DTNs, em território brasileiro e no mundo.

Marcus Schaffer sofreu com a dengue e adquiriu sequela (Foto José Pedro S.Martins)

Marcus Schaffer sofreu com a dengue e adquiriu sequela (Foto José Pedro S.Martins)

Dengue – Foram mais de 1,6 milhão de casos prováveis de dengue no Brasil em 2015, 178% a mais do que o ano anterior, segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde divulgado em janeiro de 2016. Foram contabilizadas em todo país 843 mortes pela doença, contra 473 em 2014.

O motorista Marcus Schaffer Lourenço, de Campinas, diz “agradecer muito a Deus” por não ter entrado nessa contabilidade letal. Depois de ter recebido o diagnóstico de dengue, permaneceu mais ou menos tranquilo até que, alguns meses depois, quando fez um hemograma completo, descobriu que tinha a PTI, como os médicos denominam a Púrpura Trombocitopênica Idiopática, doença autoimune que provoca a destruição das plaquetas do sangue. Com isso, é mais difícil a coagulação.

“Agora tomo tratamento diariamente e faço acompanhamento, mas o número de plaquetas é sempre baixo. A médica instruiu para que, no caso de algum sangramento, eu sempre informe que tenho a PTI, para facilitar o tratamento”, conta Marcus, que sempre faz o retorno no próprio Hospital Celso Pierro. O normal é que sejam encontradas de 150 mil a 400 mil plaquetas por milímetro cúbico no sangue. Uma pessoa com PTI tem menos de 100.000/mm3 de plaquetas.

Schaffer é então um dos milhares que ficam com sequelas da dengue, que voltou a causar um drama nacional em 2016, com 1.483.623 casos. São números que sintetizam o pânico representado pela multiplicação do Aedes aegypti em território nacional.

Em 2017 houve uma queda considerável, para 251.711 casos prováveis, segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (aqui). Os números dos últimos anos mostram, contudo, que o Brasil ainda está longe de poder comemorar vitória, doença que parecia eliminada há algumas décadas.

Um estudo da Academia Brasileira de Ciências (ABC), com base nos dados do Datasus, mostrou como a dengue voltou a assustar na década de 1990, com números crescentes desde 1993, com picos em 1998 (mais de 500 mil casos) e 2002 (quase 700 mil casos), declinando em seguida para novamente crescer a partir de 2005. E mais recentemente o Brasil também passou a sofrer com o surgimento de surtos de chikungunya e zika vírus.

A redução no número de casos foi expressiva em Campinas (SP), que nos anos de 2014 e 2015 liderou o ranking nacional, com 42.664 e mais de 60 mil casos, respectivamente. Em 2016 foram 3.542 casos e em 2017, apenas 119. A diretora da Vigilância em Saúde, Andrea Von Zuben, credita a queda substantiva à estratégia usada pela Prefeitura, contemplando ações de conscientização em escolas e na mídia, visitas a domicílios, limpeza de terrenos e nebulização, sob a coordenação do Comitê Gestor de Controle de Arboviroses. Em 2017 a Informática de Municípios Associados (IMA), ligada à Prefeitura, lançou o software  “Arboviroses Campinas”, que viabiliza a identificação mais rápida das áreas críticas.

Pantanal, um paraíso mas que ainda enfrenta o drama da leishmaniose (Foto José Pedro Martins)

Pantanal, um paraíso mas que ainda enfrenta o drama da leishmaniose (Foto José Pedro S.Martins)

Leishmaniose – Somente a malária é mais letal do que a Leishmaniose entre as doenças parasitárias no planeta. Provocada por 20 espécies do protozoário parasita Leishmania, transmitido por mosquitos infectados, é doença curável e mais de 100 mil pessoas já foram tratadas por Médicos Sem Fronteiras em todo mundo. São cerca de 3 mil novos casos por ano no Brasil, país que representou 90% das ocorrências na América Latina entre 1992 e 2011, segundo a Organização Panamericana da Saúde. A doença tem migrado da zona rural para a urbana em função de desmatamentos.

De fato, segundo o estudo “Doenças Negligenciadas” da Academia Brasileira de Ciências (ABC), coordenado pelo professor Wanderley de Souza, a leishmaniose tem representado uma forte preocupação sanitária “tanto pela sua expansão geográfica quanto pela tendência de urbanização. No Brasil a doença avança na região Centro-Oeste e já se encontra na periferia das grandes cidades do Nordeste e do Centro-Oeste”. O aumento do número de casos da Leishmaniose Visceral é inquietante. Eram menos de 500 casos anuais no início da década de 1980, subindo para 2.500 em 1985, quase 4 mil em 1995 e quase 5 mil em 2001, reduzindo em seguida para manter-se em mais de 3 mil/ano nos últimos anos.

“O Brasil tem vários grupos de pesquisa em leishmaniose reconhecidos internacionalmente. É necessário um esforço para promover o financiamento adequado destes grupos, visto que o Brasil, onde ocorre um grande número de casos da doença, precisa desenvolver o conhecimento apropriado para o controle da infecção e manejo da doença”, defende a Academia Brasileira de Ciências (o estudo completo aqui).

Hidrofobia, ou raiva – Uma série de medidas em saúde pública levou à expressiva redução da hidrofobia, ou raiva, em território brasileiro. Assim, de uma média superior a 50 casos entre 1989 e 1994 (73 em 1990), foram registrados somente dois casos de raiva humana em 2015, um em Corumbá (MS), transmitido por cão, e um em Jacaraú (PB), transmitido por gato. O Brasil disponibiliza vacina contra a raiva, doença provocada por vírus transmitido em uma mordida, em toda a rede pública. São realizadas regularmente campanhas de vacinação de cães e gatos.

Tracoma – A doença inflamatória dos olhos, causada pela bactéria Chlamydia Trachomatis, é conhecida como tracoma, com a maior parte das incidências sendo em crianças. A introdução no Brasil aconteceu a partir do Nordeste, no século 18, com destaque para o foco da região do Cariri, no sul do Ceará. A prevalência caiu muito no Brasil desde a década de 1960. Um inquérito realizado pelo Ministério da Saúde entre 2002 e 2007, com uma amostra de cerca de 120 mil escolares em cada estado, indicou 5.968 casos de tracoma ativo, representando prevalência em torno de 5%. O estudo deixou claro que o tracoma continua sendo desafio para a saúde pública, sobretudo na zona rural.

Úlcera de Buruli – É uma doença infecciosa provocada pela Mycobacterium ulcerans (M. ulcerans), sendo a terceira micobacteriose em ocorrência em países tropicais, depois da hanseníase e a tuberculose.  Um primeiro caso foi identificado no Brasil em 2007, sendo uma pessoa tratada em Brasília. Dois anos depois foi identificado um novo caso, provavelmente contraído no Brasil, de um turista inglês que viajou pelo Pantanal. Há muito a ser feito em estudo sobre a doença no Brasil.

Treponematoses endêmicas – Infecções causadas por bactérias do gênero Treponema, têm alta prevalência em países da África e também Indonésia e Papua Nova Guiné.

Estratégia Global lançada em 2016 pela OMS

Estratégia Global lançada em 2016 pela OMS

Hanseníase – De acordo com o Ministério da Saúde, o número de casos novos de hanseníase caiu no Brasil de 50,5 mil em 2004 para 31 mil em 2014 e 25,2 mil casos em 2016. Ainda é grande desafio para a saúde pública no Brasil, segundo país com maior incidência no planeta, atrás apenas da Índia. O Brasil soma 11,6% de casos da doença, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). A hanseníase é doença infectocontagiosa e o agente etiológico é o bacilo Mycobacterium leprae (M. Leprae).

“Avançamos e podemos comemorar os progressos alcançados nos últimos anos, mas não podemos baixar a guarda. São necessários recursos financeiros adicionais e mais compromisso político para atingir o objetivo da eliminação da hanseníase”, disse o representante da Organização Panamericana da Saúde (OPAS), Joaquín Molina, no último dia 31 de janeiro, em Belém (PA), onde participou de evento relacionado ao Dia Mundial de Combate à Hanseníase.

No evento foi lançada, sob o lema “Hanseníase. Identificou. Tratou. Curou”, mais uma campanha do Ministério da Saúde, para alertar a população sobre os primeiros sintomas da doença. Outro projeto, voltado para a população de menos de 15 anos, foi lançado em outubro de 2017, em 20 municípios do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Piauí e Tocantins. É o Projeto Abordagens Inovadoras para Intensificar Esforços para um Brasil livre da Hanseníase, fruto de parceria entre Ministério da Saúde, OPAS e Fundação Nippon, do Japão.

Como em outras áreas, o combate à hanseníase continua, mobilizando diferentes setores. Mas ainda existe um longo caminho a percorrer, para que não sejam mais contabilizados casos como o de uma criança de 11 anos, Daniel Rodrigues Santiago, que morreu em Sorriso (MT), no primeiro dia de 2018, de hanseníase multibacilar. O Mato Grosso somou 2.658 casos novos em 2016, sendo o estado líder em notificação. A desigualdade na incidência é uma marca da hanseníase. As regiões Centro-Oeste (30 casos por 100.000 habitantes) e Norte (29/100.000) são aquelas com maior incidência no Brasil, seguidas do Nordeste (19), Sudeste (4) e Sul (3 por 100.000), segundo a OMS e Ministério da Saúde.

Artur Custódio: ainda são enormes os desafios relacionados à hanseníase no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Artur Custódio: ainda são enormes os desafios relacionados à hanseníase no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Membro da coordenação nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Artur Custódio alerta que “ainda existe uma demanda oculta, indicada por fatores como os casos em crianças”. De fato, segundo dados do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2016 foram diagnosticados casos novos de hanseníase em 2.885 municípios brasileiros. Em 591 desses municípios foram diagnosticados casos em menores de 15 anos, apontando a existência de focos de infecção ativos e transmissão recente.

Artur Custódio nota que nas áreas onde foi aprimorado o sistema de detecção, aumentou o número de casos identificados, confirmando a ocorrência da demanda oculta. Ele cita o exemplo de Palmas, capital do Tocantins, onde é implementado desde 2016 o Programa Palmas Livre de Hanseníase.  No contexto do Programa, houve uma sólida capacitação dos profissionais da Atenção Primária à Saúde que atuam no município e o resultado foi a melhoria da identificação precoce de casos novos.  A média anual era de identificação, até 2015, de 157 casos. Em 2016, com a entrada em vigor do Programa e suas estratégicas, foram detectados 613 casos novos. “A hanseníase continua invisível para a sociedade. Apenas com maior conhecimento sobre a doença e pressão social, haverá uma maior mobilização do setor público e privado”, completa o membro da coordenação nacional do Morhan.

A OMS lançou em 2016 a Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020 (aqui), fundamentada nos três pilares: fortalecer o controle, a coordenação e as parcerias do governo; combater a hanseníase e suas complicações; enfrentar a discriminação e promover a inclusão.

Dracunculíase – Continua prevalente na África, mas com número cada vez menor de casos. Também era muito disseminada na Índia e Paquistão. Provocada por um verme que provoca ulceração muito dolorosa, além de artrite incapacitante.

Equinococose – É uma zoonose provocada por um gênero de parasitas cestodes. A variedade equinococose cística ainda é detectada no sul do Rio Grande do Sul, de alta presença de bovinos e ovinos.

Rio Xingu, em Altamira (PA): na Amazônia o combate à malária é permanente (Foto José Pedro S.Martins)

Rio Xingu, em Altamira (PA): na Amazônia o combate à malária é permanente (Foto José Pedro S.Martins)

Malária –  A doença provocada por quatro espécies de protozoários do gênero Plasmodium (P. falciparum, P. vivax, P. malariae e P. ovale) e que está presente em 110 países continua devastadora no Brasil.  Muitas instituições se dedicam a combatê-la e, por isso, muitos pesquisadores entendem que ela não pode ser mais considerada como doença negligenciada. Ainda assim, na avaliação da Academia Brasileira de Ciências, “no Brasil ainda dispomos de um número reduzido de pesquisadores atuando na área, sobretudo no que se refere à pesquisa básica em P. vivax.”

O número de casos é assustador. Foram 174.522 casos entre janeiro e novembro de 2017, contra 117.832 no mesmo período de 2016, o que alimentou a inquietação na Organização Panamericana da Saúde (OPAS). Foram casos na região amazônica que, outra vez, segue o território mais crítico no Brasil.

A evolução da malária é permanente no país desde a década de 1960. Houve um crescimento constante, entre as décadas de 1960 e 1970, mas com um salto significativo a partir de 1983.

Doença de Chagas – Como o motorista Marcus Schaffer, que descobriu ter adquirido a Púrpura Trombocitopênica Idiopática casualmente, ao fazer um hemograma, Osvaldo Rodrigues da Silva também soube tardiamente ser portador da Doença de Chagas. Natural de uma região originalmente endêmica, na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, migrou para Campinas e no início da década de 1980 sentiu os primeiros sintomas.

“Quando eu me agachava, era um terror ter que levantar”, lembra ele. A descoberta veio por volta de 1985, quando teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e os exames revelaram a Doença de Chagas. “É uma doença invisível e por isso muito traiçoeira”, resume Osvaldo, que passou a se tratar na Unicamp e diz ter melhorado muito.

O mesmo não pode afirmar, porém, de muitos de seus amigos, co-fundadores, em 2000, da Associação dos Portadores da Doença de Chagas de Campinas e Região (ACCAMP). “Vários dos ex-diretores infelizmente já morreram. Mas vamos continuar a luta”, afirma Osvaldo, que diz ser um grande defensor do Sistema Único de Saúde (SUS). “É uma conquista do povo brasileiro, não pode ser tirada de nós”, acrescenta. Ele admite, entretanto, que o diagnóstico e o tratamento da doença ainda estão muito longe do ideal no país.

Não é por falta de estudos e pesquisas. O citado estudo da Academia Brasileira de Ciências mostrou que autores brasileiros são de longe os que mais escrevem sobre a Doença de Chagas ou o Trypanosoma cruzi, o protozoário que causa a enfermidade e tem várias espécies de insetos como hospedeiros. Mais de 3.200 artigos científicos sobre a doença ou o agente etiológico foram assinados por brasileiros. Os Estados Unidos aparecem em segundo lugar no ranking, com 2.500 artigos e a Argentina em terceiro, com cerca de 1.700.

Entretanto, apesar do nível de conhecimento, os cálculos são de 2 a 3 milhões de pessoas com a Doença de Chagas no Brasil. Estima-se que menos de 1% recebe tratamento. Chagas “ainda constitui a doença parasitária responsável pelo maior número de mortes na América Latina, superando a malária”, alerta a ABC. “Apesar da atuação de vários grupos de pesquisa os avanços no sentido de obter drogas mais efetivas e menos tóxicas são relativamente poucos”, lamenta a Associação. De novo a desigualdade regional. Entre 2000 e 2009, a Região Norte concentrou a quase totalidade dos casos de Doença de Chagas Aguda.

Tripanossomíase humana africana (doença do sono) – Avançou muito o combate a essa enfermidade, ainda presente na África e causada por parasita transmitida pela mosca tsétsé.

Cisticercose – Doença provocada pelo desenvolvimento da forma larval da Taenia, o Cysticercus, nos tecidos, com transmissão pela ingestäo de ovos de Taenia. Há poucos estudos epidemiológicos de grande escala no Brasil. Continua sendo desafiadora no país.

Infecções alimentares por trematódeos – Trematódeos são parasitos que causam doenças em humanos, sendo os digenéticos aqueles que se desenvolvem em dois ou mais hospedeiros distintos, como os caramujos. No Brasil provocam doenças em humanos os trematódeos digenéticos Schistosoma mansoni e Fasciola hepatica, os quais provocam, respectivamente, a esquistossomose e a fasciolose.

Filariose linfática (elefantíase) – Doença parasitária crônica, que causa incapacidade permanente. No Brasil as áreas endêmicas estão na Região Metropolitana de Recife, com número de casos em queda acentuada desde 2003, após tratamentos em massa usando Dietilcarbamazina (mais de 1 milhão de pessoas foram tratadas entre 2007 e 2012). Ainda assim, estima-se em mais de 300 mil pessoas a população em risco, sobretudo nos municípios de Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes e Paulista. Geralmente é necessária uma prolongada permanência em áreas endêmicas para que ocorra a transmissão, por meio de mosquitos.

Oncocercose (cegueira dos rios) - Doença parasitária crônica, provocada pelo nematódeo Onchocerca volvulus. É a segunda causa de cegueira infecciosa no planeta. No Brasil a área endêmica é o território Yanomami, nos estados do Amazonas e Roraima, divisa com Venezuela. Segundo a Fundação Nacional de Saúde (FNS), não há registro de casos novos entre 2000 e 2016. Estima-se em 1.200 o número de casos registrados antes desse período. A Fundação Nacional de Saúde admite, porém, que há dificuldade em monitorar a situação, em razão da grande mobilidade dos Yanomami em seu território.

A FNS nota que a intervenção mediante tratamentos coletivos, com altas coberturas em área endêmica da população Yanomami, é a melhor estratégia para se alcançar a meta de eliminação. Desta forma, os tratamentos coletivos devem ser mantidos com regularidade, com coberturas adequadas e com homogeneidade. Os resultados dos inquéritos realizados, completa a Fundação Nacional de Saúde, revelaram uma queda expressiva na incidência da Oncocercose, embora não tenha sido atingida, ainda, a meta de interrupção da transmissão.

Taxas de Internação e Mortalidade por Esquistossomose. Brasil, 1990 a Fonte: SIH/SUS e SIM/Ministério da Saúde. Fonte: SVS/DVE/CGDT/COVEV.

Taxas de Internação e Mortalidade por Esquistossomose. Brasil, 1990 a Fonte: SIH/SUS e SIM/Ministério da Saúde. Fonte: SVS/DVE/CGDT/COVEV

Esquistossomose (bilharziose) –  A  esquistossomose está presente em mais de 70 países. Coordenado pelo doutor Naftale Katz, pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR)/Fiocruz Minas, o Inquérito Nacional de Prevalência da Esquistossomose e Geo-helmintos revelou que 1,4 milhão de brasileiros podem estar infectados com o Schistosoma mansoni. O Inquérito apurou que 38 mil casos foram registrados entre 2001 e 2015 na área considerada endêmica, formada por cinco estados do Nordeste, mais Espírito Santo e Minas Gerais, no Sudeste. De qualquer modo houve uma redução da prevalência, o que Naftale Katz atribuiu ao avanço do saneamento básico. O médico entende que um salto ainda maior do saneamento levará à redução ainda mais significativa da doença.

Em 2015 foram computados 4.356 casos no Brasil. “Ao lado do diagnóstico acurado e do tratamento, o investimento em saneamento básico é ressaltado como grande prioridade, o que requer uma política continuada e em ritmo mais intenso do que o observado nos últimos anos”, reitera a presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Nísia Trindade Lima, comentando os resultados do Inquérito (íntegra aqui).

Uma ótima notícia foi o anúncio, em junho de 2017, do sequenciamento do genoma do Biomphalaria glabrata, o caramujo que atua como hospedeiro do verme causador da esquistossomose. O trabalho foi feito por um conjunto de 118 pesquisadores de 11 países, 15 dos quais brasileiros, ligados à Fiocruz Minas. O caramujo é encontrado nos territórios de prevalência da esquistossomose no Brasil e o estudo abre a expectativa de que no futuro possa ser manejada a população do Biomphalaria glabrata, o que apenas pode acontecer com maiores investimentos em pesquisas no setor.

Helmintíases transmitidas pelo solo – Doenças transmitidas por ovos de parasitos encontros nos solos, inclusive de praças públicas. Há um combate prioritário às helmintíases no Acre, Amazonas, Bahia, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.

E o futuro? - Desde outubro de 2015 o Brasil passou por um surto de microcefalia, uma malformação associada ao vírus Zika mas também a outros fatores, cujo florescimento o projetou como emergência de saúde internacional. Em 2017 o país voltou a se assustar, desta vez com a febre amarela, mais uma doença considerada negligenciada mas que retornou com força no país. Com essas doenças, o combate ao Aedes aegypti voltou a ocupar a agenda pública.

Estes dois casos confirmaram que o futuro ainda está aberto para o combate às Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) no Brasil. Maior investimento em pesquisas, qualificação profissional e prioridade para o saneamento – sem esta equação parece não haver muitas perspectivas positivas.

“Sem investimento em educação e saneamento continuarão as chamadas doenças da pobreza”, diz a médica Dra.Evelyn Eisenstein, do Centro de Estudos Integrados Infância, Adolescência e Saúde e da Sociedade Brasileira de Pediatria. A médica, que participou da discussão sobre a microcefalia no âmbito de um grupo de estudos da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), afirma estar especialmente preocupada com as crianças, vítimas preferenciais da violência, da pobreza e de suas doenças associadas. “Dinheiro existe, não existe é vontade política. A febre amarela voltou, pode isso?”, conclui, sintetizando uma dúvida generalizada entre os brasileiros.

 

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