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Combate ao trabalho escravo no Brasil une agendas ambiental e de direitos humanos
Combater o desmatamento é o maior desafio para o Brasil no enfrentamento das mudanças climáticas (Imagem de Hans Braxmeier por Pixabay)

Combate ao trabalho escravo no Brasil une agendas ambiental e de direitos humanos

Por José Pedro Soares Martins

Campinas, 05 de agosto de 2021

 

Na época atuando na Greenpeace, onde foi coordenador das Campanhas da Amazônia, de Clima e de Políticas Públicas, Marcio Astrini teve oportunidade de conversar há alguns anos em Xinguara, no Sudeste do Pará, com o Frei Henri des Roziers, frade dominicano de origem francesa que se notabilizou pelas ações de denúncia do trabalho escravo contemporâneo. Atual secretário-executivo do Observatório do Clima, Astrini indagou então a Frei Henri a razão de tanto desmatamento naquela região da Amazônia. “Por aqui há muito trabalho escravo e onde não há respeito à natureza humana não pode haver respeito a nenhuma natureza”, respondeu o religioso, que faleceu em sua cidade natal, Paris, em 26 de novembro de 2017, aos 87 anos, depois de viver muitos anos no Brasil, onde atuou como advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

O diálogo entre Frei Henri e Astrini é revelador da magnitude do desafio de erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, e sobretudo na Amazônia e no Centro-Oeste, territórios onde ocorre a maior parte dos casos. O combate nessas regiões às condições de trabalho análogas à escravidão, um claro desrespeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos e à Constituição brasileira de 1988, está associado à agenda emergente de enfrentamento das mudanças climáticas, que tem no desmatamento uma de suas causas principais.

A superação da escravidão contemporânea está igualmente vinculada a outras questões estruturais relevantes no Brasil, como a prevalência do racismo e do analfabetismo. Assim, se houve importantes avanços em ações por parte do poder público, da Justiça e da sociedade civil de enfrentamento das condições de trabalho análogas à escravidão, a sua efetiva erradicação, após a superação de obstáculos superlativos que persistem, depende de políticas amplas, multidimensionais, defendem vários especialistas ouvidos pela Agência Social de Notícias.

O estado do trabalho escravo contemporâneo no Brasil

Durante 20 anos o padre Ricardo Rezende Figueira atuou na região de Rio Maria e Conceição do Araguaia, no Sudeste do Pará, um dos principais focos de conflito pela terra no Brasil. Ele descobriu que o trabalho escravo continua sendo praticado no Brasil quando chegou àquela área da Amazônia em 1977.

Rezende estava na escadaria de uma Igreja quando viu um trabalhador saindo correndo de um automóvel, logo sendo seguido por duas pessoas, que o acabaram capturando. A princípio, pensou que era algum tipo de brincadeira. Em pouco tempo percebeu que era muito sério: quem foge de situações análogas à escravidão, sobretudo no paraíso tropical da Amazônia, entra rápido para o inferno das ameaças de morte, muitas delas cumpridas.

O religioso recebeu muitas ameaças de morte, mas continuou a militância, agora como professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atuando no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos. Há muitos anos acompanha, portanto, a evolução do enfrentamento das condições de trabalho análogas à escravidão, em particular na Amazônia.

“Vivemos um longo período de silêncio e indiferença quanto ao tema. A sociedade não tinha percepção do crime da escravidão ilegal, salvo na literatura e em testemunhos esparsos de alguns desde o século 19″, comenta o professor da UFRJ. Ele nota que, a partir de discussões organizadas na Procuradoria Geral da República em 1992, algo começou a ser construído, como a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do antigo Ministério do Trabalho e Emprego. Foi igualmente criado o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), substituído em 2003 pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e, depois, Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).

Em 2003 foi elaborado o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que contribuiu para intensificar as ações de enfrentamento da escravidão contemporânea. Em função desse conjunto de medidas, desde 1995 e até 2020 foram resgatados 53.378 trabalhadores em condição análoga à escravidão no Brasil, o que significa uma média de 2.053 trabalhadores resgatados por ano no período.

Com 13.225 resgatados, o Pará é o estado onde foi registrado até 2020 o maior número de resgates de trabalhadores, correspondendo a 25% do total. Depois aparecem o Mato Grosso, com 11% dos casos, Minas Gerais (9%), Goiás (8%) e Maranhão, com 7% dos casos de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão. Os dados são do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, fruto de parceria entre a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia. O Observatório é outra iniciativa associada ao enfrentamento da escravidão contemporânea no Brasil, reunindo diversas instâncias.

Ricardo Rezende assinala que, no plano legislativo, outra ação nos últimos anos foi a nova formulação para o artigo 149 do Código Penal, “onde, de forma nova e criativa se afirma o que seria considerado trabalho análogo a de escravo”, ele afirma. Em função da Lei Federal 10.803, de 11 de dezembro de 2003, o artigo 149 do Código Penal passou a ter essa redação: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.

Ricardo Rezende, há décadas na luta contra o trabalho escravo contemporâneo (Foto José Pedro S.Martins)

Ricardo Rezende, há décadas na luta contra o trabalho escravo contemporâneo (Foto José Pedro S.Martins)

Na opinião do professor da UFRJ, desde o início da década de 1990 houve avanços em política pública, no enfrentamento direto a escravidão contemporânea, até o governo da presidente Dilma Rousseff, que deixou o cargo em função do impeachment aprovado pela Câmara dos Deputados em 31 de agosto de 2016 . “A partir de Michel Temer e agravado no governo de Jair Bolsonaro, o combate se tornou mais complexo, depende da disposição individual de auditores fiscais, procuradores, agentes policiais federais. Deixou de ser uma política de Estado”, ele lamenta.

Para Ricardo Rezende o Brasil, último país das Américas a abolir oficialmente a escravidão, a 13 de maio de 1888, resiste em erradicar o trabalho escravo contemporâneo “por faltarem pressões consistentes e permanentes da sociedade civil sobre o Estado; por faltar disposição dos meios de comunicação sociais em abrir espaços maiores às informações sobre o crime; por ausência de empatia de governantes para com os trabalhadores e trabalhadoras. Resiste porque a desigualdade social é enorme e crescente, aumentam os bolsões de desempregados e de famintos”, acrescenta.

“Os mais vulneráveis economicamente são, com mais frequência, aliciáveis à escravidão. Não se erradica o crime sem políticas públicas de reforma agrária, de suporte emergencial para os mais frágeis, redistribuição das riquezas, escola em tempo integral para crianças, geração de emprego, fiscalização mais constante e permanente das relações de trabalho”, conclui Ricardo Rezende, sinalizando com a urgência de uma agenda multidimensional para a concreta erradicação da escravidão contemporânea no Brasil.

O abandono de ações mais efetivas, por parte do Estado brasileiro, para combater o trabalho escravo a partir do governo de Michel Temer também é lamentado por Paulo Sergio Pinheiro, que acompanhou a criação do Gertraf em 1995, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. “Foi a primeira vez que o Estado brasileiro tomou alguma medida concreta, desde a abolição oficial da escravatura em 1888″, lembra Pinheiro, que foi ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique.

Uma das principais referências no Brasil na temática dos direitos humanos,  Pinheiro é autor dos Princípios de restituição de moradia e propriedade para refugiados e deslocados internamente da ONU [Pinheiro Principles] e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ele lembra que, no momento de criação do Gertraf, houve especial empenho de Procuradores do Trabalho e da Polícia Federal, para realizar as ações de resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão. “Era um grande trabalho, desse pessoal se deslocar de Brasília até o local dos resgates, pois se as autoridades locais fossem avisadas antecipadamente os proprietários rurais escravocratas certamente seriam alertados”, comenta Pinheiro, para quem o trabalho de enfrentamento da escravidão contemporânea foi depois “reforçado e intensificado nos governos Lula e Dilma”.

Na opinião de Pinheiro, que desde 2011 preside a Comissão de Investigação das Nações Unidas sobre a República Árabe da Síria, o trabalho em condições análogas à escravidão permanece no Brasil “justamente pela resistência dos proprietários escravocratas, que estão no meio rural mas também no urbano, bastando ver a exploração da mão-de-obra de migrantes bolivianos e outros países em empresas na cidade de São Paulo”. Ele também lamenta que “permanece uma cultura de mentalidade escravocrata no Brasil, país por exemplo com maior número de empregados domésticos, em sua maioria negros, o que é um legado da escravidão”.

Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), o engenheiro florestal Acácio Zuniga Leite destaca por sua vez que uma efetiva reforma agrária é fundamental como uma das ações estratégicas pela erradicação do trabalho escravo contemporâneo no país. “Hoje o Brasil tem um papel na divisão internacional da produção colocado como o celeiro do mundo. Nós temos visto alguns absurdos em termos de publicação e marketing nesse sentido, como a informação de que o Brasil alimenta 800 milhões de pessoas. Isso oculta expulsões de trabalhadores e uma série de atividades agropecuárias que apenas se viabilizam economicamente com a superexploração do trabalho e da natureza, como já devidamente documentado”, comenta Acácio.

Nesse contexto, salienta, “a reforma agrária seria uma oportunidade, pelo processo de desconcentração da propriedade da terra, de gerar postos de trabalho e emprego que dariam conta de possibilitar a dignidade para diversas dessas pessoas que ficam rodando o Brasil em condições ultra precárias de trabalho, principalmente em processos de colheita e plantio de algumas culturas agrícolas”.

Alguns estudos mostram o investimento decrescente em ações de reforma agrária nos últimos anos no Brasil. De acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o número de famílias assentadas em projetos de reforma agrária tem variado muito, dependendo do momento político. Foram 288 mil famílias assentadas no primeiro governo (1995-1998) e 252 mil no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002). No primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2006) foram assentadas 381 mil famílias, com o recorde de 136 mil famílias em 2006.

Desde então os números declinaram progressivamente. Foram 232 mil famílias assentadas no segundo governo Lula (2007-2010) e 133 mil somando o primeiro mandato e segundo, interrompido pelo impeachment, governos de Dilma Rousseff, entre os anos de 2011 e agosto de 2o16. No governo de Michel Temer, entre setembro de 2016 e 2018, foram apenas 10 mil famílias assentadas em projetos de reforma agrária no Brasil.

Incêndio na floresta amazônica em Altamira, no Pará, estado com maior número de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão (Foto Victor Moriyama/Greenpeace)

Incêndio na floresta amazônica em Altamira, no Pará, estado com maior número de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão (Foto Victor Moriyama/Greenpeace)

Desmatamento na Amazônia tem associação com trabalho escravo

Conforme o Sistema de Estimativa de de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), iniciativa do Observatório do Clima, entre os 20 municípios de maior emissão de gases de efeito estufa no Brasil em 2018, nove são do Pará, estado com maior percentual de resgates de trabalhadores em condição análoga à escravidão de 1995 a 2020, de acordo com os dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.

No estado do Pará foram emitidas 400 milhões de toneladas brutas e 551 milhões de toneladas líquidas de dióxido de carbono equivalente (Mt CO2e) em 2019, número que o coloca na liderança estadual de emissões conforme o SEEG do Observatório do Clima. Atividades em mudança no uso da terra e florestas, incluindo portanto o desmatamento, foram responsáveis por 85% das emissões paraenses em 2019.

Os dados dos dois Observatórios não surpreendem o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini. “O que temos na Amazônia é que muitas vezes o desmatamento, o trabalho escravo, a grilagem, invasão de áreas protegidas e uso da violência principalmente na tomada de terras dos mais pobres são situações que normalmente coexistem, são situações irmãs que andam de mãos dadas na destruição daquela região”, protesta.

“Muito do desmatamento que existe hoje na Amazônia foi feito com trabalho escravo. Muito trabalho escavo foi utilizado para abrir áreas de floresta, principalmente aquelas mais distantes e estavam mais preservadas. São as regiões chamadas de novas fronteiras do desmatamento”, acrescenta Astrini, para quem as ações de combate ao desmatamento, no contexto do enfrentamento das mudanças climáticas, teria portanto reflexo direto nas iniciativas pela erradicação do trabalho escravo contemporâneo na região.

Ele entende, entretanto, que a diminuição da escalada do desmatamento na Amazônia depende muito de maior mobilização da sociedade civil e da conscientização sobre a importância da região, o que na sua avaliação tem ocorrido. “É preciso lembrar sempre que a floresta faz parte do nosso dia a dia, mesmo os que moram a milhares de quilômetros da Amazônia recebem a influência direta de lá, é lá que são formadas as chuvas que abastecem os reservatórios de água e garantem a geração de eletricidade de quem mora em apartamentos no centro de grandes capitais brasileiras”.  Para ele, o desmatamento “antes era mais tolerado, hoje há uma consciência crescendo”, diz Astrini, que está muito preocupado com o rumo da destruição da floresta amazônica no contexto do governo do presidente Bolsonaro.

O relatório “Análise das emissões brasileiras de Gases de Efeito Estufa e suas implicações para as metas de clima do Brasil 1970-2019″, lançado em 2020 pelo Observatório do Clima, revelou que o desmatamento na Amazônia e o setor agrícola são responsáveis por mais de 70% das emissões atmosféricas do país, com tendência de crescimento, revertendo o que vinha sendo verificado desde o início do século 21.

Marcio Astrini, do Observatório do Clima: brasileiros de grandes centros urbanos dependem das chuvas da Amazônia (Foto Márcia Alves/Observatório do Clima)

Marcio Astrini, do Observatório do Clima: brasileiros de grandes centros urbanos dependem das chuvas da Amazônia (Foto Márcia Alves/Observatório do Clima)

O documento mostrou que “desde 2010, ano de regulamentação da PNMC (Política Nacional sobre Mudança do Clima), que estabeleceu a primeira meta doméstica de redução de emissões da história no Brasil, o país elevou em 28,2% a quantidade de gases de efeito estufa que despeja na atmosfera todos os anos”, revertendo então a tendência de queda verificada entre 2004 e 2010.

Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, foi de 9,6% o aumento das emissões brutas de gases de efeito estufa do Brasil. “No ano em que o país teve sua governança federal de clima desmontada, com a extinção da Secretaria de Mudança do Clima e Florestas do Ministério do Meio Ambiente e o engavetamento dos planos de prevenção e controle do desmatamento (PPCDAm e PPCerrado), o país lançou na atmosfera 2,17 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2 e), contra 1,98 bilhão em 2018. O PIB nacional no mesmo ano subiu 1,1%, o que sugere que as emissões no Brasil, diferentemente das da maioria das outras grandes economias, estão descoladas da geração de riqueza”, afirmou o documento do Observatório do Clima.

Em 2020 e 2021, o desmatamento continuou acelerado na Amazônia, nota o mesmo Observatório do Clima, que é resultado da coalizão de dezenas de organizações da sociedade civil, como Amigos da Terra, Conservação Internacional, Fundação Boticário, ICLEI (Governos Locais pela Sustentabilidade), Greenpeace, IDEC, INESC e ISA, entre outras. Em abril de 2021, por exemplo, o Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD) do Imazon identificou 778 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal, que significa um aumento de 45% em relação a abril de 2020, quando o desmatamento atingiu 536 quilômetros quadrados. Em abril de 2021 o desmatamento aconteceu no Amazonas (28%), Pará (26%), Mato Grosso (22%), Rondônia (16%), Roraima (5%), Maranhão (2%) e Acre (1%).

“O nosso problema de descarbonização é parar a emissão de carbono que acontece vinda do desmatamento da Amazônia em primeiro lugar e depois da agricultura brasileira”, comenta Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima. “Acabar com desmatamento é o passo inicial. Em todas as iniciativas para combater o aquecimento global, as mudanças climáticas, o desmatamento é a forma mais rápida e barata de parar a emissão de gases de efeito-estufa”, diz Astrini.

Ele lembra que “transformar por exemplo a emissão de países europeus tem um custo e um tempo de transição. Parando de desmatar a floresta não tem custo, só benefícios. Acabar com o desmatamento contribui para a preservação da biodiversidade, com o equilíbrio climático, faz bem para a economia como para a imagem do país mundo afora”, acrescenta o secretário executivo do Observatório do Clima.

Os resultados preliminares do Painel Científico para a Amazônia, divulgados no mês de julho de 2021, reiteraram a urgência de ações para frear o desmatamento na região. “A Bacia Amazônica contém mais de 2.300 espécies de peixes, um número maior do que em todo o Oceano Atlântico. Aproximadamente um sexto da água doce do planeta flui através de seus rios e córregos. A floresta Amazônica também é um amortecedor contra as mudanças climáticas; ela regula a variabilidade climática e armazena cerca de 130 bilhões de toneladas métricas de carbono, correspondente a mais uma década de emissões globais de dióxido de carbono”, observam os cientistas que integram o Painel.

Os cientistas advertem que, hoje, esses ecossistemas da Amazônia, “que cobrem mais de 7 milhões de quilômetros quadrados, estão ameaçados pelo desmatamento, por incêndios, mineração, exploração de óleo e gás, grandes barragens para geração de energia hidrelétrica e por invasões ilegais. Uma área florestal do tamanho de Luxemburgo foi perdida apenas no mês de julho de 2019, devido a incêndios”, afirmam os membros do Painel, que defendem então medidas urgentes contra a devastação na Amazônia. O Painel Científico para a Amazônia é composto por mais de 200 cientistas de vários países.

Banner eletrônico de campanha do Ministério Público Federal contra o trabalho escravo

Banner eletrônico de campanha do Ministério Público Federal contra o trabalho escravo

Escravidão contemporânea e suas conexões com o analfabetismo e o racismo

Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo mostram que 70% dos trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão no Brasil, entre 1995 e 2020, eram analfabetos ou tinham o quinto ano do ensino fundamental incompleto. Somente 5% tinham o fundamental completo, 3% o ensino médio completo e nenhum tinha curso superior. O mesmo Observatório revelou que 54% dos trabalhadores resgatados se declararam negros, mulatos, pardos, cafusos ou mamelucos, enquanto 23% se declararam brancos e 18% da raça amarela. Informou ainda que a maior parte dos trabalhadores com naturalidade apurada era procedente da Região Nordeste.

Para Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, esses números confirmam como “falta muito ainda para avançarmos no país em termos de acesso, qualidade, permanência e inclusão na educação para todas as pessoas. Para a educação de jovens e adultos, estamos no pior dos cenários, porque temos retrocedido”, lamenta.

Andressa lembra que o Censo Escolar 2020 mostrou que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) teve uma queda de 7,5% em termos de matrículas, o que representa 196 mil estudantes a menos em relação ao ano anterior. Ela cita também que a Meta 9 do Plano Nacional de Educação (PNE) “sofreu retrocessos imensos”. A Meta que previa a taxa de 93,5% para a alfabetização dos brasileiros em 2015 não foi cumprida no prazo.

“Só após 5 anos, em 2020, isso aconteceu. Sem uma aceleração, a perspectiva é que o objetivo estabelecido para 2024 também não seja cumprido no prazo. Até lá, é preciso garantir o direito à educação que foi até agora negado a essas pessoas, que são quase 10 milhões, um contingente maior do que a população de muitos países. Pior ainda é o quadro do analfabetismo funcional, que avançou, quando deveria regredir. É necessária uma redução de mais de 15% da taxa atual até 2024, fim do período de vigência do PNE”, adverte Andressa.

A coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação afirma ainda que, quando considerada a Meta 8 do PNE, que trata da redução das disparidades educacionais de acordo com região, classe social, raça/cor, “que é um dado importante quando analisamos os casos de trabalho escravo, mais presentes em pessoas negras e pobres, das regiões mais pobres do país, vemos que desde 2014, se observa um crescimento lento mas comparativamente maior da escolaridade média do Nordeste (região onde esse indicador apresenta o menor nível) enquanto no campo e entre os 25% mais pobres da população brasileira há uma evolução menor”.

Andressa Pellanda: "Para a educação de jovens e adultos, estamos no pior dos cenários" (Foto Campanha Nacional pelo Direito à Educação)

Andressa Pellanda: “Para a educação de jovens e adultos, estamos no pior dos cenários” (Foto Campanha Nacional pelo Direito à Educação)

A equiparação do status educacional entre as populações negra e não-negra, por sua vez, é o objetivo que avança mais lentamente, observa Andressa Pellanda. “São as populações mais tocadas pela Covid-19, que perderam mais membros de suas famílias, nas 500 mil mortes”, acrescenta.

Para ela, os dados revelando o alto grau de analfabetismo ou baixíssimo nível de escolaridade entre os resgatados o trabalho escravo contemporâneo ratificam a urgência de uma agenda multidimensional para enfrentar o grande desafio de erradicação dessa prática. “É o que é preciso. A política educacional não pode ser desvinculada da assistência e da garantia de outros direitos. Exclusão escolar tem causas relacionadas à política educacional – especialmente as que tratam de acesso e permanência – mas tem muitas causas que são de falta de políticas de assistência (de renda e geração de emprego, alimentar, de moradia, etc)”, sustenta.

A coordenadora lembra que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação desenvolveu um projeto junto com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil que chamava Cada Criança, “com a perspectiva justamente de mostrar e fomentar a elaboração de políticas intersetoriais de educação e proteção com foco em prevenção e erradicação do trabalho infantil e garantia do direito à educação das crianças e adolescentes. Com o trabalho escravo, a perspectiva é análoga, acrescida da necessidade de um esforço maior em termos de recursos orçamentários, já que a política de Educação de Jovens e Adultos é uma das que mais vem sofrendo cortes e sequer existe uma política nacional de apoio a municípios para a promoção da alfabetização de adultos, já que o Programa Brasil Alfabetizado foi extinto no governo Temer e há um vácuo e um abandono dessa política desde então. É gravíssimo”, conclui Andressa.

STF tem várias decisões contra o trabalho escravo no Brasil

Corte máxima da Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem publicado várias decisões contestando o trabalho análogo à escravidão no país. Uma das mais relevantes delas foi a deliberação, tomada em sessão virtual encerrada a 14 de setembro de 2020, considerando constitucional a criação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, conhecido como a “lista suja do trabalho escravo”.

A decisão do STF, por maioria de votos, foi proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Na ação, a Abrainc sustentava que a Portaria Interministerial 4/2016, dos extintos Ministérios do Trabalho e Previdência Social e das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos teria ferido o princípio da reserva legal. Segundo a associação, a criação de um cadastro de caráter sancionatório e restritivo de direitos só poderia ter ocorrido por meio de lei.

O relator da ação, ministro Marco Aurélio, contestou a argumentação. Na sua avaliação, o princípio da reserva legal foi devidamente observado, na medida em que o Cadastro dá efetividade à Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que tem por princípio a chamada “transparência ativa”, segundo a qual os órgãos e entidades têm o dever de promover a divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitação. “Não é suficiente atender a pedidos de acesso, fazendo-se imperativo que a administração, por iniciativa própria, avalie e disponibilize, sem embaraço, documentos e dados de interesse coletivo, por si produzidos ou custodiados”, defendeu o relator.

O ministro salientou que que o cadastro não representa sanção. “Em vez disso, visa dar publicidade a decisões definitivas em processos administrativos, observadas as garantias do contraditório e da ampla defesa, referentes a ações fiscais em que for constatada relação abusiva de emprego, similar à de escravidão. Segundo ele, ao divulgar o resultado de inspeções de interesse coletivo, o cadastro sinaliza o monitoramento da razoabilidade das condições de trabalho, pois o nome do empregador infrator é mantido na lista por dois anos”, assinala comunicado do STF sobre a decisão.

Para o ministro Marco Aurélio, a portaria interministerial realiza direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa humana, composto pela proibição de instrumentalização do indivíduo, e aos valores sociais do trabalho. “A quadra vivida reclama utilização irrestrita das formas de combate a práticas análogas à escravidão”, afirmou o ministro.

Outra decisão do STF sobre o tema foi a de que não há necessidade de violência física, de coação direta a liberdade de ir e vir ou de servidão por dívida para caracterizar o crime de redução a condição análoga à de escravo. Mais uma deliberação a respeito foi a de que a Justiça Federal é competente para julgar o crime de redução a condição análoga à de escravo.

Em dezembro de 2017 o Supremo Tribunal Federal publicou um Boletim de Jurisprudência Internacional sobre Trabalho Escravo, contemplando suas deliberações a respeito e também determinações legais de órgãos como Corte Interamericana de Direitos Humanos, Corte Europeia de Direitos Humanos e de Supremas Cortes de vários países.

Simpósio no TRT-15 reuniu vários desembargadores e juízes para discutir combate ao trabalho escravo contemporâneo (Foto José Pedro S.Martins)

Simpósio no TRT-15 reuniu vários desembargadores e juízes para discutir combate ao trabalho escravo contemporâneo (Foto José Pedro S.Martins)

TRT de Campinas tem elenco de ações contra escravidão contemporânea

Se o Brasil foi o último país das Américas a abolir oficialmente a escravidão, Campinas foi a última cidade do país a libertar seus escravos, de acordo com alguns registros históricos. Pois em Campinas estão em curso várias iniciativas na linha do combate à escravidão contemporânea, como o elenco de ações do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, sediado na cidade e que tem uma jurisdição sobre 599 municípios paulistas, correspondentes a 95% do território estadual.

“Desde 2014, quando foi criado, o nosso Comitê, que é integrado por  desembargadores e juízes de primeiro grau, promove eventos e participa de seminários e congressos procurando conscientizar a sociedade civil sobre os males da exploração do trabalho escravo contemporâneo”, afirma o desembargador Eduardo Benedito de Oliveira Zanella, presidente do Comitê Regional para a Erradicação do Trabalho Escravo Contemporâneo, do Tráfico de Pessoas, da Discriminação de Gênero, Raça, Etnia e Promoção de Igualdade do TRT da 15ª Região.

O desembargador observa que, em função de parceria com o Ministério Público do Trabalho, quando solicitado o TRT de Campinas coloca à disposição juiz itinerante de primeiro grau para participar de diligência relacionada a trabalho escravo contemporâneo. Foi o caso do resgate de oito trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma fazenda em Mogi Guaçu, no dia 30 de setembro de 2020, portanto em plena pandemia de Covid-19.

O resgate foi resultado de operação do Ministério Público do Trabalho (MPT), com apoio da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e de agentes da Secretaria Regional de Segurança Institucional do MPT. A diligência teve a participação de juíza do trabalho plantonista do Comitê para a Erradicação do Trabalho Escravo Contemporâneo, que realizou uma audiência no local, visando a colheita de provas e garantia dos direitos. Os oito trabalhadores, seis homens e duas mulheres, eram procedentes de Taiobeiras, no norte de Minas Gerais, de onde foram transportados para o cultivo de jiló, berinjela e abobrinha.

Desembargador Eduardo Zanella, do TRT da 15ª Região, de Campinas: "Brasil ainda vive o racismo estrutural" (Foto Divulgação TRT-15)

Desembargador Eduardo Zanella, do TRT da 15ª Região, de Campinas: “Brasil ainda vive o racismo estrutural” (Foto Divulgação TRT-15)

O Comitê do TRT da 15ª Região, continua o Dr.Zanella, também integra a Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE/SP) e o Comitê Estadual Judicial de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condição Análoga à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas, criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Fruto de elaboração da COETRAE/SP, nota o desembargador, foi recentemente editado o Plano Estadual para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo, em função do decreto Nº 65.528, de 17 de fevereiro de 2021, assinado pelo governador João Dória. O Plano estabelece que a erradicação do trabalho análogo à escravidão é uma “prioridade no estado de São Paulo”.

Uma das ações previstas no Plano Estadual é articular o trabalho da COETRAE/SP com a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e demais comissões estaduais, em especial dos estados de origem dos trabalhadores migrantes que são deslocados para São Paulo.  Outra ação é a criação de um Fundo Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo, a ser mantido com recursos oriundos de multas e indenizações coletivas decorrentes da atuação do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário, em situações envolvendo trabalho análogo ao de escravo.

Para o Dr.Zanella, séculos de exploração do trabalho escravo no Brasil, primeiro dos indígenas e depois dos negros trazidos da África, deixaram como herança “o racismo estrutural que vivemos até hoje”. Em sua opinião, esse racismo estrutural se manifesta culturalmente de várias formas, como no uso comum de expressões como “criado mudo”, “humor negro”, “mercado negro”, “samba do crioulo doido” e “lista negra”.  “O uso dessas expressões e outros hábitos condenáveis ofende as pessoas”, lamenta o desembargador.

Para o presidente do Comitê Regional para a Erradicação do Trabalho Escravo Contemporâneo do TRT da 15ª Região, a permanência do trabalho análogo à escravidão do Brasil tem várias causas, como a busca por alguns “pelo baixo custo de produção, configurando uma concorrência desleal com aqueles que observam a legislação”.

Na sua opinião, não há dúvidas sobre a relação direta entre o desmatamento e a utilização do trabalho análogo à escravidão na Amazônia. “Trata-se do uso de mão-de-obra barata, com graves riscos para o trabalhador, não sendo incomum por exemplo a morte do trabalhador no corte das árvores. Eles são submetidos a jornadas exaustivas, a condições precárias de higiene, com dívidas contraídas na aquisição de equipamentos de trabalho, gerando a impossibilidade de deixar o trabalho, como comumente divulgado”, lamenta o Dr.Zanella.

Ele considera, então, ser fundamental uma política pública multidimensional para enfrentar o trabalho escravo na Amazônia. “É preciso vontade política para isso. Já ocorrem algumas ações afirmativas, pela instituição de cotas em concursos públicos, exames vestibulares, são avanços, mas logicamente ainda há muito por fazer”, acredita o desembargador do TRT de Campinas.

O Dr.Zanella cita, como mais uma ação do TRT da 15ª Região, o Acordo de Cooperação entre o Comitê Regional para a Erradicação do Trabalho Escravo Contemporâneo, do Tráfico de Pessoas, da Discriminação de Gênero, Raça, Etnia e Promoção de Igualdade e a Comissão Permanente da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, da subseção de Campinas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Estabelecido em 2016, o Acordo de Cooperação foi renovado no dia 18 de março de 2021. O acordo firmado entre as instituições deverá estimular ações conjuntas para divulgar fatos relevantes relacionados à escravidão negra no Brasil, especialmente na região de Campinas. “Os fatos apurados nessas ações conjuntas deverão compor um relatório circunstanciado, com vistas a justificar o dever de se reparar as vítimas da escravidão negra. Outro aspecto do acordo será o de promover a valorização e difusão da cultura afro-brasileira, bem como levantar a contribuição do negro na formação do povo brasileiro”, afirma comunicado do TRT de Campinas sobre a renovação do Acordo de Cooperação.

Em Campinas, outras iniciativas voltadas para o resgate da memória da escravidão e valorização da cultura afro-brasileira estão em desenvolvimento. Uma delas é o projeto do Museu da Paz e Centro de Educação, Memória, Estudos e Cultura Afro-Brasileira, que serão instalados no Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim por iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Outra ação é o projeto Afro Memória, realizado em parceria entre a Unicamp, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e outras organizações. Entre os propósitos do projeto está o de preservar, digitalizar e difundir acervos das organizações negras brasileiras. No último dia 26 de junho de 2021, como parte desse esforço, o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, recebeu o acervo Geledés Instituto da Mulher Negra.

A organização, atualmente presidida por Antônia Quintão, foi criada em São Paulo em 1988 por 10 mulheres: Sueli Carneiro, Solimar Carneiro, Sônia do Nascimento, Edna Roland, Maria Lúcia da Silva, Ana Maria da Silva, Deise Benedito, Elza Maria da Silva, Eufrosina de Oliveira e Lúcia Bernardes de Souza. Entre os documentos recebidos estão aqueles relacionados à participação brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul, em setembro de 2001. O evento repercutiu na formulação de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento do racismo no Brasil.

Peça de campanha da OIT contra a escravidão contemporânea

Peça de campanha da OIT contra a escravidão contemporânea

Brasil ainda não ratificou Protocolo da OIT sobre Trabalho Forçado

Se a Justiça do Trabalho vem se empenhando para combater a escravidão contemporânea no Brasil, ainda persistem obstáculos para novos avanços em termos legais sobre a temática. Um deles é o fato de que o Brasil, apesar de ser signatário, ainda não ratificou o Protocolo de 2014 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) à Convenção sobre Trabalho Forçado, de 1930.

Na época de sua aprovação, na Conferência Internacional do Trabalho em 2014, o Protocolo foi saudado como um importante instrumento para o combate às condições de trabalho análogas à escravidão. O Protocolo entrou em vigor em 9 de novembro de 2016 e a partir de então os países que o ratificaram passaram a ter que cumprir as obrigações nele contempladas. Os países que ratificam o Protocolo devem adotar medidas adicionais às eventualmente existentes para a prevenção, proteção e assistência às vítimas do trabalho forçado, além de permitir que elas tenham acesso à justiça e à compensação.

Para garantir o cumprimento do Protocolo, a OIT possui um sistema de supervisão sofisticado que verifica se os governos efetivamente adotaram as medidas necessárias. O sistema está fundamentado na análise periódica dos relatórios fornecidos pelos países, avaliando as ações e apontando questões, quando necessário. Os resultados dessa supervisão são públicos, o que significa que qualquer pessoa, seja jornalista, ONG ou cidadão, pode acompanhar como um país está cumprindo suas obrigações.

De acordo com o Sistema de Informação sobre Normas Internacionais do Trabalho da OIT, até o momento 54 países já ratificaram o Protocolo, incluindo aqueles democráticos, como Alemanha, Dinamarca, Reino Unido  e Bélgica, e outros historicamente de governos autoritários, como a Arábia Saudita, que já ratificou e onde o instrumento entrará em vigor em 26 de maio de 2022. Nas Américas, já ratificaram o Protocolo o Canadá, Argentina, Chile (entra em vigor em 2022), Costa Rica, Panamá, Peru (em vigor em 2022) e Suriname.

O escritório da OIT no Brasil confirmou para a Agência Social de Notícias que o Brasil ainda não ratificou o Protocolo. “O Protocolo segue tramitando no governo no processo de ratificação e já tem pareceres positivos do Ministério dos Direitos Humanos e Ministério da Economia. Ainda falta o pronunciamento de algumas pastas e o encaminhamento do texto pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional para ratificação”, informou o escritório da OIT, em Brasília.

Paulo Sergio Pinheiro: "Escravocratas persistem no Brasil do século 21" (Foto UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva)

Paulo Sergio Pinheiro: “Escravocratas persistem no Brasil do século 21″ (Foto UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva)

“É uma vergonha o Brasil ainda não ter ratificado”, comenta Paulo Sergio Pinheiro, uma das personalidades que integram a Comissão Arns, como é conhecida a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. “O Brasil perde, os trabalhadores perdem”, completa Pinheiro, que novamente atribui a não-ratificação, entre outros fatores, à força política dos “proprietários escravocratas, que persistem no Brasil do século 21″.

O professor da UFRJ, Ricardo Rezende, lembra por sua vez que o Brasil é o primeiro país a ter sido condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo crime de escravidão. Foi no dia 15 de dezembro de 2015 que, em sentença histórica, a CIDH condenou o Estado do Brasil pela prática de trabalho escravo e tráfico de seres humanos, abrangendo 85 funcionários da Fazenda Brasil Verde. “O Estado brasileiro não demonstrou ter adotado medidas específicas e nem ter atuado com a devida diligência para prevenir a forma contemporânea de escravidão à qual essas pessoas foram submetidas, nem para por fim a essa situação”, declarou a CIDH na sentença. “Que isso se torne um alerta para o governo e para a sociedade: o crime exige medidas urgentes de enfrentamento”, completa Ricardo Rezende.

Ainda no plano legal, persiste a polêmica sobre a Emenda Constitucional 81, de 5 de junho de 2014, dando nova redação ao artigo 243 da Constituição Federal e estabelecendo que: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º”. A norma entretanto ainda não entrou em vigor, pois falta a regulamentação. O presidente Jair Bolsonaro já se manifestou publicamente contra essa regulamentação.

“Além da Emenda 81, não regulamentada, pouco se regulamentou até agora da Constituição Federal de 1988 em termos da função social da propriedade”, nota o presidente da ABRA, Acácio Leite. A função social é contemplada pelo Inciso XXIII do Artigo 5º do texto constitucional, que estipula: “a propriedade atenderá a sua função social”.

O presidente da ABRA salienta que, entre os critérios da função social da propriedade apontados pela Constituição, apenas o relativo à produtividade já foi regulamentado, “e mal regulamentado”, na sua opinião. Falta ainda a regulamentação dos critérios relacionados às questões trabalhista, ambiental e de bem estar. “A eventual regulamentação, que esse governo e esse Congresso não vão fazer, dependendo portanto de um novo momento político para avançar nessa agenda, possibilitaria que muitas novas áreas fossem destinadas à reforma agrária, destravando a política de assentamentos que está parada desde 2016″, conclui Acácio Leite.

A erradicação definitiva do trabalho escravo contemporâneo no Brasil permanece como um grande desafio, em plena terceira década do século 21, mais de 130 anos depois da abolição oficial da escravatura.

José Osmir Bertazzoni e demais sindicalistas brasileiros na Conferência de 2014 da OIT (Foto Divulgação NCST)

José Osmir Bertazzoni e demais sindicalistas brasileiros na Conferência de 2014 da OIT (Foto Site da NCST)

BRASIL ESTÁ INADIMPLENTE COM A OIT, REFERÊNCIA NA LUTA GLOBAL CONTRA O TRABALHO ESCRAVO

O sindicalista José Osmir Bertazzoni foi um dos mais de 4.700 participantes da 103ª Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT), realizada em Genebra, na Suíça, entre 28 de maio e 12 de junho de 2014. Foi nesse evento a aprovação do Protocolo da OIT à Convenção de 1930 sobre o Trabalho Forçado.

Bertazzoni integrou a delegação brasileira como diretor jurídico da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), uma das centrais representadas no evento. A delegação tripartite tinha ainda representantes do governo brasileiro e do setor empresarial. São os três segmentos integrantes da OIT.

O sindicalista lembra que há anos o Brasil está inadimplente com a OIT e isso impacta diretamente na atuação dos representantes dos trabalhadores na organização que é a condutora global da luta contra a escravidão contemporânea. A OIT já considerou o Brasil uma referência em ações contra as situações análogas à escravidão.

Em função da inadimplência, não tem ocorrido por exemplo a tradução simultânea para o português dos debates nas conferências e outros eventos. Essa situação “limita muito a participação de líderes sindicais importantes do nosso país, que possuem dificuldades de acompanhar os debates”, observa Bertazzoni. Ele observa que o governo e o setor empresarial pagam tradutores particulares.

Durante a 103ª Conferência Anual, as centrais sindicais brasileiras (NCST, CUT, Força Sindical, CTB, UGT e CGTB), em histórica ação conjunta, denunciaram à OIT o descumprimento pelo Brasil das diretrizes previstas na Convenção 154 (sobre Negociação Coletiva), na Convenção 81 (sobre Inspeção do Trabalho na Industria e no Comércio) e seu respectivo protocolo de 1995.

A reclamação das centrais foi formalmente protocolada no dia 09 de junho de 2014, na sede da OIT, com a participação no ato, representando a NCST, dos advogados Samuel da Silva Antunes e Osmir Bertazzoni.

A OIT saudou a aprovação do Protocolo à Convenção do Trabalho Forçado como um passo fundamental na luta contra a escravidão contemporânea, que atinge mais de 20 milhões de trabalhadores no planeta.

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Organização sediada em Campinas (SP) de notícias, interpretação e reflexão sobre temas contemporâneos, com foco na defesa dos direitos de cidadania e valorização da qualidade de vida.