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Brasil: dez razões para o país das águas ter perigosa crise hídrica
Cantareira quase seco em janeiro de 2015: a imagem da crise hídrica (Fotos Adriano Rosa)

Brasil: dez razões para o país das águas ter perigosa crise hídrica

A edição de 2015 do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, divulgado nesta semana pela Unesco, advertiu que, se nada for feito, em 2030 o planeta terá um déficit de água de 40%. O documento foi divulgado em função do Dia Mundial da Água, lembrado neste 22 de março, domingo. Com 12% da água doce do mundo, o Brasil não deveria ter problemas com o abastecimento, mas o fato é que grande parte do país atravessa uma perigosa crise hídrica. A Agência Social de Notícias elenca dez razões para que isso ocorra, com base em dados oficiais e declarações de personagens envolvidos diretamente com a gestão dos recursos hídricos no país.

1. Cultura de desperdício – A frase está entre as últimas da Carta de Pero Vaz de Caminha, considerada a “carteira de identidade” do Brasil: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. A visão de águas inesgotáveis, e que podem ser aproveitadas para “tudo”, data do início da colonização do Brasil. A cultura do desperdício tem raízes históricas no país. Mudar essa coordenada cultural é fundamental para uma gestão sustentável dos recursos hídricos.

2. Distribuição desigual da água – A distribuição desigual da água é geralmente apontada como um dos fatores responsáveis pela crise hídrica, que afeta sobretudo o Nordeste e a Região Sudeste do Brasil. E de fato há uma desigualdade acentuada: mais de 70% da disponibilidade de água no país estão concentrados na Amazônia, que soma 60% do território brasileiro mas tem apenas 12% da população. O estado de São Paulo, que tem 20% da população brasileira, tem menos de 2% dos recursos hídricos nacionais. Entretanto, essa desigualdade geográfica não pode ser usada como desculpa. Apesar de ter a maior parte da água doce, a Amazônia tem os piores índices de saneamento no país. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2013), a Região Norte é aquele que apresenta menor proporção de domicílios atendidos com alguma modalidade de coleta de esgoto: 19,3%. Ou seja, grande parte da população da Amazônia, concentrada nas maiores cidades, convive com água poluída pelo esgoto sem tratamento. A questão, então, é de gestão dos recursos hídricos e saneamento, e não somente da distribuição desigual da água pelo território brasileiro.

3. Irregularidade das chuvas – Um dos fatores que explicam a abundância de água no Brasil é o regime de chuvas. A maior parte do território nacional registra médias anuais entre 1.000 e 3.000 milímetros de precipitação. A exceção fica para o Semi-Árido, que convive há tempos com escassez hídrica e tem uma média de chuvas anual entre 300 e 800 milímetros. Trata-se de uma média superior à das áreas desérticas, com média anual de chuvas abaixo de 250 mm. A irregularidade das chuvas, um fenômeno agravado pelo aquecimento global, ajudaria então a explicar a crise hídrica que afeta sobretudo o estado de São Paulo, onde choveu muito abaixo das médias históricas em 2013 e 2014. Mas novamente a questão é de gestão. A maior parcela do volume de chuvas escorre até os rios, por ausência de captação e armazenamento dessas águas. A obrigatoriedade de captação de água das chuvas passa por mudanças na legislação urbana, o que já vem sendo feito em alguns municípios. Nesse sentido a especulação imobiliária não pode prevalecer sobre o interesse público.

Reserva de mata nativa: destruição da vegetação tem impacto direto na proteção das nascentes de água

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4. Destruição de florestas e matas ciliares – Um dos pilares das crises hídricas que acontecem de tempos em tempos e em diferentes locais do país é a destruição de florestas e matas ciliares que protegem as nascentes. O maior exemplo histórico é a devastação da Mata Atlântica, reduzida em menos de 10% de sua vegetação original, ao longo da costa brasileira. A repercussão foi enorme no regime de chuvas em muitas das áreas de Mata Atlântica. O mesmo processo vem sendo verificado na Amazônia, onde cerca de 18% da floresta já foram erradicados. A Amazônia tem passado por secas severas, como as de 2005 e 2010. Nos dois casos, a seca levou à morte de árvores de grande porte em áreas de floresta primária em toda a Amazônia, que teve então diminuída a sua capacidade de acumular o dióxido de carbono da atmosfera. As estimativas são de que a Amazônia tenha capacidade de absorver até 1,5 bilhão de toneladas de CO2. As árvores mortas entram em decomposição, liberando mais CO2 para a atmosfera. Algumas fontes entendem que o desmatamento na Amazônia ajuda inclusive a explicar a seca no Sudeste, em função dos “rios voadores” que regularmente fluem do Norte para o Centro-Sul do país. Mas alguns cientistas ainda não corroboram essa hipótese. De qualquer modo, a destruição de florestas e matas ciliares têm enorme impacto no regime hídrico local. O novo Código Florestal brasileiro, em vigor desde 2013, não representa um mecanismo eficaz para a proteção das matas ciliares que protegem as nascentes dos rios. Na época, o pesquisador Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), entidade de pesquisa ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia, foi um dos cientistas que alertaram para o fato de que a anistia aos desmatadores, prevista no novo Código Florestal, pode incrementar o desmatamento na Amazônia e em outras áreas. O relator do projeto do novo Código Florestal foi o deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), atual ministro da Ciência e Tecnologia.

5. Ausência de tratamento de esgotos –  O avanço na legislação, na fiscalização e da consciência ambiental levou a medidas de controle mais rígidos dos esgotos produzidos pela indústria, mas o mesmo não tem ocorrido com os esgotos urbanos. Segundo o Instituto Trata Brasil, somente 48,6% da população brasileira têm acesso à rede de esgoto e apenas 39% dos esgotos urbanos são tratados no país. A Amazônia, que tem 73% da vazão hídrica brasileira, tem os piores índices de tratamento de esgoto. Os estados do Amazonas e Pará, os maiores da região e do Brasil, tratam respectivamente 5,63% e 2,72%, de acordo com o Instituto Trata Brasil. São Paulo, o estado mais rico, trata 53,34% dos esgotos. É por isso que a Represa Billings, que representaria uma real alternativa para o abastecimento na Grande São Paulo, não pode ser ainda utilizada, por estar extremamente poluída por esgotos urbanos e industriais acumulados por décadas. “É um absurdo o descaso dos governos com a Billings”, resume o presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Bocuhy. O custo da universalização dos quatros serviços de saneamento (água, esgotos, resíduos e drenagem) é de R$ 508 bilhões entre 2014 e 2033, segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). A fossa sanitária ainda é usada em 49% dos municípios.

6. Desperdício nas redes de água - A média nacional de perdas nas redes de distribuição de água nas cidades é de 37%. Na Região Norte, a mais privilegiada em disponibilidade de água, o desperdício é de mais de 50%. No Nordeste, que convive com escassez hídrica, é de 45% em média. No Sul é de 35% e no Centro-Oeste e Sudeste, de 33%. Alguns poucos municípios têm investido seriamente no combate às perdas, como Campinas (SP), onde o trabalho da Sanasa já levou as perdas para menos de 20%. “O combate ao desperdício é fundamental para a melhoria da gestão hídrica a médio e longo prazos”, diz o professor Dr.Antonio Carlos Zuffo, do Departamento de Recursos Hídricos da Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp.

Professor Zuffo: combate às perdas de água nas redes é medida fundamental

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7. Lacunas na legislação – A Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, é considerada uma das mais avançadas no mundo. Cada estado também tem a sua lei própria, na medida em que existem rios de domínio da União (que atravessam mais de um estado, como o São Francisco) e do estado – aqueles rios que permanecem apenas no limite das unidades da Federação. A legislação fornece as bases para o funcionamento dos sistemas nacional e estaduais de gestão de recursos hídricos. A atual crise hídrica mostrou que existe a possibilidade de melhorias na legislação. “O nosso sistema não prevê mecanismos eficientes para lidar com situações de crise. Ele funciona muito bem em tempos de situação normal”, observa o presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu.

8. Comitês de Bacias Hidrográficas centralizados –  De acordo com a lei nacional de recursos hídricos, a gestão hídrica no Brasil deve ser descentralizada, no âmbito das bacias hidrográficas. A instância máxima de gestão nas bacias são os Comitês de Bacias Hidrográficas, órgãos que reúnem representantes dos governos estaduais, dos municípios e dos usuários (indústria, agricultura etc). Na prática, a maior parte dos Comitês tem controle absoluto por parte dos governos estaduais, o que dificulta o efetivo controle social sobre o sistema de gestão de recursos hídricos. “Os comitês de bacias em São Paulo são controlados pelo governo estadual, os municípios não vão se posicionar contra o governo”, comenta Carlos Bocuhy, presidente do Proam.

9. Educação ambiental restrita – Mudar a cultura de desperdício e aprimorar o controle social sobre o sistema de gestão dos recursos hídricos depende muito da educação ambiental praticada no país. Apesar dos esforços realizados, por educadores, escolas e municípios, de modo geral a educação ambiental ainda é restrita no Brasil. Projetos são descontínuos, de modo geral não são interdisciplinares e se limitam a poucos (e importantes) aspectos ambientais, como a destinação correta de resíduos. Assim, de forma geral a educação ambiental praticada no meio escolar brasileiro ainda “não tem impacto no chão da escola, no cotidiano de alunos, professores e demais membros da comunidade escolar”, como define Marcos Sorrentino, professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq/USP) e um dos maiores especialistas brasileiros em educação ambiental. Entre abril de 2003 e junho de 2008, foi diretor de Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, na gestão de Marina Silva.

10. Desperdício de água na agricultura – Como uma média mundial, a agricultura consome 70% da água utilizada. Grande parte dessa água é desperdiçada, pelos mecanismos usados na maior parcela das áreas irrigadas. Já existem tecnologias para aprimorar esse uso de água agrícola, como a irrigação por gotejamento. A Embrapa Monitoramento por Satélite, de Campinas, desenvolveu várias ferramentas para melhorar o uso da água na agricultura (ver na Agência Social de Notícias:  http://agenciasn.com.br/arquivos/2372 ) Um ponto polêmico é o da chamada água virtual, a quantidade de água usada para a fabricação de terminado produto, como os advindos da agropecuária. Um estudo da Unesco, de 2012, mostrou que o Brasil era o quarto no ranking de exportação de água virtual, com 112 trilhões de litros de água doce, atrás somente dos Estados Unidos (314 trilhões de litros/ano), China (143 trilhões l/ano) e Índia (125 trilhões l/ano). A produção de cada tonelada de soja, por exemplo, consome 2 mil metros cúbicos de água (1 metro cúbico equivale a 1 mil litros de água). O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, divulgado nesta semana, mostrou que a demanda mundial por alimentos aumentará 60% até 2050, o que exigirá um enorme gasto de água.  A demanda por água aumentará em 400%  na indústria manufatureira até a mesma data. O uso da água crescerá muito. Sem uma gestão adequada, novas crises hídricas tendem a ocorrer, também considerando as instabilidades provocadas pelas mudanças climáticas. (Por José Pedro Martins)

Plantação de soja: contribuição para a exportação de água virtual

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