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São Paulo à beira de um caos no abastecimento de água e crise pode durar anos
Cemitério de automóveis no reservatório seco do Cantareira (Foto Adriano Rosa)

São Paulo à beira de um caos no abastecimento de água e crise pode durar anos

Por José Pedro Martins, com ensaio fotográfico de Adriano Rosa

O presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, afirmou nesta sexta-feira, 10 de outubro, que o governo de São Paulo precisa declarar a “situação de escassez hídrica”, para que seja autorizada a utilização da segunda parte do Volume Morto do Sistema Cantareira, que abastece metade da Grande São Paulo. O Cantareira está operando com 5,1% de sua capacidade e representantes do Ministério Público e de órgãos governamentais que gerenciam os recursos hídricos passaram esta semana, a primeira após as eleições de 5 de outubro, em tensas reuniões na capital paulista, discutindo a situação atual e o futuro da água no estado.

A cada dia fica evidente que São Paulo está à beira de um caos no abastecimento de água, se não acontecerem nas próximas semanas chuvas que recomponham os reservatórios, particularmente os do Sistema Cantareira. Também está claro para todos os envolvidos que, mesmo com a ocorrência de chuvas intensas, a crise hídrica deve perdurar anos, a menos que sejam tomadas as medidas que vêm sendo proteladas há tempos pelo governo de São Paulo, apesar das advertências de especialistas e ambientalistas e das disposições previstas na legislação paulista e brasileira.

Os sinais da crise hídrica estão presentes em todo território paulista, afetando agricultura, abastecimento, transporte e outras áreas. Vários municípios já convivem com o racionamento de água, ação que até o momento vem sendo adiada por exemplo na Grande São Paulo. Até a Hidrovia Tietê-Paraná está paralisada, na altura de Araçatuba, o que tem ocasionado enormes prejuízos para agricultores. A pesca também está sendo muito afetada. Duas regiões, em particular, estão próximas de uma forte crise no abastecimento, justamente a Grande São Paulo, na bacia do Alto Tietê, e a Região Metropolitana de Campinas, na bacia do rio Piracicaba. São as áreas mais ricas e populosas do estado e do país e a sua paralisação, por interrupções importantes no abastecimento, teria repercussão nacional.

Terra desolada no Cantareira, com 5% da capacidade

Terra desolada no Cantareira, com 5% da capacidade

Caos no Sistema Cantareira – A Grande São Paulo, que tem mais de 20 milhões de moradores, vivendo em 39 municípios, tem cerca de metade de sua população abastecida com águas do Sistema Cantareira, conjunto de reservatórios formados por águas da bacia do rio Piracicaba. O déficit hídrico na Grande São Paulo é antigo e, atualmente, a região consome 400% a mais de água do que tem de disponibilidade natural. Esse déficit apenas é superado pelas águas exportadas desde 1974 da bacia do rio Piracicaba, que também já está no limite de sua capacidade. O conjunto das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), formado por 62 municípios, já consome quase 100%  de sua disponibilidade.

Com a estiagem histórica deste ano, os reservatórios do Cantareira foram muito afetados. Desde maio está em operação a primeira parte do Volume Morto do Cantareira, o que tem garantido a continuidade do abastecimento da Grande São Paulo e parte da bacia do rio Piracicaba. Os sinais da devastação estão por todo lado no Cantareira, onde até um cemitério de carros foi descoberto pela queda acentuada dos reservatórios.

Na falta de chuvas, a primeira parte do Volume Morto está chegando ao fim e a Sabesp, a estatal paulista que administra o Cantareira, já solicitou à Agência Nacional de Águas (ANA) e Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), órgãos federal e estadual, respectivamente, autorização para operar a segunda parte do volume morto. Entretanto, uma ação conjunta do Ministério Público Federal e Estadual quer impedir essa autorização, com o argumento de que o uso do que resta do Volume Morto do Cantareira poderia comprometer o abastecimento especialmente na bacia do rio Piracicaba.

A região do PCJ sempre protestou contra os impactos negativos do Cantareira.  O estudo “Análise de séries temporais de vazão e de precipitação na Bacia do Rio Piracicaba) realizado por pesquisadores do Centro de Energia Nuclear da Agricultura (CENA), órgão da USP localizado em Piracicaba, comprovou que as vazões médias do rio Atibaia, um dos principais formadores da bacia do rio Piracicaba, foram reduzidas após a entrada em operação do Cantareira, em 1974. Os pesquisadores (Juliano Daniel Groppo, Luiz Carlos Eduardo Milde, Manuel Enrique Guamero, Jorge Marcos de Moraes e Luiz Antonio Martinelli) compararam as vazões de 1975 a 1996  com as de 1947-1974, em três pontos de medição, e concluíram que elas caíram entre 14,5 e 18,5% após 1974.

O rio Atibaia é um dos principais mananciais de abastecimento da região. Campinas, por exemplo, tem 95% de seu abastecimento feito com águas do Atibaia. Sem a liberação de maior volume de água do Cantareira para o Atibaia, o que tem acontecido pela atuação da ANA, em conjunto com o DAEE, Campinas já estaria com uma grave situação em seu abastecimento de água.

A solução imediata, para muitos especialistas, é o governo paulista finalmente admitir a necessidade de racionamento de água, o que sempre negou antes do primeiro turno das eleições, a 5 de outubro. A médio e longo prazo, são necessárias outras medidas, que vêm sendo regularmente proteladas pelo governo paulista nas últimas duas décadas. Sem elas, a atual crise, que já é gravíssima, pode se tornar crônica, durando anos ou até décadas.

Ambientalistas pedem mudanças no sistema de gerenciamento de recursos hídricos

Ambientalistas pedem mudanças no sistema de gerenciamento de recursos hídricos

Medidas proteladas – Apesar de ser a mais prejudicada pela operação do Cantareira, a região dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí já tem feito há anos a sua parte, em termos de melhoria das condições das águas, em benefício de todos. A região do PCJ foi a primeira, por exemplo, a instalar um Comitê de Bacias, a 18 de novembro de 1993, dois anos depois da entrada em vigor da lei estadual de recursos hídricos. A região das bacias do PCJ, do mesmo modo, foi uma das pioneiras em implantar a cobrança pelo uso da água, instrumento previsto na lei paulista e na lei federal, de 1997.  O PCJ implantou a cobrança pelo uso da água em 2006, nos rios de domínio da União, e em 2007, nos rios de domínio estadual.

Com os recursos da cobrança pelo uso da água, e também com investimentos de municípios como Piracicaba e Campinas e de recursos federais, as bacias do PCJ ampliaram significativamente o tratamento dos esgotos domésticos, de menos de 5% no final da década de 1980 para mais de 50%. Campinas e Piracicaba, os dois maiores municípios das bacias, se mobilizaram para garantir o tratamento de mais de 100% de seus esgotos domésticos, com impacto direto na melhoria da qualidade das águas.

Panorama totalmente diferente vem sendo verificado na bacia do Alto Tietê, onde está a Grande São Paulo e maior beneficiada pelo Sistema Cantareira. A Sabesp, poderosa estatal que gerencia o Cantareira e opera em 363 municípios, com 27 milhões do que chama de clientes, não tem investido na medida da demanda e cerca de 30% dos esgotos do Alto Tietê têm algum tipo de tratamento. Com isso, ficou impossibilitado o uso de mananciais na Grande São Paulo,  como a represa Billings, o que poderia aliviar a pressão sobre o Cantareira.

Da mesma maneira, a cobrança pelo uso da água começa a ser feita no Alto Tietê mais de duas décadas depois da entrada em vigor da lei estadual e 17 anos depois da lei federal. A cobrança no Alto Tietê foi lançada no dia 26 de março de 2014, quando já estava claro que a estiagem histórica iria comprometer muito o abastecimento de água na Grande São Paulo e outras regiões do estado.

Além de representar recursos que podem ser aplicados na ampliação do tratamento de esgotos, entre outras obras, a cobrança pelo uso da água é considera essencial pelo que representa de indução ao consumo mais racional, sustentável, dos recursos hídricos. Apesar de ser a região mais rica e populosa do país, a Grande São Paulo começa a implantar a cobrança pelo uso da água, portanto, quase uma década depois da região do PCJ.

O desperdício de água na Grande São Paulo, de mais de 30%, também é injustificado. Na região do PCJ, vários municípios conseguiram reduzir muito o desperdício, que acontece por problemas nas redes distribuidoras de água.

Outra medida muito protelada pela Sabesp e governo paulista nos últimos anos é a busca de novas fontes para abastecimento da Grande São Paulo e de toda a região chamada de Macrometrópole Paulista. A busca de novas fontes de abastecimento foi uma das condições para que em 2004 a Sabesp conseguisse nova outorga para operar o Sistema Cantareira. No período da nova outorga os  estudos sobre novas fontes foram constantemente adiados e somente em agosto de 2013 foi oficialmente apresentado o Plano Diretor de Aproveitamento de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista, pela Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos.

O estudo prevê nove arranjos para garantir o abastecimento da Macrometrópole até 2035. O Plano prevê a necessidade de garantia de “novos” 60 metros cúbicos, ou 60 mil litros, de água por segundo até 2035, o dobro do que o Cantareira transfere hoje do rio Piracicaba para a Grande São Paulo. Duas obras previstas no Plano são as barragens de Pedreira e Duas Pontes, nos municípios de Pedreira, Campinas e Amparo, que assegurariam cerca de 7 metros cúbicos adicionais para a região do PCJ.

Lazer e turismo também afetados no Cantareira

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Comitês e Conselhos mais ativos –  Muito ainda deve ser feito, portanto, para a garantia do abastecimento futuro na Macrometrópole. Além das obras necessárias, e da implementação do que já está previsto na lei, será essencial ampliar a informação e participação da sociedade na área dos recursos hídricos. Nesse sentido, será fundamental que os Comitês de Bacia e o Conselho Estadual de Recursos Hídricos  (e também o Conselho Nacional) adquiram maior autonomia e garantem maior participação cidadã.

“O governo de São Paulo não despoluiu a Billings, que seria hoje uma enorme reserva estratégica de água,  não incentivou a captação de água da chuva, não protegeu os mananciais com maior reflorestamento ciliar e controle do uso da terra, mas a atual crise também demonstra que os comitês de bacia devem ser repensados”, afirma Carlos Bocuhy, representante do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM) no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Para Bocuhy, os governos estaduais “mantêm o controle político dos comitês e com isso se cria um falsa sensação de segurança em termos do gerenciamento dos recursos hídricos”. O Comitê da Bacia do Alto Tietê é especialmente criticado. Um dos motivos para que este Comitê não tenha operado com a mesma rapidez que o Comitê PCJ, por exemplo, na implementação de medidas como a cobrança pelo uso da água, é que o prefeito  (de qualquer partido) da maior cidade brasileira, São Paulo, nunca assumiu pessoalmente a liderança em ações relacionadas a políticas públicas em água. O atual presidente do Comitê do Alto Tietê é Francisco Nascimento de Brito, prefeito de Embu das Artes.

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