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A Cultura Viva que pulsa o coração e a identidade da América Latina
A Sala dos Toninhos, na Estação Cultura, respira a identidade latino-americana (Foto José Pedro Martins)

A Cultura Viva que pulsa o coração e a identidade da América Latina

Por José Pedro Martins

“A Cultura Viva é uma troca de saberes, um compartilhar de metodologias e de muito amor”. A Sala dos Toninhos, na Estação Cultura, em Campinas, ficou em profundo silêncio enquanto o equatoriano Nelson Ulluari estava falando na gelada manhã desta segunda-feira, 3 de julho. Nelson estava resumindo a trajetória até o III Congresso Cultura Viva Comunitária da América Latina, que será realizado em Quito, no Equador, em novembro, mas suas palavras soaram como uma reafirmação de princípios desse movimento que toma corpo e se consolida no continente, enquanto sofre duros golpes no país onde floresceu, o Brasil.

Essa reafirmação acontece justamente na cidade onde nasceu o primeiro Ponto de Cultura, no início da década de 1990, no distrito de Joaquim Egídio. Duas décadas e meia depois, representantes de vários países e dezenas de cidades discutem em Campinas os preparativos para o Congresso na capital equatoriana, que pretende ser um marco em termos de (re)construção dos Pontos de Cultura e da Cultura Viva Comunitária, em um cenário de enorme turbulência política, social e econômica em todo território latino-americano.

Isaac e Nelson Ulluari da coordenação do III Congresso Latino-Americano de Cultura Viva (Foto José Pedro Martins)

Isaac Herrera e Nelson Ulluari, da coordenação do III Congresso Latino-Americano de Cultura Viva (Foto José Pedro Martins)

O Encontro de Campinas é realizado desde sábado, em vários Pontos de Cultura e outros espaços. Os Pontos de Cultura evoluíram no Brasil a partir de seu próprio fluxo inovador e criativo e com o suporte da política de estímulo à Cultura Viva Comunitária durante a passagem de Gilberto Gil pelo Ministério da Cultura (Minc), no governo de Luis Inácio Lula da Silva. Foi fundamental nesse sentido a presença no Minc, nesse período, de Célio Turino, que já fomentava o espírito da Cultura Viva desde a sua passagem pela Secretaria de Cultura de Campinas, no início dos anos 1990.

No auge do fomento à política de Cultura Viva Comunitária, na gestão Gilberto Gil, o Brasil teve 3.500 Pontos de Cultura, com incidência em mais de 8 milhões de pessoas. Um amplo leque de cobertura, de indígenas do Xingu a Pontos de Cultura em favelas do Rio de Janeiro e quilombolas em vários estados. Um movimento pulsante, de promoção de várias atividades culturais de forma compartilhada e comunitária.

A efervescência já diminuiu durante o governo Dilma Rousseff e foi duramente atingida com o impeachment e a posse de Michel Temer. O próprio Ministério da Cultura, que dava suporte à exuberância criativa nas redes locais de Pontos de Cultura, chegou a ser extinto e depois recriado, mas sempre como moeda de troca nas discussões e negociações pela manutenção de Temer no cargo.

Por outro lado, enquanto no Brasil o movimento sentia o impacto da conjuntura adversa, a Cultura Viva Comunitária continuou avançando em toda a América Latina, com a formação de redes nacionais no Equador, Colômbia, Peru, Argentina, Uruguai e outros países e a realização de dois Congressos continentais, em La Paz e El Salvador.

Até no México, que historicamente tem-se voltado mais para a sua fronteira Norte, também está em curso a estruturação de uma rede nacional da Cultura Viva Comunitária, a partir das redes locais já existentes nas cidades do México, Guadalajara, Puebla, Merida, Toluca, Vera Cruz e Morella. No final deste ano será realizado o I Encontro Nacional da Cultura Viva Comunitária no México, quando deve ser oficializada a rede nacional. “Um dos nossos objetivos será estreitar os laços com a América Central”, anuncia Rafael Paredes, do coletivo Abarrotera Mexicana, de Guadalajara, dando um exemplo da vocação dos Pontos de Cultura para promover a unidade, a solidariedade, desde as comunidades locais, e olhando o ethos latino-americano como um todo.

“Apesar das diferenças locais e regionais, os Pontos de Cultura, base da Cultura Viva Comunitária, compartilham  repertórios comuns, em termos de valores,  metodologias, conteúdos e práticas, e nesse sentido mantêm uma identidade no continente”, explica Alexandre Santini, presente no Encontro em Campinas. Santini é diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, uma instituição oficial do município de Niterói, no Rio de Janeiro, que assimilou o espírito participativo e de gestão compartilhada do movimento Cultura Viva Comunitária.

Ex-diretor da Cidadania e Diversidade Cultural do Minc, Santini está lançando nesta semana o livro “Cultura Viva Comunitária – Políticas Culturais no Brasil e na América Latina”, onde exatamente evidencia o caráter comum dos Pontos de Cultura no continente, o que os une em termos de diretrizes e aspirações, contribuindo para reiterar, desde as bases comunitárias, a identidade latino-americana. O livro será lançado no I Encontro Latino-Americano de Comunicação Comunitária, que acontece em Niterói, entre os dias 6 e 9 de julho, igualmente como preparativo ao III Congresso Cultura Viva Comunitária da América Latina, em Quito.  O livro é editado pela ANF Produções e Laboratório de Políticas Culturais. A ANF Produções é a mantenedora da Agência de Notícias das Favelas (ANF), a primeira de seu gênero no mundo e uma das organizadoras do Encontro de Comunicação Comunitária em Niterói.

Isaac Herrera, do Equador: contra a cultura hegemônica (Foto José Pedro Martins)

Isaac Herrera, do Equador: contra a cultura hegemônica (Foto José Pedro Martins)

Os demais participantes do Encontro de Campinas também ressaltam o papel dos Pontos de Cultura para a reafirmação da identidade latino-americana, em um momento de crise sistêmica generalizada. “Os Pontos de Cultura, que promovem a Cultura Viva Comunitária, evidenciam um novo jeito de viver a vida, contra as imposições da cultura hegemônica”, define o equatoriano Isaac Peña Herrera, também da organização do III Congresso Cultura Viva Comunitária da América Latina, em Quito.

Membro da etnia Quechua, Isaac destaca que ele mesmo recuperou a sua identidade e criou as bases para um novo modo de vida a partir da inserção em grupos afinados com o espírito da Cultura Viva Comunitária. Através do grafite, ele promove o resgate de mitos e lendas dos povos originais do Equador. Atualmente Isaac integra o coletivo Nina Shunku, “coração de fogo”, em idioma Quechua. Um exemplo cristalino do poder transformador da Cultura Viva Comunitária, que acende os corações e mentes da identidade latino-americana, com narrativas de cultura participativa e gestão compartilhada, em um ambiente de fragmentação e culto ao individualismo e ao consumo.

O Encontro Cultura Viva nas Cidades da América Latina termina nesta terça-feira, 4 de julho, e uma das atividades previstas é a discussão e aprovação, na Sala dos Toninhos, da Carta Compromisso de Campinas, na qual serão reiterados os princípios da Cultura Viva Comunitária.

Participantes discutiram em grupos as narrativas e metodologias dos Pontos de Cultura (Foto José Pedro Martins)

Participantes discutiram em grupos as narrativas e metodologias dos Pontos de Cultura (Foto José Pedro Martins)

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