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AS TETAS CINTILANTES TRANSEUNTES DA COPA DE 94
Crédito: Montagem feita a partir de anúncio de venda. A legenda dizia: "Como novo. Sem sinais de uso." / Arquivo Pessoal

AS TETAS CINTILANTES TRANSEUNTES DA COPA DE 94

POR RAFA CARVALHO

Gosto de futebol.

Me julguem. Já joguei com Júnior. Ele mesmo: Sandy Júnior. Fui parceiro de pelada dum zagueiro do Vascão, ex-Macaca. Meti gol na praia com ele, depois ainda tomei banho na piscina do seu condomínio, Barra da Tijuca, com ex-Big Brothers e Priscila Fantin. Na Dinamarca fiz dupla latina com um centroavante peruano, fiz gol por cobertura em filho de astro, promessa nacional. No Japão, organizei meio de campo, calmei o jogo. Dei passes precisos pros nipos. Botei a rapaziada pra correr. Àquelas enfiadas na medida. Cheias de mandinga e artimanha. Já menos jovem, suei nos golzinhos de rua com os meninos lá de Havana, cidade velha, Vedado. Ou ali, nas quebradinhas próximas ao Cine La Rampa, antes das sessões das oito.

Anteriormente a tudo isso, ainda, arregacei a unha do dedão do pé várias vezes nos asfaltos do Jardim Nilópolis. Estourei correia da chinela, bolha na sola. Aquela unha apontando pra cima, cheia de sangue na volta, horrorosa. Ganhei o apelido de “bolinha” na Chuteira de Ouro. Ninguém me queria no jogo, mas ninguém batia o pênalti mais no canto que eu. Vi o Kaká treinando adolescente no São Paulo. Apertei o mão de Telê Santana, um mestre. Fui subornado pela parte italiana da família, um tempo pueril. Vi nisso o Juca Baleia pegando tudo num Palmeiras x Santo André no ABC, garantindo o zero a zero. E quando o coração acendeu mesmo, passei a torcer prum time de bando de louco. Podem me julgar outra vez. De um doutor com nome de filósofo que muito me orgulha. O imenso Biro-Biro. E uma história prévia, social, de democracia e luta política que me encheu os olhos um dia, tanto quanto lances que eu vi ali, de Neto, Marcelinho Carioca. Aquele gol do Tupãzinho talismã em novecentos e 90. As ironias de Viola. As precisões do Ricardinho. E assim por diante.

Hoje sou mais a várzea. A indústria futebolística de ponta me cansou um pouco. Certo que ver uma final de Copa do Brasil no Pacaembu emociona. Muita gente cantando junto, vibrando junto. Catarse. Coisa de louco mesmo. Ver um gol de Wayne Rooney em pleno Estádio da Luz contra o Benfica, em Lisboa, pela liga mais cara e organizada do planeta, cheia de jogadas de marketing pra nos envolver. E depois assistir ao time da casa buscando o empate sem descanso, com milhares de vozes apaixonadas empurrando. Tudo isso é lindo sim. Pena o homem ser tão idiota, quase sempre. Essa ganância desenfreada, com números sem sentido, além da conta. E esses craques desmedidos, bem aquém de uma responsa consistente frente à geral, na lida dos dias. Triste o maior de todos os tempos não saber abrir a boca sem perder o brilho. A máfia se apossar de tudo. O submundo das apostas com as cartas já marcadas. Os empresários atravessadores. Santo salvador do penta, muito popular e importante, usando a rede em prol de seu fascismo. Ruim um presidente vestir tanta camisa, menos a do Brasil, de fato. Uma confederação criminosa como essa. O sistema, a grana, o poder. Chato tudo isso. Esse quê de ópio do povo, inevitável.

Mas fazer o quê?

Que é bonito é. Cada lance que acontece. O improvável da caixinha de surpresas. Viradas. Golaços. Correrias. A diversão saudável que pode acontecer num jogo ou na torcida. Confusões interessantes, figurinhas carimbadas. Momentos sublimes e até epifanias. Na várzea sou Cafezinho, time de minha quebrada. Mas respeito demais Anhumas, Moscou, que também são de cá, assim como todos os times, todas quebradas. Como todas equipes do mundo, suas histórias. E as histórias de seus torcedores. Gosto muito do Livorno, na Itália. Do St. Pauli, na Alemanha. E o Madureira, daqui mesmo, lá no Rio. Acompanhei o Ergotelis na terceira divisão do campeonato grego, de 2017, quando morei pertinho do estádio. E tenho um carinho inexplicável pela Juve, cá da Mooca. Futebol é assim, como a vida. Nem tudo se explica.

Agora em resumo, eu jogava mal pra caramba quando criança. Depois consegui desenvolver fisicamente e aplicar na prática, minha visão de jogo. Meu maior trunfo, desde cedo. Uso isso às outras coisas da vida, também. E no videogame, por exemplo, isso sempre me deu ampla vantagem. Tanto que já aposentei, mas até hoje ensino uma molecada aí. Nuns consoles que eu nem sei mais qual é o nome. Pergunto um botão que toca, o que chuta. E mando vê. Eu tinha 5 anos em noventa, quando o futebol passou a significar mais, pra mim. Mas a Copa da Itália já tinha passado.

Então em 94: Copa do Mundo dos Estados Unidos. Eu tinha 8 quase 9. E ali sim foi a primeira. Que vivi. Que vibrei. Pra valer mesmo.

Hoje eu sofro pra torcer pro Brasil. Não foi só o 7×1. É tudo, entende? Muito respeito ao Tite, mas, tenho preferido a Islândia, Egito, Gana, Uruguai. E as meninas. Pro nosso Brasil feminino eu consigo. Muito. Mas enfim, lá em 94 a história era outra. Nem sabia ainda – às mazelas desse mundo – que mulher jogava bola. Já dos homens tinha tudo: cartão, figurinha, mini-craque. Tudo que dava, bem dizendo. Umas fitas piratas do super nintendo, daquele hacker peruano maravilhoso que revolucionou os games latinos, os camelôs de eletrônicos. A camisa amarelinha que a gente ganhava na promoção do guaraná. Umas coisas no improviso, de quem tinha que driblar a falta de grana, sem muito pro que não fosse luz, água, feijão. E arroz.

Não tinha uniforme oficial, comprar figurinha até completar o álbum. Mas tinha uma onda rolando. Romário, Bebeto. Aquele gol de Branco na Holanda. A rua de casa estava toda pintada, lindíssima. Lindíssima. O cãozinho mascote sorrindo, a taça bem grande, bolas aqui e ali, símbolos da nike. Os blocos do meio-fio alternados em verde e amarelo. Bandeirinhas penduradas, feriado de repente. Tudo parecia um ritual, meio mágico. Os gritos, fogos de artifício. E era a primeira vez que eu via todo mundo gritando pela mesma coisa, no bairro. Sem contrapontos. Todas as casas com a mesma bandeira. Todo mundo mais feliz, eu achava.

Ganhei uma bola de capotão meio falso, dessas que furam rapidinho, que veio num brinde lá do Carrefour. Em cada gomo havia uma bandeira. E eu pirava. Pirava na Bulgária. Aprendi a Romênia. A Suíça parecia um hospital, só que às cores invertidas. Bélgica, uma Alemanha de pé. Coréia do Sul era linda. Parecia o símbolo de uma escola assim, de kung-fu. Chutava um pouquinho, estudava um pouquinho. O Brasil foi ganhando, ganhando. E a onda crescendo. Eu não tinha vida o bastante pra saber, mas aquele jejum desde 70 estava imenso, engasgando na garganta da gente.

Quando o Brasil ganhou da Suécia, na semi, não teve jeito. Papai tinha um corcel II, vinho, com estofamentos em marrom, coisa linda. E resolveu sairmos todos para a carreata. Buzinamos que nem loucos lá de casa até o centro. Costurando as ruas da cidade, as avenidas principais. E era bonito. Muita gente. Carros coloridos com bandeiras, fitinhas penduradas, adesivos. Tinha cerveja e amendoim voando. Fogos, gritaria e as buzinas. Cornetas. Toca-fitas vibrantes. Gente se cumprimentando. Ninguém, xingava ninguém. E os abraços tantos, desconhecidos nas calçadas. Muito amarelo e verde. Azul. Branco, preto. Perucas, badulaques, quimbembeques. Tinha eu, papai e outros caras, lá do bairro, que o meu pai levava junto, na bagunça. O carro cheio. Todo mundo radiante e de repente eu vi passar um outro carro ao nosso lado na Itapura. Era um monzinha tubarão. Azul metálico. Que já ia ultrapassando. Com uma moça. Nua. Pendurada na janela. Pelo lado passageiro.

Sua lombar se apoiava à lataria, e ela surgia através do espaço livre. Selando seu dorso, curvada, às costas quase batentes na porta. Ponta-cabeça, invertida. E assim abria seus braços pro mundo. Completamente nua. Balançando seus ombros e tetas ao vento. Num movimento de monza acelerado. Aqueles peitos brancos luziam, não sei se por suor ou purpurina, com as luzes dos postes, e semáforos. Artifícios. Nós vencemos a Suécia e, coincidência ou não, seus cabelos loiros pareciam muito com os da Marie vocalista lá do Roxette. Achei lindo tudo aquilo. Fascinante.

Eu pouco falei do feminino aqui, mas, àquele tempo eu tinha já algumas coisas descobertas. Uma atração enorme pelas formas. Contornos ternos de mulher. A revista que achei em casa, nas gavetas, com a Maitê Proença peladinha. O disco de Serge com a Jane gemendo que estranhamente me fazia sentir bem. Um livro técnico sobre o assunto “sexo”, que trazia desenhos de órgãos, encaixes, posições, e que ficava junto com os álbuns de fotografia e documentos, numa parte mais fechada, com chave na porta, do armário da sala. E aquele programa que descobri no SBT, passando bem tarde, nas noites. Isso tudo além dos papos que começava a ouvir na rua. Os amassos, que começava e espiar na viela. Os banhos de Léa, que assisti à fechadura.

Mas aquelas tetas voadoras, cintilantes, transeuntes, que tão generosamente se mostravam, partilhadas, satisfeitas. Em movimentos circulares aleatórios incontroláveis. Ou não. Tão vorazes e plenas. Eram as primeiras que eu via, assim. Certas, livres. Gritei quase na hora ou logo que pude: gente, uma mulher pelada. Meu pai e todos olharam de súbito. Mas logo já riram, meio achando graça, meio debochando, de mim, da moça, não sei, meio deslocados talvez, numa decepção de algo, constrangidos, felizes do jogo, putos daquilo, quem sabe. E disseram: isso aí não é mulher, não, Bolinha.

Na hora eu não entendi, questionei. E sem muita atenção, ou detalhe, me finalizaram com a sentença: isso aí, é homem.

Levou um tempo até eu entender, de fato, do que se tratava tudo aquilo. E foi com a sensibilidade das mulheres, que um dia eu aprendi. E até hoje aprendo, muito sobre tudo isto. E até hoje falta aprender muito. Eu gosto de futebol. Mas a vida é muito, muito mais. E há sempre muito mais em jogo. Viajando por aí, o mundo. Vivendo de carona nas estradas brasileiras. Morando num ponto fortíssimo de prostituição em Campinas, um tempo. Ali na Ponte Preta, colado ao Moisés. Trabalhando na maior área aberta destinada à prostituição da América Latina inteira, uma vez, no Itatinga. Com freiras, putas, travestis, educadoras, por lá. Percebendo melhor o meu bairro, nosso tempo. Lutando junto pela possibilidade de todo mundo matar a vida no peito, o próprio peito, não importando se nasceu-se ou não com ele. Botando o coração na disputa, com toda a riqueza das diversidades e encontros possíveis, nesse nosso país que fica muito melhor de arco-íris. Que só verde e amarelo. Tem o vermelho, tem tudo. Enfim, com tudo isso, hoje eu sei:

Não era isso, aquilo. Era ela. Com todo respeito.

E mulher. Sim.

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.

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