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Pânico com novo coronavírus reafirma urgência da sustentabilidade ambiental e importância da Agenda 2030
Novo coronavírus colocou em xeque serviços e infraestruturas em vários países (Imagem de iXimus por Pixabay)

Pânico com novo coronavírus reafirma urgência da sustentabilidade ambiental e importância da Agenda 2030

Por José Pedro Soares Martins

Campinas, 9 de março de 2020

Mesmo que ainda seja cedo para um diagnóstico definitivo, evidências apontam para que o surto de Covid-19, ou novo coronavírus, provocado pelo SARS-Cov-2, possa ter vinculação com a degradação ambiental que vem atingindo boa parte do planeta. De qualquer modo, a propagação da doença, que levou a medidas extremas como o isolamento de quase 60 milhões de pessoas na província chinesa de Hubei e de outros milhões na Itália, colocou em xeque várias certezas e o funcionamento de estruturas e serviços por vários países. Neste cenário, ficou ainda mais nítida a relevância da Agenda 2030 das Nações Unidas, contemplando o conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

A missão que a Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou à China, entre os dias 16 e 24 de fevereiro, constatou que Covid-19 “é um vírus zoonótico” (ver o relatório aqui). Os profissionais da OMS relataram que a partir de análises filogenéticas realizadas com base no sequenciamento do genoma, “os morcegos parecem ser o reservatório do vírus Covid-19, mas o intermediário host (s) ainda não foi identificado”.

Segundo a equipe da OMS, “três importantes áreas de trabalho” estão em curso pelos cientistas na China, de modo que seja compreendida a origem zoonótica desse surto. “Isso inclui investigações precoces de casos com início dos sintomas em Wuhan durante o mês de dezembro de 2019, amostragem ambiental do Huanan Wholesale Seafood Market e outros mercados da área e a coleta de registros detalhados sobre a fonte e o tipo de vida selvagem e de espécies vendidas no mercado de Huanan e o destino desses animais após o mercado que foi fechado”.

Um comunicado do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em função da propagação do novo coronavírus, observou que “as doenças transmitidas de animais para seres humanos estão em ascensão e pioram à medida que habitats selvagens são destruídos pela atividade humana”.

“Os seres humanos e a natureza fazem parte de um sistema interconectado. A natureza fornece comida, remédios, água, ar e muitos outros benefícios que permitiram às pessoas prosperar”, observou Doreen Robinson, chefe para a Vida Selvagem no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). “Contudo, como acontece com todos os sistemas, precisamos entender como esse funciona para não exagerarmos e provocarmos consequências cada vez mais negativas”, completou a especialista.

Doreen Robinson lembrou que o relatório “Fronteiras 2016 sobre questões emergentes de preocupação ambiental” (Frontiers 2016 Report on Emerging Issues of Environment Concern, em inglês, aqui), do PNUMA, já alertava para as ameaças de zoonoses para o desenvolvimento econômico, o bem-estar animal e humano e a integridade do ecossistema. O relatório lembra que, nos últimos anos, várias doenças zoonóticas emergentes foram manchetes no mundo por causarem ou ameaçarem causar grandes pandemias, como o Ebola, a gripe aviária, a febre do Vale do Rift, a febre do Nilo Ocidental e o Zika Vírus.

De acordo com o relatório, completa o PNUMA, “nas últimas duas décadas, as doenças emergentes tiveram custos diretos de mais de US$ 100 bilhões de dólares, com esse número podendo saltar para vários trilhões de dólares caso os surtos tivessem se tornado pandemias humanas”.

“Do ponto de vista da comunidade ambiental, para impedir o surgimento de zoonoses é fundamental endereçar as ameaças múltiplas e frequentemente interativas aos ecossistemas e à vida selvagem, incluindo redução e fragmentação de habitats, comércio ilegal, poluição, espécies invasoras e, cada vez mais, mudanças climáticas”, concluiu o PNUMA em seu comunicado (aqui).

O desmatamento é regularmente apontado como um dos impactos do modelo que levou ao rápido crescimento econômico da China. Na província de Hubei, epicentro da propagação do Covid-19, foi polêmico o caso da construção de um aeroporto na cidade de Hongping, nas proximidades da reserva florestal de Shennongjia. Inaugurado em 2014, é o aeroporto mais alto da China, localizado a 2.580 metros acima do nível do mar. Sua construção demandou o corte de montanhas e preenchimento de cavernas. A floresta de Shennongjia é um dos três centros para plantas endêmicas na China, com 1.793 das 3.767 espécies endêmicas no país, de acordo com a Unesco (aqui), que em 1990 considerou a área como Reserva da Biosfera e em 2016 a incluiu na lista do Patrimônio Mundial Misto Natural e Cultural. Nos últimos anos o governo chinês tem implementado um programa de plantio de milhões de árvores.

Mais do que nunca, o apoio à pesquisa é fundamental (Foto Adriano Rosa)

Mais do que nunca, o apoio à pesquisa é fundamental (Foto Adriano Rosa)

Agenda 2030 é roteiro – Em pouco mais de dois meses, a emergência do Covid-19 provocou transtornos gigantescos no país mais populoso do mundo. Depois, passou a atingir outros países e regiões, levando a medidas extremas como o isolamento de várias regiões da Itália. Neste contexto, a Agenda 2030, ao objetivar um modelo de desenvolvimento sustentável, se firma como um roteiro para a comunidade internacional estar melhor preparada para o enfrentamento de grandes crises.

A igualdade do direito de todos ao acesso a serviços básicos e novas tecnologias apropriadas, prevista entre as metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 1, pode ser evocada no caso da controvérsia sobre a distribuição de vacinas contra o Covid-19. Já existe uma corrida nos grandes laboratórios farmacêuticos para o desenvolvimento da vacina, mas permanece a dúvida sobre se ela estará acessível a todos, inclusive aos mais pobres.

“Permitir acesso equitativo a essas vacinas para as pessoas durante os surtos” é um dos objetivos da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI). Sediada na Noruega, e fundada em Davos em 2017, a CEPI é uma parceria global entre organizações públicas, privadas, filantrópicas e da sociedade civil para acelerar o desenvolvimento de vacinas contra doenças infecciosas emergentes. No momento, está intensificando esforços para que uma vacina contra o Covid-19 seja desenvolvida em prazo recorde.

No dia 6 de março, o Reino Unido anunciou a destinação de cerca de 30 milhões de libras para os esforços da CEPI. O chefe executivo da Coalizão, Dr. Richard Hatchettou, agradeceu o gesto e fez o pedido: “Apelamos a outros ao redor do mundo para que intensifiquem e contribuam para a responsabilidade coletiva que temos de proteger nossas sociedades da devastação desta nova doença”.

“Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as doenças transmissíveis e não transmissíveis, que afetam principalmente os países em desenvolvimento, proporcionar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais a preços acessíveis, de acordo com a Declaração de Doha, que afirma o direito dos países em desenvolvimento de utilizarem plenamente as disposições do acordo TRIPS sobre flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular, proporcionar o acesso a medicamentos para todos”, afirma outra meta, ligada ao ODS 3 (que pede saúde para todos), reafirmando o imperativo da equidade no acesso a vacinas e medicamentos.

O ODS 4, que trata da equidade do acesso à educação, também pode ser evocado com relação a outro dos impactos da propagação do Covid-19. No dia 4 de março, a Unesco informou que 290 milhões de crianças em 22 países estavam sem aula em função de medidas de prevenção contra a doença. É um número quase equivalente aos 303 milhões de crianças de 5 a 17 anos que estão fora da escola em todo mundo, segundo o Unicef no relatório “Um futuro roubado: jovem e fora da escola” (A future stolen: young and out-of-school, aqui).

Será que agora, sobretudo nos países mais ricos, onde milhões estão sem aulas, é possível entender melhor o quanto é importante garantir escola para todos? “Embora o fechamento temporário de escolas como resultado de saúde e outras crises infelizmente não seja algo novo, a escala mundial e a velocidade da atual interrupção da educação são incomparáveis e, se prolongadas, podem ameaçar o direito à educação”, advertiu a diretora geral da Unesco, Audrey Azoulay.

Na China, o fechamento de fábricas e a paralisação do movimento de veículos em grandes cidades resultou na expressiva diminuição da emissão de gases de efeito-estufa, que contribuem para agravar o aquecimento global.

A estimativa de Carbon Brief (aqui) são de que um quarto ou mais das emissões de dióxido de carbono (CO2) chinesas podem ter sido evitadas em razão do Covid-19 (e também com a contribuição da diminuição de atividades no Ano Novo chinês).

Este panorama permite a reflexão sobre se apenas uma doença emergente em escala global pode levar à necessária redução das emissões de gases que agravam o aquecimento global. A redução das emissões é o núcleo do ODS 13 da Agenda 2030 e o cerne do Acordo de Paris, de 2015.

A preservação dos ecossistemas e proteção da biodiversidade, em particular das reservas florestais, prevista em vários Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e sobretudo no ODS 15, guarda relação importante com a emergência do Covid-19. Como o PNUMA já destacou, a conservação desses territórios é iniciativa fundamental para prevenir a emergência de novas doenças de origem zoonótica, como possivelmente é o caso do novo coronavírus.

Não fazer como o governo brasileiro – Se a Agenda 2030 oferece uma rota para que o mundo se prepare melhor para o enfrentamento de situações como a emergência do Covid-19, a comunidade internacional não pode, então, seguir a trilha que vem sendo percorrida pelo governo brasileiro, do presidente Jair Bolsonaro. Ele tomou posse no dia 01 de janeiro de 2019 e em pouco mais de um ano desmontou toda a estrutura de combate às mudanças climáticas e ao desmatamento, ao contrário do que estipulam os ODS 13 e 15 e na contramão dos esforços para a conservação de ecossistemas, atitude essencial para a proteção da biodiversidade e prevenção de novas doenças emergentes.

O resultado foi o incremento do desmatamento na Amazônia, depois de anos de tendência de queda. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o desmatamento aumentou 85,3% em 2019 em relação ao ano anterior. Em janeiro de 2020, foram desmatados 284 quilômetros quadrados, o que representa um avanço de 108% em relação ao mesmo mês de 2019.

Uma das consequências foi a demissão do ex-diretor do INPE, Ricardo Galvão. Ele havia contestado o presidente Bolsonaro, que criticou a metodologia do INPE de mapeamento do desmatamento. “Sempre que a ciência for atacada, temos que nos posicionar, independente da posição partidária”, afirmou Galvão, em uma conferência para estudantes e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP).

Além dos efeitos nos esforços de combate às mudanças climáticas e proteção da biodiversidade, o avanço do desmatamento na Amazônia, para retirada de madeira e crescimento da pecuária, atinge os povos indígenas.

“2019 foi um ano de retrocessos. Os ataques aos direitos humanos no Brasil foram tão brutais, que parecíamos estar vivendo antes da Constituição Federal de 1988, que nos garante direitos fundamentais. A retórica de linha dura que autoridades federais e estaduais adotam abriu espaço para violências cometidas, também por agentes do Estado, especialmente contra defensores e defensoras dos direitos humanos, negros e negras, moradores de favelas, indígenas, pessoas LGBT e mulheres”, disse Jurema Werneck, secretária executiva da Anistia Internacional Brasil, por ocasião do lançamento do relatório “Direitos Humanos nas Américas: retrospectiva 2019”, no final de fevereiro de 2020 (aqui).

O documento destaca o avanço da violência na Amazônia, mas também em outras áreas do país e segmentos. Um ano de clara afronta ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16.

O governo Bolsonaro tomou atitudes diretamente contra a Agenda 2030. Extinguiu, por exemplo, a Comissão Nacional para os ODS (CNODS), instância de governança nacional. Além disso, não apresentou dados para a Revisão Voluntária Nacional durante o Fórum Político de Alto Nível da ONU,  em 2019.

Relatório Luz de 2019

Relatório Luz de 2019

Com isso, a única forma de acompanhar a implementação dos ODS no país tem sido o Relatório Luz (aqui), documento produzido pelo Grupo de Trabalho Agenda 2030, formado por um conjunto de organizações da sociedade civil. “A edição 2019 mostra que o Brasil está cada vez mais distante do desenvolvimento sustentável”, afirma Alessandra Nilo, coordenadora geral da organização Gestos e cofacilitadora do GT Agenda 2030.

Alessandra protesta: “O cenário é de acirramento de violações e desrespeito aos direitos sociais e econômicos, com retrocessos em todas as áreas e que afetam, sobretudo, a vida das mulheres negras, quilombolas e indígena: aumento da extrema pobreza; liberação recorde de agrotóxicos; avanço de infecções sexualmente transmissíveis e de doenças como malária, febre amarela e tuberculose; propostas de privatização e de oferta de educação básica pública a distância; aumento da violência contra a mulher; 34 milhões de pessoas sem acesso a água tratada; mais de 100 milhões sem coleta de esgoto e quase 600 mil domicílios ainda sem energia elétrica; sem falar no desemprego, no crescimento da desigualdade e da intolerância, nos crimes ambientais e na redução da transparência e dos espaços de diálogo”.

No início de 2020, mais uma ação direta do governo brasileiro contra a Agenda 2030, ao vetar o que estava previsto, em termos de implementação dos ODS, no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, de acordo com a Lei nº 13.971, de 27 de dezembro de 2019. A persecução das metas dos ODS era uma das 20 diretrizes elencadas no artigo 3º da lei do PPA, vetada por Bolsonaro.

“Vale destacar que este foi o único veto do presidente ao PPA, uma lei com 23 artigos e dezenas de incisos, o que evidencia o descaso deste governo com o tema do desenvolvimento sustentável. Esperamos que o parlamento reaja contundentemente contra esse veto”, reiterou Alessandra Nilo.

As atitudes do governo brasileiro atingem a busca de execução da Agenda 2030 de forma global – o país é uma das potências ambientais do planeta, com a maior biodiversidade e 12% da água doce. É tudo o que o mundo não precisa no momento, de grandes esforços contra a emergência do Covid-19.

 

 

 

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