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São Paulo avança na descarbonização da agricultura e transição energética
Manejo de sistema agroflorestal no Sítio Vale das Cabras, em Campinas (Foto Divulgação)

São Paulo avança na descarbonização da agricultura e transição energética

Campinas, 30 de outubro de 2023

Por José Pedro Soares Martins

Gustavo Fernandes, do Sítio Vale das Cabras, e Lilian de Castro Lacerda, do Sítio Pimenta Rosa, são pequenos produtores na área rural de Campinas, interior de São Paulo. Conscientes da relevância de uma descarbonização cada vez maior da agricultura, eles são adeptos e praticantes do sistema agroflorestal, um modelo de uso e ocupação do solo que associa o plantio de árvores com culturas agrícolas ou forrageiras.

Os dois proprietários rurais são exemplos de produtores em território paulista que estão utilizando práticas favoráveis à progressiva descarbonização da agricultura, como relevante contribuição ao cada vez mais urgente enfrentamento das mudanças climáticas. Em maio de 2022, de acordo com dados da agência climática norte-americana NOAA, foi superado o limite de 420 partes por milhão de dióxido de carbono equivalente na atmosfera. Antes da era industrial, a média durante milênios foi de 280 partes por milhão.

A presença cada vez maior de carbono na atmosfera é a principal causa do aquecimento global, motor das mudanças do clima que têm provocado situações extremas de seca, enchentes ou outras catástrofes em todas as regiões do planeta. De acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que funciona no âmbito das Nações Unidas, é fundamental acelerar as medidas de redução das emissões de gases que alimentam o aquecimento global. São basicamente gases resultantes da queima de combustíveis fósseis como petróleo, carvão e gás. Além disso, o IPCC alerta que é essencial intensificar, igualmente, a retirada de carbono já acumulado na atmosfera.

As estimativas são de que desde 1990 foram emitidas mais de 900 bilhões de toneladas métricas de CO2 equivalente, o que é muito mais do que vários séculos precedentes. Práticas agrícolas mais apropriadas, de acordo com vários pesquisadores ouvidos pela Agência Social de Notícias, são parte importante do equacionamento desse gigantesco desafio coletivo, um dos maiores que a humanidade enfrenta no momento.

Diante da crise climática cada vez mais intensa e inegável, têm sido multiplicadas as iniciativas pela descarbonização da agricultura. São várias ações que, conjugadas, apontam para o avanço da descarbonização do setor no estado, como consequência da alta densidade de centros de pesquisa e tecnologia situados em território paulista e da iniciativa de produtores rurais, ao lado das políticas públicas que começam a dar resultados. A descarbonização da agricultura definitivamente entrou na agenda prioritária dos setores público e privado em São Paulo, em sintonia com as demandas de transição energética, para a qual o setor produtivo paulista, e em particular o sucroalcooleiro, já vinha contribuindo há anos.

O governo de São Paulo, por exemplo, está atento aos imperativos da descarbonização e transição energética, como condições essenciais para o enfrentamento das mudanças climáticas em curso e com impactos globais. No dia 22 de junho de 2023, o governo de Tarcísio de Freitas anunciou um pacote de R$ 500 milhões, a serem destinados através do Desenvolve SP, para financiar projetos de descarbonização de municípios e de inovação por startups e outros empreendedores.

Os créditos também serão utilizados no financiamento de projetos de produção de biogás, a partir de resíduos agrícolas, em particular aqueles originários do setor sucroenergético, que o governo paulista denomina de “Pré-Sal Caipira”. “Uma medida relevante dentro da iniciativa de melhoria do ambiente regulatório é a criação do Comitê Técnico de Descarbonização da Economia Paulista, no âmbito do Conselho Estadual de Política Energética, composto por representantes das iniciativas público e privada. A secretaria coordena as ações com o intuito de conferir governança e previsibilidade aos objetivos perseguidos de descarbonização”, afirmou a secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende, no momento de lançamento do pacote.

MAIS DA METADE DAS EMISSÕES EM SÃO PAULO DERIVA DO SETOR ENERGÉTICO

O setor de energia responde por 53% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no estado de São Paulo, ao contrário do que ocorre no Brasil como um todo, em que o setor responde por 18% das emissões. O contrário é visto nos setores de agropecuária e mudança do uso da terra. Esses dois setores, somados, respondem por 33% das emissões de GEE em território paulista, contra 74% no Brasil como um todo. Juntos, os setores de agropecuária e mudança do uso da terra, por exemplo com o desmatamento, lideram de longe o montante das emissões no Brasil, que foram de 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente em 2021, um aumento de 12,2% em relação a 2020 (2,16 bilhões de toneladas).

Os dados são do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), uma base de dados lançada em 2012, para atender a uma determinação da Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC), e que a partir de 2013 foi incorporada ao Observatório do Clima. O SEEG (seeg.eco.br) foi a primeira iniciativa nacional de produção de estimativas anuais para toda a economia e depois de dez edições se tornou uma das maiores bases de dados nacionais sobre emissões de gases estufa do mundo, abrangendo as emissões brasileiras de cinco setores (Agropecuária, Energia, Mudança de Uso da Terra, Processos Industriais e Resíduos).

De acordo com a edição referente aos dados de 2021, a mais recente do SEEG, naquele ano foram emitidas no estado de São Paulo 156,7 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Com isso, São Paulo, que tem cerca de 22% da população brasileira e 2,9% do território nacional, foi o quarto estado no ranking de emissores, com 6,5% das emissões brutas e 4,8% das emissões líquidas.

Também segundo o SEEG do Observatório do Clima, os setores da agropecuária e mudança no uso da terra em São Paulo emitiram, respectivamente, 36 e 16 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2021. O levantamento do SEEG mostra que as emissões pela agropecuária paulista têm-se mantido mais ou menos estáveis desde o início da década de 1990, ao contrário do setor de energia, que dobrou suas emissões em 30 anos.

No setor da agropecuária paulista , de acordo com o SEEG, o gado de corte foi responsável pela emissão de 18 milhões de toneladas em 2021. Trata-se de metade das emissões do setor naquele ano, quando o plantio de cana emitiu 2 milhões de toneladas e o gado de leite, 3 milhões de toneladas de CO2 equivalente.

NeuTroPec: descarbonização na pecuária paulista – Iniciativas em descarbonização avançam no setor da pecuária, responsável pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa no âmbito da agropecuária no estado de São Paulo, segundo o SEEG do Observatório do Clima. No dia 27 de setembro de 2023, na abertura da 60ª Expo Rio Preto, em São José do Rio Preto, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo lançou o Centro de Ciência para o Desenvolvimento da Neutralidade Climática da Pecuária de Corte em Regiões Tropicais, o NeuTroPec.

O NeuTroPec será estruturado e funcionará com um investimento de R$ 20 milhões e deriva de uma parceria entre o governo de São Paulo e a iniciativa privada. O novo Centro será instalado na Unidade de Pesquisa do Instituto de Zootecnia, em São José do Rio Preto. A sua missão será a de mensurar as emissões de Gases do Efeito Estufa e formular estratégias de mitigação em sistemas de produção de bovinos de corte, visando o desenvolvimento de tecnologias e sua transferência para a cadeia produtiva.

“O NeuTroPec tem a missão primordial de atingir a neutralidade do carbono nos sistemas de criação de bovinos de corte, harmonizando a sustentabilidade, a segurança alimentar, o bem-estar animal e o compromisso com o meio ambiente”, evidenciou o secretário executivo da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, Guilherme Piai, no evento de lançamento do novo Centro de pesquisa.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) destinará metade dos recursos para a estruturação do NeuTroPec e a outra metade será alocada, no período de cinco anos, pelas empresas parceiras DSM, SILVATEAM, ALLTECH e JBS. Os recursos públicos e da iniciativa privada já resultaram no primeiro projeto desenvolvido pelo NeuTroPec em estruturação.

Depois de monitorar por seis meses os animais em confinamento da JBS em Guaiçara (SP), pesquisadores do Instituto de Zootecnia, já atuando no âmbito do NeuTroPec, chegaram à conclusão de que a mescla de taninos e saponinas como aditivo alimentar na nutrição do gado contribuiu para evitar a emissão de 30 mil toneladas de dióxido de carbono equivalente. A redução é equivalente a 17% das emissões de metano pelo gado confinado. O estudo foi feito com o suporte da JBS em parceria com a italiana Silvateam. Os taninos são compostos químicos naturais presentes em cascas, sementes, folhas e frutos de plantas.

DAR ESCALA PARA PRÁTICAS QUE JÁ EXISTEM É O DESAFIO NA AGRICULTURA

Gerente da Iniciativa de Clima e Emissões do Imaflora, organização que integra o Observatório do Clima, Isabel Drigo assinala que “o principal desafio para a descarbonização da agropecuária brasileira é dar escala para as práticas que já reduzem as emissões de gases de efeito estufa tanto na agricultura como na pecuária”.  Ela complementa: “O Brasil tem essas práticas bem descritas. Alguns produtores já aplicam essas práticas, como o plantio direto na soja, o manejo das pastagens para que elas sejam vigorosas e garantam a cobertura e saúde do solo, a gestão da alimentação animal para que emita menos metano. Tudo isso já existe como prática, mas ainda tem muitos agricultores e pecuaristas que não aplicam essas técnicas. Então é preciso assistência técnica, incentivo de dinheiro mesmo via crédito para que muitos agricultores rapidamente implementem essas práticas e reduzam as emissões de seu sistema produtivo e melhorem a produtividade, porque isso também ajuda a reduzir as emissões”.

Posição semelhante tem o agrônomo Afonso Peche Filho, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). “Um grande desafio para a descarbonização é que as práticas sejam internalizadas pelos pequenos e médios produtores rurais. E é preciso que haja uma mudança conceitual. O carbono ainda não é considerado como um produto para grande parte dos agricultores. O foco continua sendo no produto que eles cultivam. Então é importante que a questão do carbono também seja introduzida na extensão rural, na assistência técnica aos produtores, para que eles vejam a importância da gestão do carbono e que podem se beneficiar com uma gestão adequada”, afirma Afonso Peche Filho.

Produtores na área rural de Campinas, Gustavo Fernandes, do Sítio Vale das Cabras, e Lilian de Castro Lacerda, do Sítio Pimenta Rosa, comprovam  a viabilidade de práticas de descarbonização na agricultura, mesmo em pequenas propriedades. Ambos praticam o sistema agroflorestal, que de acordo com os especialistas é um dos mais adequados modelos de gestão para promover a captura de carbono, ao mesmo tempo em que também contribui para a preservação da biodiversidade.

Formado em Direito, Gustavo Fernandes mudou-se com a família há oito anos para o Sítio Vale das Cabras, na zona rural e mais precisamente na Área de Proteção Ambiental (APA) de Campinas. “Desde o início a ideia seria desenvolver uma agricultura ecológica, com práticas sustentáveis, para a produção de alimentos, visando a comercialização”, ele explica.

As práticas sustentáveis, continua, são fundamentais considerando o estado de boa parte do território da APA de Campinas, que foi criada em 2001 pela Lei Municipal nº 10.850. Com uma área de 223 quilômetros quadrados, a APA equivale a cerca de um quarto do município e é onde estão as maiores áreas de matas nativas remanescentes de Campinas. A APA foi criada justamente com o propósito de ocupação ordenada de seu território sensível em termos ambientais e que vinha passando por sérios riscos.  “Boa parcela da APA é de áreas degradadas, que não cumprem serviços ecológicos pois não produzem água, não protegem a biodiversidade e desgastam o solo. Com isso, muitas pessoas acabam migrando para a zona urbana”, diz Gustavo Fernandes.

Ele conta que foi então introduzida a agricultura orgânica no Sítio Vale das Cabras, onde inicialmente foram plantadas hortaliças. Novo direcionamento foi dado, prossegue o produtor rural, quando ele conheceu o movimento global Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA). Trata-se de um modelo agrícola que valoriza o contato direto com o consumidor. “O objetivo é fortalecer a economia local e consolidar laços entre os produtores rurais e consumidores, que passam a receber alimentos saudáveis e variados durante o ano todo”, afirma Gustavo Fernandes, que fornece, assim, mensalmente, uma cesta de hortaliças, folhas, temperos, raízes e legumes a dezenas de famílias de Campinas.

Há quatro anos, um novo salto foi dado nas práticas utilizadas no Sítio Vale das Cabras, com a introdução do sistema agroflorestal. “Me identifiquei totalmente com esse sistema, vi que ele fazia muito sentido para o que nós buscávamos em termos de uma agricultura sustentável. No mesmo canteiro, plantar árvores, hortaliças e frutas, visando a produção de alimentos e, no futuro, de madeira”, resume o produtor.

Gustavo salienta que o plantio de árvores e a sua manutenção “resulta na produção de matéria orgânica que alimenta e renova o solo, evitando-se a sua perda, além de contribuir para a produção de água”. Essa prática, complementa, evita o uso de aportes externos, cuja produção implica no uso intensivo de carbono, e também contribui para a captura direta do carbono, através da fotossíntese.

O proprietário do Sítio Vale das Cabras nota serem visíveis os resultados positivos da adoção do sistema agroflorestal e, agora, a prática está sendo ampliada, em função da parceria com uma fazenda também situada na APA de Campinas. “Estamos implantando o sistema agroflorestal em uma área dessa fazenda, que é originária do ciclo do café e que também já importante produtora de leite”, conta Gustavo Fernandes. Ele também está animado com outra frente aberta de atuação, o fornecimento de seus alimentos para a merenda escolar municipal, em escolas dos distritos de Sousas e Joaquim Egídio, que compõem a APA de Campinas com outras áreas rurais. “O sistema agroflorestal é o futuro da APA, pelos seus benefícios em termos de preservação ambiental, produção de água e alimentos, descarbonização e proteção da biodiversidade”, conclui Gustavo Fernandes.

Proprietária do Sítio Pimenta Rosa, também na APA de Campinas, Lilian de Castro Lacerda trabalhava há anos com veterinária antes de se decidir pela mudança com a família para a zona rural. Ela relata que também havia a intenção, desde o início, de uma produção agroecológica na propriedade, além de seu uso como território para a educação ambiental e turismo ecológico. A adoção do sistema agroflorestal atende precisamente a esses objetivos, diz Lilian.

“Fizemos a adubação verde em uma área que antes era de pasto e aos poucos as árvores foram crescendo”, conta. Foram plantadas mais de 20 espécies de frutas e já está em curso a colheita de bananas. “Esse sistema é muito rico porque permite a recomposição natural da matéria orgânica. O solo fica protegido, renovado, e também ocorre a captura do carbono”, assinala a produtora rural. Lilian Lacerda revela que em futuro próximo deve ser agregada ao sistema agroflorestal no Sítio Pimenta Rosa a criação de galinhas. “Esse sistema que une árvores, produtos agrícolas e animais é muito saudável, o Brasil tem tudo para expandir esse modelo de agricultura”, acredita a pequena proprietária rural de Campinas.

Colheita da cana, base do etanol no Brasil, que já entrou na segunda geração do biocombustível. (Foto Adriano Rosa)

Colheita da cana, base do etanol no Brasil, que já entrou na segunda geração do biocombustível. (Foto Adriano Rosa)

SETOR DA CANA-DE-AÇÚCAR CONTRIBUI PARA A CAPTURA DE CARBONO

O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo e essa condição resulta acima de tudo do avanço da cultura no estado de São Paulo. Entre 1990 e 1999, a média anual de área plantada com cana-de-açúcar em território paulista foi de 2,2 milhões de hectares. Na década seguinte, a média subiu para 3,3 milhões de hectares e, no período de 2010 a 2016, a média chegou a 5,3 milhões de hectares, de acordo com dados do IBGE e compilados por Larissa Moura e Elena Charlotte Landau no artigo “Evolução da Produção de Cana-de-açúcar (Saccharum spp., Poaceae)“, referente ao Capítulo 19 do livro “Dinâmica da produção agropecuária e da paisagem natural no Brasil nas últimas décadas: produtos de origem vegetal” (Brasília, DF: Embrapa, 2020).

Na safra 2022-2023, a área plantada com cana-de-açúcar em São Paulo é de 4 milhões de hectares e o estado responde por mais da metade da produção nacional, de mais de 600 milhões de toneladas. Com toda essa produção vigorosa, respondendo por metade do que é cultivado no país, o setor da cana-de-açúcar paulista tem contribuição importante para a captura de carbono da atmosfera. De acordo com estudo publicado no início de 2023, entre 2000 e 2020 o setor canavieiro brasileiro retirou em média 9,8 milhões de toneladas de CO2 por ano da atmosfera. Isto significa a captura de 196 MtCO2 em duas décadas pelo segmento, de acordo com estudo assinado por pesquisadores da Agroicone, Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e Embrapa Meio Ambiente.

O estudo revelou que 25% da área plantada com cana-de-açúcar em 2020 já tinham essa finalidade em 2000. Os 6,1 milhões de hectares acrescidos com a cultura em duas décadas corresponderam à conversão de áreas que, antes, eram destinadas a pastagens (60%), culturas anuais (16%) e mosaicos (22%). Somente 1,6% das novas áreas plantadas com cana-de-açúcar eram originalmente de vegetação nativa.

Além dessa significativa contribuição para o enfrentamento das mudanças climáticas, com a captura de carbono durante o processo de plantio da cana, o setor sucroalcooleiro também tem sido importante ator na transição energética, igualmente essencial para o combate ao aquecimento global. Trata-se da substituição do uso de combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia. No caso, o setor sucroalcooleiro paulista é o maior produtor mundial de etanol da cana, reconhecidamente muito menos poluente do que os combustíveis fósseis que geram os gases de efeito estufa (GEE).

Ônibus elétrico que vai rodar no campus da USP com o hidrogênio produzido a partir do etanol (Foto Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP)

Ônibus elétrico que vai rodar no campus da USP com o hidrogênio produzido a partir do etanol (Foto Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP)

Com a urgência da crise climática, o uso do etanol da cana tende a ser ainda mais intensificado nos próximos anos, e iniciativas recentes confirmam essa sinalização. No dia 10 de agosto de 2023, aconteceu a cerimônia de lançamento em São Paulo do projeto da primeira estação de abastecimento de hidrogênio renovável a partir do etanol no planeta. A previsão é a de que quando entrar em operação, em julho de 2024, a estação terá capacidade de produzir 4,5 quilos de hidrogênio por hora. O combustível será utilizado inicialmente para abastecer três ônibus que circularão pela Universidade de São Paulo (USP). Haverá uma avaliação do processo por dez meses para, então, ser verificada a viabilidade de construção de uma fábrica que produzirá 45,5 quilos (kg) de hidrogênio por hora.

“A grande vantagem dessa tecnologia está na pegada de carbono negativa e no ganho econômico. A logística de etanol – que inclusive já existe no país – é muito mais barata que a de hidrogênio. Com essa tecnologia, o etanol pode ser transformado em hidrogênio em reformadores instalados nos postos de abastecimento espalhados pelo país. Conseguimos que o quilo de hidrogênio custe de US$ 6 a US$ 8, o que é quase a metade do preço obtido por outras tecnologias. Além disso, a tecnologia permite capturar o CO2 do etanol, resultando em uma pegada de emissões negativas, em comparação ao hidrogênio produzido com energia solar, por exemplo”, declarou na cerimônia de lançamento da planta o diretor do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), Julio Meneghini.

O posto de abastecimento no campus da Universidade de São Paulo é resultado de um projeto do RCGI, um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) constituído pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e Shell na Escola Politécnica (Poli-USP). O RCGI é um dos 22 CPEs financiados pela Fundação em parcerias com empresas.

Também na linha de contribuição do etanol para a transição energética e consequente enfrentamento das mudanças climáticas, várias empresas do setor sucroalcooleiro estão acelerando projetos para a produção de etanol de segunda geração, ou seja, aquele fabricado a partir de resíduos como palha e bagaço da cana em um processo que compreende etapas como hidrólise enzimática, fermentação e destilação. Maior empresa sucroalcooleira do mundo, a Raízen iniciou a fabricação de etanol de segunda geração (2G) em uma planta junto à Usina Costa Pinto, em Piracicaba. Em setembro de 2023, a empresa inaugurou mais uma planta, na Usina Bonfim, em Guariba, também no interior de São Paulo, fruto de investimento de R$ 1,2 bilhão e que foi montada com a capacidade de produzir 82 milhões de litros por ano.

Gerente da Iniciativa de Clima e Emissões do Imaflora, organização integrante do Observatório do Clima, Isabel Drigo considera que, de fato, uma iniciativa interessante da agricultura no estado de São Paulo é como o setor de produção da cana-de-açúcar abraçou a descarbonização, porque entre outros objetivos ela pode gerar créditos dentro do programa Renova Bio. O Renova Bio é um programa federal, voltado para estimular os biocombustíveis, viabilizando a saída dos combustíveis fósseis para os renováveis. Produtores e usinas abraçaram práticas de descarbonização, como plantio direto na palha, e estão reduzindo suas emissões porque isso gera créditos que podem ser comercializados na Bolsa de Valores de São Paulo, a B3.

“Por exemplo, um efeito positivo disso é que as emissões de GEE pela queima de resíduos diminuiu muito no estado de São Paulo. Não é mais interessante para o produtor queimar os resíduos da cana porque isso vai aumentar suas emissões e diminuir a quantidade de créditos que ele pode gerar. Essas são políticas públicas adotadas pelos produtores de cana e usinas do estado de São Paulo e que estão dando certo. Eles mudam as práticas agrícolas,  fazem o plantio direto, o cultivo mínimo, usam menos calcáreo, e tudo isso diminui as emissões de GEE e gera créditos de carbono”, completa a Gerente da Iniciativa de Clima e Emissões do Imaflora.

Carlos Cerri, da ESALQ: "Agricultura regenerativa emite menos e sequestra carbono" (Foto Divulgação)

Carlos Cerri, da ESALQ: “Agricultura regenerativa emite menos e sequestra carbono” (Foto Divulgação)

UM CENTRO PARA A DESCARBONIZAÇÃO DA AGRICULTURA

Um centro de pesquisa de classe mundial, que identificará os principais desafios e implementará soluções para aumentar a produção agroalimentar sustentável de Sistemas Agrícolas Tropicais, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e aumentando o sequestro de carbono por meio de práticas de manejo climáticas inteligentes. Este é um dos propósitos do Centro de Estudos de Carbono em Agricultura Tropical (CCarbon), criado no início de 2023 e que foi instalado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), em Piracicaba.

“O Centro vai intensificar estudos e disseminar conhecimento sobre plantio direto, interação de lavoura, pecuária e floresta e práticas regenerativas, visando a redução das emissões e o maior sequestro de carbono na agropecuária”, sintetiza Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, docente do Departamento de Ciência do Solo da Esalq e coordenador do CCArbon. Cerri nota que o CCarbon é fruto de projeto aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), para funcionar como um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela organização.

O coordenador do CCarbon observa que os CEPIDs apoiados pela FAPESP são criados já visando uma autossustentação futura, após um apoio da Fundação pelo período de cinco anos. “O Centro tem que andar com as próprias pernas”, resume Cerri, que tem uma trajetória acadêmica e científica associada à pesquisa sobre práticas agrícolas sustentáveis. Ele informa que o Centro nasceu com 40 pesquisadores associados e já com a aprovação de 92 bolsas de estudo em várias áreas, considerando que o propósito do CCarbon será atuar com uma visão transdisciplinar.

Carlos Eduardo Pellegrino Cerri entende que são inúmeros os desafios para a descarbonização da agricultura brasileira e, nesse sentido, considera que o CCarbon terá muito a contribuir. Ele cita os números do SEEG do Observatório do Clima, dando conta que 74% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa derivam de dois setores, a mudança do uso da terra e a agropecuária, ao contrário do que ocorre em escala internacional, em que mais de 70% das emissões resultam da queima direta dos combustíveis fósseis.

O pesquisador entende que, neste contexto, o Brasil tem imensas oportunidades, em termos de contribuir com o enfrentamento das mudanças climáticas. “Com práticas bem conduzidas na agricultura e na pecuária, com uma boa gestão e manejo, esses setores podem contribuir muito com o sequestro do carbono e com a redução de emissões”, reitera.

Ele também cita o bom exemplo do setor sucroalcooleiro paulista, como case mundial de descarbonização e contribuição com a transição energética, e entende que a produção de biocombustível pode crescer ainda mais no Brasil, em várias regiões. Nesse sentido, entende que o hidrogênio verde, contemplando a produção de hidrogênio a partir de biocombustível, é o futuro em termos de energia renovável, e que o Brasil tem totais condições de liderar esse processo, a partir do que já feito no estado de São Paulo. “Quando os postos de combustíveis tiverem uma estação de produção de hidrogênio a partir do etanol, será uma enorme transformação de impacto global”, sinaliza.

Carlos Cerri considera que, efetivamente, práticas agrícolas de sequestro de carbono tendem a ser ampliadas nos próximos anos. “O plantio direto começa há cerca de 50 anos em Rolândia, no Paraná, e hoje já é praticado em cerca de 30 milhões de hectares. Essa área pode ser ampliada consideravelmente no país, ao contrário por exemplo dos Estados Unidos, que já atingiram a extensão possível”, diz o pesquisador.

O coordenador do CCArbon também é otimista em termos de disseminação do sistema agroflorestal em São Paulo e em todo o Brasil. “Essa prática já é mais recente mas muito promissora. Já são cerca de 10 ou 15 milhões de hectares com agrofloresta implantada e uma importante quantidade de carbono sequestrado por hectare”, ele resume.

O CCarbon tem poucos meses de vida, mas seu coordenador está animado com as demandas que apenas aumentam. Com poucas semanas de diferença, por exemplo, ele participou como convidado de dois importantes eventos, entre setembro e outubro. No dia 21 de setembro, esteve no encontro “Inteligência, meio ambiente e mudanças climática: transição energética – desafios e oportunidades para o país”, realizado em São Paulo pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e que reuniu autoridades do Governo Federal, membros do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) do Estado de São Paulo e alguns dos principais especialistas em mudanças climáticas do país. No dia 16 de outubro, esteve na Assembleia Legislativa de São Paulo, para o lançamento da Frente Parlamentar pelo Ciclo Alimentar Sustentável. Carlos Cerri conta que também já participou de uma apresentação sobre as perspectivas para o hidrogênio verde e descarbonização em geral para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

“O Brasil tem metas em redução de emissões de gases de efeito estufa, estabelecidas no marco do Acordo de Paris, de 2015, firmado pela comunidade internacional. Com práticas adequadas, a agropecuária tem muito a contribuir, como já está fazendo em vários setores”, conclui Carlos Cerri, sintetizando um desafio colocado no horizonte próximo e com resultados promissores já sendo contabilizados, envolvendo desde pequenos a grandes produtores.

PLANO ABC ESTIMULA PRÁTICAS DE CAPTURA DE CARBONO NA AGRICULTURA

Em 2010, o governo brasileiro lançou o Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura, conhecido como Plano ABC. O Plano ABC compreende sete programas, visando recuperar pastagens degradadas, expandir a adoção dos sistemas integrados de lavoura-pecuária-floresta (ILPF), dos Sistemas Agroflorestais (SAFs) e do Sistema Plantio Direto (SPD), difundir a Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN), o plantio de florestas e o tratamento de dejetos animais. Um conjunto de ações, portanto, visando a gradativa descarbonização da agricultura. São Paulo é um dos estados com maior número de contratos assinados no âmbito do Plano ABC, visando a descarbonização da agricultura.

Um balanço do Plano ABC entre 2010 e 2020 foi feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em estudo assinado pelos pesquisadores Tiago Santos Telles, José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, Ana Julia Righetto e Marina Ronchesel Ribeiro. O estudo foi publicado em março de 2021 e concluiu que “a expansão na adoção das tecnologias do Plano ABC atingiu 154% da meta; e a mitigação de CO2 , o equivalente a 113% da meta”. Permanecem, contudo, segundo o estudo, desafios em termos de recuperação de pastagens degradadas e de tratamento de dejetos animais.

Os autores do estudo lembram que a meta do Plano ABC era de expandir a área atingida pelas tecnologias preconizadas em 35,5 milhões de hectares entre 2010 e 2020, e entretanto essa área chegou a 54,8 milhões de hectares, correspondendo a 154,38% da meta. Em termos de áreas que introduziram o plantio direto, a meta era de se chegar a 8 milhões de hectares em 2020, mas a área atingida foi de 16,7 milhões de hectares, mais do que o dobro da meta.

A superação da meta também foi observada em áreas de integração lavoura-pecuária floresta. A meta era de 4 milhões de hectares em 2020, mas a área atingida foi de 13,8 milhões de hectares, ou três vezes a meta. Em termos de fixação de biológica de nitrogênio, chegou-se a 14,6 milhões de hectares atingidos em 2020, em relação à meta de 5,5 milhões de hectares. Do mesmo modo, foram plantados 4,3 milhões de hectares de florestas, contra a meta de plantio de 3 milhões de hectares.

O desempenho não foi o mesmo em termos de recuperação de pastagens degradadas. A meta era de atingir 15 milhões de hectares em 2020, mas de fato foram atingidos 5,4 milhões de hectares. No cômputo geral, com a adoção das tecnologias previstas no Plano ABC foram mitigadas cerca de 152,93 milhões de toneladas de CO2 equivalente, atingindo 113% da meta, concluíram os autores do estudo publicado pelo Ipea, mais uma comprovação da viabilidade da disseminação de práticas de descarbonização da agricultura brasileira, com importante participação do estado de São Paulo.

 

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