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Amor pelas águas: Nelson de Souza Rodrigues e o rio Piracicaba
O agrônomo Nelson folheia o livro que escreveu com o neto Luccas: paixão de geração para geração (Fotos Adriano Rosa)

Amor pelas águas: Nelson de Souza Rodrigues e o rio Piracicaba

Por José Pedro Martins

Piapara, peixe-sapo, dourado, pacu, mandi, lambari, jaú, cascudo, canivete, jurupoca. O rio Piracicaba era um paraíso para os peixes. A Colônia de Pescadores da cidade era uma das mais ativas do estado, atrás apenas das de Santos e Litoral Norte. Mas esse cenário paradisíaco acabou. Assoreamento, devastação da mata ciliar, poluição industrial e por esgoto urbano, descaso com as águas e a vida que elas carregam levaram o rio à porta do inferno. Das 107 espécies que o agrônomo Nelson de Souza Rodrigues catalogou, quando trabalhava no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), 33 espécies, um terço, já sumiram do Piracicaba. Não há indicador maior da decadência do rio, que Nelson percebia há mais de 30 anos, ao observar o progressivo desaparecimento dos peixes. A atual crise hídrica que assusta a região mais rica e populosa do país estava prevista aí. Aqui, com exclusividade na Agência Social de Notícias, a história do homem que, como poucos, aos 93 anos sente os dramas e alimenta esperanças em relação às águas. Ele é símbolo do amor do piracicabano pelo rio – um amor que se materializa, por exemplo, nos cadeados de casais apaixonados presos na ponte que dá acesso ao Engenho Central.

Riacho do Ipiranga: parte da história brasileira, local de nascimento de uma paixão pelas águas

Riacho do Ipiranga: parte da história brasileira, local de nascimento de uma paixão pelas águas

I – UM GRITO DE LIBERDADE, ÀS MARGENS DO IPIRANGA

O riacho do Ipiranga passa geralmente desapercebido para a maioria dos paulistanos. As suas nascentes ficam onde hoje está o Jardim Botânico de São Paulo, por sua vez localizado no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga ou Parque do Estado, na Água Funda. Como que por milagre, esta é uma área que abriga uma reserva de Mata Atlântica em pela megalópole.

Depois o riacho percorre 9 km, antes de desaguar na margem esquerda do rio Tamanduateí.  Ipiranga, em língua tupi, significa “rio vermelho”. Hoje suas águas estão ainda mais escuras, depois de receber uma carga enorme de esgoto.

Mas as margens do riacho do Ipiranga fazem parte da história oficial do país, todos brasileiros já ouviram falar delas. Foi onde, no dia 7 de setembro de 1822 D.Pedro I, teria bradado o lendário Grito da Independência do Brasil.

Pois este também foi o cenário do nascimento de uma paixão, de um homem pelas águas e a vida que pulsa nela. Naquele tempo o menino Nelson de Souza Rodrigues nem imaginava, mas os primeiros peixes que pescou no riacho foram o trampolim para uma vocação, que ele desempenhou particularmente no contato com outro rio famoso e igualmente importante, o rio Piracicaba.

Com uma peneira, pescava os peixinhos que colocava no aquário que ele mesmo construía. Essa habilidade em fazer coisas, lidar com os objetos, ele levaria para a vida e seria essencial para muitas de suas futuras realizações. O amor aos peixes, então, esse ele levou para sempre.

II – CURSO DE AGRONOMIA, O PORTAL PARA AS ÁGUAS

Meados da década de 1940. O Brasil ainda vive os impactos dos horrores da Segunda Guerra Mundial e os rigores do Estado Novo de Getúlio Vargas. Mas um jovem paulistano cheio de esperança chega a Piracicaba, para cursar a prestigiada Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq). De novo Nelson de Sousa Rodrigues nem sonhava, mas aquela escola e aquela cidade fariam parte para sempre de sua vida.

Em 1948 ele se gradua como engenheiro agrônomo e volta para São Paulo. Dois anos depois, a primeira atividade profissional, mas ainda não era na área para a qual estudou. Foi atuar como fotógrafo em São Paulo. Dominar e aprimorar as técnicas fotográficas foi determinante para que o agrônomo Nelson desenvolvesse um olhar diferenciado, sofisticado, para as coisas da natureza.

O agrônomo com um exemplar do raríssimo cascudo-espinho

O agrônomo com um exemplar do raríssimo cascudo-espinho

III – NA BEIRA DO RIO MOGI GUAÇU, COM PEIXES E AVES

Depois da incursão pelos claros e escuros da fotografia, Nelson passa a chefiar o Setor de Documentação e Divulgação da Divisão de Conservação do Solo da Secretaria de Agricultura do Estado. O trabalho era documentar os serviços de  conservação do solo e combate à erosão, produzindo um boletim bimensal sobre a temática. Em 1954, ainda na capital, passa a chefiar a Região Conservacionista de São Paulo, onde tem oportunidade de desenvolver técnicas conservacionistas para regiões de topografia inclinada. Os trabalhos científicos são divulgados em vários congressos.

Um salto importante em 1958, o ano da primeira Copa do Mundo do Brasil, de Pelé, da euforia nacional dos anos JK, a construção de Brasília, a Bossa Nova conquistando o mercado internacional. O agrônomo muda-se para Pirassununga, onde inicialmente chefia a Escola de Tratoristas, do então Departamento de Engenharia Mecânica da Secretaria da Agricultura.

Ainda em Pirassununga, chefia o Posto Avançado de Piscicultura do Instituto de Pesca, também ligado à Secretaria de Estado da Agricultura. Nesta função, desenvolve várias pesquisas com peixes do rio Mogi-Guaçu. É o primeiro e mais intenso contato, profissionalmente, com o mundo da pesca.

Como o Piracicaba, o rio Mogi-Guaçu tem suas nascentes nas bordas da Serra da Mantiqueira, no Sul de Minas Gerais. As duas bacias hidrográficas correm mais ou menos paralelas em direção ao interior de São Paulo.

Um dos pontos mais conhecidos do rio é a Cachoeira de Emas, em um distrito do mesmo nome em Pirassununga. Em suas margens estão importantes instituições de pesquisa, como o hoje Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Peixes Continentais, ligado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

Junto ao Mogi-Guaçu, o encanto cada vez maior pelas águas e os peixes. Mas Nelson não deixa de lado outra paixão antiga. Ele se torna um grande colecionador de pássaros. Chega a ter cerca de 400 deles, de dezenas de espécies. Tangarás azuis com faixa preta e topete vermelho, saíras do Rio Negro, handais, periquitos, araras, tico-ticos e um raríssimo japu-açu, entre outros, promovendo uma sinfonia permanente de cores e múltiplos sons.

Dois pássaros tinham um certo xodó do colecionador. Eram duas sabiás, uma poca e uma laranjeira, ambas muito raras e muito procuradas. O agrônomo rejeitou grandes ofertas por esses e outros pássaros.

Nesses tempos, outro talento desenvolvido. Era o de taxidermista, a partir de técnicas que conheceu ainda em São Paulo. Foram muitos pássaros e peixes que ele submeteu à técnica. Mantém até hoje um exemplar de peixe raríssimo, o cascudo-espinho (Pterygoplichthys gigas).

Um dia, a libertação. As leis mudaram, a visão sobre os animais também. O agrônomo teve que libertar as suas aves. Muitas delas foram encaminhadas a instituições científicas, assim como a quase totalidade dos indivíduos empalhados. “Não foi muito fácil não ficar sem eles”, confessa, com um olhar de nostalgia feliz.

Reservatório quase seco do Cantareira: Piracicaba se mobilizou há 40 anos

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IV – ENFIM EM PIRACICABA, NO CENA

Em 1972, o Nelson de Souza Rodrigues foi promovido, por concurso, à carreira de Pesquisador Científico. Três anos depois, o reencontro com Piracicaba e o seu rio, a maior vocação. Em 1975, foi nomeado chefe do Setor de Ecologia do Meio Hídrico, através de convênio entre o Instituto de Pesca da Secretaria de Agricultura e o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), ligado à Universidade de São Paulo (USP).

Foi neste posto privilegiado, no contato quase diário com o rio, que o pesquisador aprofundou seus estudos, alargou seus conhecimento e alimentou a sua indignação. Entre 1975 e 1985, ano de sua aposentadoria como pesquisador, ele realizou inúmeros estudos sobre o meio hídrico e sua diversidade. Uma das maiores constatações foi a da degradação crescente das águas, com impacto direto no ciclo vital dos peixes que historicamente habitavam o rio Piracicaba.

O primeiro estudo promovido, a pedido do diretor do CENA, Dr.Admar Cervelini,  já era um indicador muito preocupante. Por dois anos, ele colheu amostrar quinzenais, para verificar a possível presença de nitrato no rio e seus afluentes. As amostras estavam relacionadas a quatro tipos de cobertura vegetal, por mata, lavoura, pastagem e cana. A conclusão foi a de que a poluição por nitrato de fato ocorria de modo expressivo, com exceção das amostras feitas junto a matas nativas. O trabalho teve repercussão internacional, com sua divulgação no Coordinated Research Program Meeting – IAEA, em maio de 1978, em Viena, Áustria, e também no I Simpósio Nacional de Ecologia, patrocinado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Paraná, em 1978.

Justamente no período em que trabalhou no CENA, Nelson Rodrigues sentiu assim, como toda a cidade, os efeitos do agravamento da poluição. Naquele momento, dois fatos contribuíram para Piracicaba ficar em alerta máximo com relação ao estado e perspectivas para o rio adorado.

Em primeiro lugar foi o início da operação, em 1974, do Sistema Cantareira, concebido pelo governo militar para garantir o abastecimento de metade da Grande São Paulo. A solução encontrada foi construir um conjunto de reservatórios pouco depois das nascentes dos rios Atibaia e Jaguari, os dois principais formadores do rio Piracicaba.

Desde o início houve a mobilização dos piracicabanos, moradores da “última cidade” da bacia, mas conscientes de que a retirada de águas da bacia poderia afetar diretamente o Atibaia e, por extensão, o próprio Piracicaba.  Posteriormente, estudos realizados no próprio CENA confirmaram que as suspeitas tinham razão de ser. O Cantareira foi projetado para retirar até 33 mil litros, ou metros cúbicos, por segundo de água da bacia do Piracicaba para abastecer cerca de metade da Grande São Paulo.

Outro ingrediente que repercutiu diretamente no rio Piracicaba foi o lançamento do Proálcool, em 14 de Novembro de 1975, por meio do decreto n° 76.593  do governo federal. Era a resposta do governo militar à crise mundial do petróleo, aberta em 1973. A ideia era estimular uma tecnologia energética nacional.

A região de Piracicaba, historicamente um território de cultivo de cana, foi particularmente afetada pelas medidas de incentivo à produção do álcool. Ocorre que, naquele momento, a legislação sobre meio ambiente ainda era muito limitada e, além disso, não havia maiores cuidados por parte da indústria sucroalcooleira. O resultado foi a proliferação de descartes de resíduos do processo produtivo, a vinhaça, diretamente e sem tratamento nos corpos hídricos. Com isso, começaram a acontecer frequentes mortandades de peixe no rio Piracicaba.

O amor do povo piracicabano pelo rio, expresso nos cadeados presos à ponte, como em locais famosos da Europa

O amor do povo piracicabano pelo rio, expresso nos cadeados presos à ponte, como em locais famosos da Europa

A FERTIRRIGAÇÃO COM A VINHAÇA

O lançamento da vinhaça – efluente resultante do processo de fabricação de bebidas destiladas e do álcool industrial – nos corpos hídricos era uma preocupação antiga de pesquisadores da Esalq, e em particular de Jayme Rocha de Almeida, que já na década de 1940 realizava estudos sobre o assunto.

Foi ele quem coordenou as pesquisas que levaram à fertirrigação (adubação) dos próprios canaviais com a vinhaça. Os primeiros resultados foram apresentados no Congresso Internacional de Agricultura, realizado na Bélgica, em 1950, como informa Urgel de Almeida Lima (que acompanhou as pesquisas) no artigo “Um resumo histórico sobre a vinhaça em Piracicaba”, publicado no número 20 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba.

Houve grande repercussão e novos experimentos passaram a ser realizados, como nas usinas Modelo, em Piracicaba, Santa Bárbara, em Santa Bárbara d´Oeste, e na destilaria da Rhodia, então ainda em terras pertencentes a Campinas, antes da criação do município de Paulínia.

Ainda demorou, contudo, para o uso generalizado da vinhaça como fertirrigação dos canaviais. A prática encontrou resistência, até que finalmente passou a ser “oficial” pelo setor sucroalcooleiro, com benefício direto para a vida aquática.

Foi, literalmente, a gota d´água para a mobilização popular em defesa do rio que dá vida à cidade. O agrônomo Nelson Rodrigues via com os próprios olhos e com os números de seus estudos o que estava acontecendo. A constatação mais grave se deu com a catalogação dos peixes originais da bacia do rio Piracicaba.

Com novos estudos, a situação se tornava cada vez mais assustadora.  Das 107 espécies de peixes que o agrônomo catalogou, nesse período no CENA,  33 espécies, um terço, já desapareceram do Piracicaba. Outras 53 se tornaram temporárias ou estão quase extintas e somente 16 podem ser consideradas permanentes, enquanto três são espécies introduzidas.

Uma catástrofe ambiental e cultural, em uma cidade que sempre viveu do rio e para o rio. Todas as grandes manifestações culturais de Piracicaba sempre foi realizadas no próprio rio ou no seu entorno. A Festa do Divino, principal festa religiosa da cidade, é celebrada há 188 anos no leito e margens do Piracicaba. Instituições culturais relevantes para a vida local foram sendo instaladas nas proximidades do rio, como o SESC e a própria Secretaria Municipal de Cultura, no complexo do Engenho Central, onde é realizado, por exemplo, o Salão Internacional de Humor.

Com a mobilização alimentada pelo início da operação do Cantareira e pelos impactos do Proálcool, Piracicaba tornou-se gradativamente uma referência nacional e internacional de defesa das águas. Para dar ainda maior credibilidade e lastro a essa mobilização, estudos como os realizados por Nelson de Souza Rodrigues que, no entanto, não ficou na esfera da pesquisa. Após sua aposentadoria em 1985, passou a se dedicar de corpo e alma à campanha em defesa do rio.

DESPOLUIÇÃO COM AGUAPÉ

No início da década de 1980, Nelson Rodrigues liderou um projeto pioneiro, de despoluição dos rios por intermédio de plantas flutuantes. Em uma área do CENA, ele instalou 32 caixas de 1.000 litros de água cada. Nessas caixas, dispôs quatro espécies de plantas aquáticas, o aguapé (Eichornia crassipes), alface d´água (Pistia stratiotes), salvínia (Salvinia sp) e lemnia (Lemnia minor). Durante um ano as caixas receberam águas do rio Piracicaba.

A utilização do aguapé se mostrou a mais promissora e com isso foi instalado um sistema fitodepurador em área da Esalq, para receber águas do ribeirão Piracicamirim, que atravessa o campus e é muito mais poluído. Os resultados do Projeto Aguapé foram muito satisfatórios, com a redução de 80% da poluição, aumentada para 95% com a incorporação de solos filtrantes projetados pelo professor Eneas Salatti, então diretor do CENA.

O Projeto venceu o Concurso de Tecnologia Nacional – área Meio Ambiente, promovido em 1983 pelo Banco do Brasil. Além disso, a experiência foi levada a vários municípios e empresas de diversos estados. Em Brotas, sob orientação de Nelson Rodrigues, foi instalado o sistema fitodepurador com aguapés que, durante dois anos, reduziu a poluição do rio Jacaré Pepira em mais de 80%. “Por razões políticas, o sistema foi desativado”, lamenta o engenheiro. Com aperfeiçoamentos, a despoluição com aguapé continua sendo praticada em vários lugares do país.

V – A HISTÓRICA CAMPANHA ANO 2000  

Em 1980, Nelson se tornou presidente da Divisão de Meio Ambiente da Associação de Engenheiros e Arquitetos de Piracicaba (AEAP). O seu envolvimento com o tema seria crescente e, no dia 4 de outubro de 1985, a AEAP lançaria oficialmente a Campanha Ano 2000 – Redenção Ecológica da Bacia do Piracicaba. O lançamento se deu com uma circular assinada pelo presidente da AEAP, engenheiro Wanderley Esmael, e pelo presidente da Divisão de Meio Ambiente, Nelson de Souza Rodrigues, o mentor e principal motor da iniciativa.

Houve grande repercussão na mídia e sociedade local. Maior impulso se deu com o apoio do Conselho Coordenador das Entidades Civis de Piracicaba, após a apresentação da Campanha por Rodrigues no dia 12 de outubro. Era um conjunto de 32 propostas, depois reunidas na Carta de Reinvindicações, concluída em 1986 e apresentada oficialmente ao governador Orestes Quércia, no Palácio dos Bandeirantes, no dia 30 de julho de 1987.

Várias lideranças locais estavam presentes, como o diretor da Esalq, Dr.Humberto Campos, e o diretor do “Jornal de Piracicaba”, Rosário Losso Neto. Nelson Rodrigues foi quem apresentou a Campanha e a Carta para Quércia.

No dia 11 de novembro de 1987, o governador assinou o Decreto 25.576, criando o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH), com a missão inicial de estudar medidas para a bacia do Piracicaba, com base na Carta de Reivindicações. Em sua primeira reunião, a 7 de dezembro de 1987, o CERH declarou como crítica a bacia do rio Piracicaba, tendo determinado ao Comitê Coordenador do Plano Estadual de Gestão dos Recursos Hídricos (CCRHI) a elaboração, em 120 dias, de um Programa Prioritário para a Bacia do Rio Piracicaba.

Novos estudos foram executados na esfera estadual, embora na prática aquela “prioridade” oficial dada para a bacia do rio Piracicaba nunca tenha acontecido. Mas a Campanha Ano 2000 tornou-se absolutamente vitoriosa, pois a partir dela evoluíram ações que levariam a um cuidado maior com o rio Piracicaba e, também, com todas as águas de São Paulo e do Brasil.

Um dos avanços importantes foi a criação, a 13 de outubro de 1989, do Consórcio Intermunicipal das Bacias dos rios Piracicaba e Capivari, por ação dos prefeitos das cidades localizadas mais a montante e mais a jusante do rio Piracicaba, Nicola Cortez, de Bragança Paulista, e José Machado, de Piracicaba.  O Consórcio logo se tornaria uma referência nacional e internacional de mobilização e, não por acaso, o seu primeiro presidente, José Machado, depois seria nomeado presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), criada na esteira da Lei Estadual (de 1991) e Lei Federal de Recursos Hídricos (de 1997).

Como uma das consequências das leis estadual e federal, foram instituídos os Comitês de Bacia Hidrográfica, como instâncias de planejamento e decisão sobre as águas de cada bacia. O Comitê das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) foi o primeiro a ser instalado, em 1991.

Tudo isso é resultado da mobilização do povo de Piracicaba, a cidade que mais sentiu a degradação das águas nas últimas quatro décadas no estado de São Paulo. O agrônomo Nelson de Souza Rodrigues é um símbolo dessa trajetória, que une luta, indignação e ciência.

AVANÇOS E DESAFIOS

Desde o início da mobilização em Piracicaba, muitos avanços aconteceram na proteção das águas. Além da legislação criada e da instalação de Comitês de Bacias, muitas obras têm sido realizadas. Uma obra fundamental foi a transferência da captação de águas para a maior parte do abastecimento da cidade do rio Piracicaba para o Corumbataí, ainda em 1980, no governo de João Hermann Neto. Decisão muito importante, porque a cidade não ficou dependente do rio cada vez mais poluído.

No momento de lançamento da Campanha Ano 2000 – Redenção Ecológica da bacia do Rio Piracicaba, menos de 5% dos esgotos urbanos eram tratados em toda região. Desde então, foram construídas estações de tratamento de esgoto com recursos dos municípios, do Estado e da União, e em 2015 cerca de 50% dos esgotos urbanos da bacia já estão sendo tratados. O tratamento na indústria é de mais de 90% e, no setor sucroalcooleiro, de mais de 95%.

Mas a poluição continua e continuaram outras formas de degradação, com o uso inadequado dos solos, excesso de agrotóxicos etc. A seca de 2014-2015 demonstra que os desafios estão longe de total superação.

Rio Piracicaba, no famoso salto, com menos de 10% de sua vazão histórica em janeiro de 2015: alta preocupação

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VI – PREOCUPAÇÃO E ESPERANÇA NO FUTURO

Testemunha ocular dessa história, Nelson de Souza Rodrigues sente há décadas a degradação dos rios, em particular do Piracicaba. Mas não deixa de ficar especialmente preocupado com a atual crise hídrica, caracterizada por uma redução impressionante do volume de água do Sistema Cantareira mas, também, por problemas em sistemas de abastecimento em vários municípios da bacia do rio Piracicaba. Pelo menos dez municípios têm enfrentado rodízio ou outras medidas de contenção desde o final de 2014. “Precisou acontecer uma crise dessas para as pessoas e o governo se darem conta do tamanho do desafio”, ele comenta.

O agrônomo considera vital, para a futura segurança hídrica nas bacias do PCJ, que sejam construídas represas ao longo dos principais rios. “A forte estiagem contribuiu para a crise, mas aconteceu e é preciso evitar que ocorra novamente no futuro, mesmo que os reservatórios sejam repostos agora. Foi um aviso muito forte, precisamos estar preparados para perturbações hídricas como essa no futuro”, ele adverte.

Ele tem dois motivos de esperança. Um deles é a possível reação popular, como já ocorreu historicamente na bacia do Piracicaba. O outro, uma conscientização ambiental maior por parte das novas gerações, e o agrônomo tem um claro exemplo em casa.

Seguindo os ensinamentos do pai, seus filhos e filhas, assim como a esposa Yonne, já falecida,  sempre estiveram com ele nos momentos mais importantes da carreira científica e de ativista. E é um de seus netos, Luccas Guilherme Rodrigues Longo, o coautor, com o avô, do livro “Piracicaba, seu rio, seus peixes”, lançado em 2014, pelo Proac do governo estadual e com apoio da Prefeitura de Piracicaba.

O livro documenta o olhar de Nelson de Souza Rodrigues sobre o rio Piracicaba. São informações completas sobre o rio e a sua bacia de 1,2 milhão de hectares, com destaque para os estudos sobre peixes. O piracicabano Luccas é biólogo, especialista em Bioecologia e Conservação pela UNIMEP e mestre em Conservação de Ecossistemas Florestais pela Esalq/USP.

O agrônomo folheia o livro pouco depois de apresentar alguns objetos que resumem a sua trajetória de pesquisador inquieto. O raro cascudo-espinho fruto de suas incursões na taxidermia, as personalidades mundiais que esculpiu em miniatura. O legado de Nelson de Souza Rodrigues é cristalino como a água que um dia ele espera voltar ao leito do Piracicaba. As novas gerações dão continuidade à sua trajetória de amor às águas.

O agrônomo e suas miniaturas de personalidades mundiais, que ele mesmo esculpiu: a história nas mãos

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Organização sediada em Campinas (SP) de notícias, interpretação e reflexão sobre temas contemporâneos, com foco na defesa dos direitos de cidadania e valorização da qualidade de vida.

Um comentário

  1. Pedro Américo Freitas

    Boa noite,
    Gostaria de obter o contato do grande mestre Nélson. Até hoje tenho a edição de julho de 1988 da revista Globo Rural que o cita num trabalho com aguapés. Tenho uma propriedade que o rio que passa nos fundos virou esgoto. Como ele mesmo fala, quero trasnformar o problema em solução.

    Obrigado,
    Pedro Américo

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