Capa » Ecodesenvolvimento » Ações em Nova York, operações de risco: a verdade sobre o esvaziamento do Sistema Cantareira
Ações em Nova York, operações de risco: a verdade sobre o esvaziamento do Sistema Cantareira
Cantareira sofre com a estiagem e com equívocos na gestão. (Foto Adriano Rosa)

Ações em Nova York, operações de risco: a verdade sobre o esvaziamento do Sistema Cantareira

As ações da Sabesp na Bovespa estavam valendo R$ 19,35 cada às 17h07 da quarta-feira, 22 de outubro, alta de 0,73% em relação ao dia anterior. Naquele dia os reservatórios do Sistema Cantareira chegaram a 3,2% do volume útil, assustando ainda mais a população que corre atrás de alternativas de abastecimento e também o setor produtivo, que teme impactos da estiagem no funcionamento das empresas. Brigas entre vizinhos e assaltos a caminhões-pipa já aconteceram, mas a crise hídrica em 2015 pode ser ainda pior, se os reservatórios não foram recompostos de forma razoável nos próximos meses, como adverte o professor Antônio Carlos Zuffo, do Departamento de Recursos Hídricos da Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp. Esse cenário pré-apocalíptico, que se refletiu na campanha presidencial, é fruto da uma série de equívocos cometidos na administração do Cantareira e do próprio funcionamento do Sistema de Gestão dos Recursos Hídricos, que deve ser repensado para evitar novos episódios nos próximos anos.

O especialista da Unicamp lembra que em janeiro de 2014 os reservatórios do Sistema Cantareira, que abastece metade da Grande São Paulo, estavam com 22,4% de sua capacidade, menos da metade do que em janeiro de 2013, que foi de 52%. Pois em 21 de outubro de 2014 o conjunto do Cantareira está com 3,3% do volume útil, já considerando o uso do Volume Morto. Em termos reais, o Cantareira está com -15,6% e o Volume Morto, com – 5,8%. Sem chuvas que recomponham os reservatórios, eles estarão com um volume ainda menor no início de 2015, projetando uma crise hídrica ainda mais severa no próximo ano.

Erros de planejamento – Graves equívocos de planejamento foram cometidos na operação do Cantareira, sustenta o professor Zuffo. Ele lembra que o Sistema entrou em operação em 1974, com a construção dos reservatórios de Cachoeira e Atibainha, na bacia do rio Piracicaba, e de Paiva Castro, na bacia do Alto Tietê. Depois foi ampliado, com a inclusão dos reservatórios Jaguari e Jacareí, em 1982.

O especialista observa que a entrada em operação do Cantareira ocorre justamente ao final de um período de 35 anos de com severa estiagem na bacia do rio Piracicaba, como comprova a medição feita pelo Instituto Agronômico de Campinas desde 1910. A partir de metade da década de 1970 as precipitações voltam a aumentar, chegando a picos máximos entre 2000 e 2005.

Em 2004 houve a renovação da outorga para a Sabesp continuar gerenciando o Cantareira, não mais por trinta anos, como anteriormente, mas agora por dez anos. Para o professor Zuffo, o período menos seco das últimas três décadas criou “uma falsa sensação de segurança” a os termos da outorga, para a próxima década, foram muito generosos com a empresa estadual de saneamento, que em 2002 havia aderido às regras do Novo Mercado da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros BM&F, obtendo o registro na Securities and Exchange Commission – SEC e com suas ações passando a ser negociadas na Bolsa de Valores de Nova York, a New York Strock Exchange – NYSE, na forma de ADRs – “American Depository Receipts” – Nível III.

Justamente em 2004, o ano da renovação da outorga, foi realizada “nova oferta pública para distribuição simultânea, no mercado brasileiro e internacional, de ações ordinárias nominativas, de titularidade do Estado de São Paulo”, como informa o próprio site da Sabesp na internet. A partir da carteira 2007/2008, a Sabesp passou a integrar o Índice de Sustentabilidade Empresarial – ISE da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros BM&FBovespa, que “reflete o desempenho das ações de empresas que apresentam alto grau de comprometimento com sustentabilidade e responsabilidade social”, de novo nas palavras da empresa em seu site. As ações da Sabesp no início de 2008 valiam menos que R$ 10,00 cada. Desde então subiram gradativamente, até atingir patamares superiores a R$ 90,00 entre janeiro e abril de 2013, hoje estando em menos de R$ 20,00, em plena crise hídrica.

Com a nova outorga, nota o professor Zuffo, da Unicamp, houve o redimensionamento da capacidade do Sistema Cantareira, de 33 metros cúbicos por segundo originais para 36 metros cúbicos por segundo, sendo 31 m3/s para a Grande São Paulo e 5 m3/s para a bacia do rio Piracicaba.

O professor explica que houve “uma operação de alto risco” em função de mudanças nas regras de operação do Cantareira, que viu ampliado o seu Volume Útil, para 973,50 hm/3 (hectômetros cúbicos), em relação aos 765,71 hm/3 anteriores. Isto foi possível porque parte do Volume Morto anterior, de 687,75 hm/3, foi transformada em Volume Útil. O Volume Morto foi então reduzido, para 481,89 hm/3, justamente o que está sendo explorado no momento, para continuar o abastecimento de metade da Grande São Paulo.

Com a ampliação do Volume Útil, adverte o especialista da Unicamp, também aumentou o risco de operação do Sistema. Mas o Cantareira continuou produzindo a todo vapor, em função da citada “falsa sensação de segurança”. Ocorre que, para o professor Zuffo, não foram considerados estudos muito conhecidos, sobre variações climáticas com grande impacto hidrológico.

Um dos mais citados é o que trata do Efeito José, inspirado no personagem bíblico que, ao interpretar o sonho do faraó, previu sete anos de fartura e sete anos de fome. Na área hidrológica, o Efeito José caracteriza períodos de longos períodos de estiagem, seguidos de longos períodos de seca. Exatamente o que ocorreu com os 35 anos de precipitações menores entre 1935 e 1970, seguidos de um período de maior precipitação nas três décadas seguintes. O estudo que deu o nome de José a este fenômeno é de autoria de Benoit B.Mandelbrot e James R.Wallis, que analisaram os dados fluviométricos históricos de grandes rios no mundo, como o Nilo no Egito. O estudo é de 1968, quando estavam sendo iniciadas as obras do Cantareira.

Estaríamos, então, entrando em um período de chuvas bem menores, o que aumenta a necessidade de aprimorar a segurança hídrica nas áreas mais escassas, como a Grande São Paulo, a mais rica e populosa do país e que consome mais de 400% a sua disponibilidade natural de água. Esse déficit é compensado pela importação de águas da bacia do rio Piracicaba, que por sua vez tem comprometido o seu abastecimento, pelas regras de operação do Cantareira que privilegiam a Grande São Paulo.

Os períodos climáticos cíclicos, explica o professor da Unicamp, são provocados pelas mudanças na atividade solar. Vários estudos, como os do Ciclo de Suess, Ciclo de Hallstattzeit e Gleissberg, reforçam a teoria dos ciclos climáticos, atividades naturais que, nota o professor Zuffo, devem ser considerados no planejamento hidrológico. Entre janeiro e julho de 2014 choveu 533 mm no Cantareira, contra a média histórica de 925 mm.

Lucro, desmatamento e comitês –  O Sistema Cantareira produziu muito no período de nova outorga do Cantareira, e os lucros da Sabesp entre 2005 e 2013, segundo os balanços da empresa, foram de mais de R$ 13 bilhões em valores corrigidos. Financeiramente o Cantareira faz parte, então, de um ótimo negócio. Nos dois primeiros trimestres de 2014, segundo o site da empresa, a receita operacional acumulada foi de R$ 5,8 bilhões. Em setembro, o capital social da empresa era composto em 50,3% de ações do governo de São Paulo, 25,4% de ações negociadas na Bolsa de Nova York e 24,3% negociadas na BM&FBovespa.

Mas não são apenas os ciclos hidrológicos que estão sendo desconsiderados. Muitos termos condicionantes da outorga de 2004 para a Sabesp não foram considerados, como os estudos de alternativas para reduzir a pressão sobre o Cantareira. Os estudos vieram apenas em agosto de 2013, quando foi oficialmente apresentado o Plano Diretor de Aproveitamento de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista, pela Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos.

O estudo prevê nove arranjos para garantir o abastecimento da Macrometrópole até 2035. O Plano prevê a necessidade de garantia de “novos” 60 metros cúbicos, ou 60 mil litros, de água por segundo até 2035, o dobro do que o Cantareira transfere hoje do rio Piracicaba para a Grande São Paulo. Duas obras previstas no Plano são as barragens de Pedreira e Duas Pontes, nos municípios de Pedreira, Campinas e Amparo, que assegurariam pelo menos 7 metros cúbicos adicionais para a região do PCJ.

Também houve atraso, por parte do governo de São Paulo, na implementação de um dos pontos-chave da política nacional e estadual de recursos hídricos, a cobrança pelo uso da água.  A cobrança no Alto Tietê foi lançada no dia 26 de março de 2014, quando já estava claro que a estiagem histórica iria comprometer muito o abastecimento de água na Grande São Paulo e outras regiões do estado.

A cobrança do uso da água é ponto-chave porque ela contribui para uso racional dos recursos hídricos e, também, porque ela representa a captação de recursos para as necessárias obras de tratamento de esgoto e de alternativas de captação de água. Pela lei, a cobrança é determinada pelo respectivo comitê de bacia hidrográfica. Em São Paulo existem 21 comitês, e em somente três a cobrança já foi iniciada – nas bacias PCJ e do Paraíba do Sul e, agora, depois de 17 anos da lei federal, de 1997, no Alto Tietê.

“O governo tem medo dos comitês porque, se eles forem fortes, o Estado perde o poder”, resume o professor Antônio Carlos Zuffo, da Unicamp. Os atuais comitês têm forte presença do Estado, com a representação dos órgãos dos setores de saneamento, recursos hídricos e meio ambiente. Os municípios também geralmente se alinham com o Estado.  A sociedade civil tem limitada participação nos comitês, que pela lei devem implementar a política de recursos hídricos em suas bacias – no caso do Cantareira, que está entre duas bacias, os Comitês do PCJ e do Alto Tietê deveriam ter, assim, uma postura mais ativa em relação ao gerenciamento do Sistema. Uma das lições da crise hídrica de 2014 então deve ser essa: é fundamental reformar a arquitetura dos comitês de bacias hidrográficas, para que eles sejam mais autônomos, democráticos e participativos.

“O governo de São Paulo não despoluiu a Billings, que seria hoje uma enorme reserva estratégica de água,  não incentivou a captação de água da chuva, não protegeu os mananciais com maior reflorestamento ciliar e controle do uso da terra, mas a atual crise também demonstra que os comitês de bacia devem ser repensados”, afirma Carlos Bocuhy, representante do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM) no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Outra lição: não dá para adiar medidas urgentes de planejamento de uso do solo e reflorestamento, para a devida proteção dos mananciais. Um estudo da Fundação SOS Mata Atlântica revelou que nos últimos 30 anos foram desmatados 78% da cobertura florestal original dos oito municípios paulistas e oito mineiros em que os reservatórios do Cantareira estão localizados. A proteção da área do entorno dos reservatórios também era uma condição para a renovação da outorga para a Sabesp administrar o Cantareira em 2004. A proteção dos mananciais também depende dos próprios municípios, que têm como legislar sobre o uso do solo.

“As decisões devem ter sido tomadas por economistas, e não por técnicos”, resume o professor Zuffo, da Unicamp, a respeito do conjunto de medidas executadas para a operação do Sistema Cantareira nos últimos anos. Para ele, é fundamental que, no necessário planejamento, sejam enfim considerados os fluxos da natureza. “Devemos esperar pelo melhor, mas estar preparado para o pior, o que significa planejamento, e aguardar o que vier”, diz ele, repetindo o que afirmou em seminário promovido pela FIESP e CIESP no dia 22 de setembro, quando já estavam mais do que evidentes os sinais de que a crise hídrica, séria, histórica, veio e pode durar muito tempo, pelo acúmulo de muitos erros e interesses. (Por José Pedro Martins)

Professor Dr.Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp: houve operações de alto risco no Cantareira (Foto Adriano Rosa)

Professor Dr.Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp: houve operações de alto risco no Cantareira (Foto Adriano Rosa)

Sobre José Pedro Soares Martins

Deixe uma resposta